Prólogo – Capítulo 0
[Flashback – Seis anos atrás]
— Luna! Está todo mundo olhando! — sussurrou a amiga, tentando cobri-la com o casaco.
Mas já era tarde demais. As risadas ecoavam pelas paredes da faculdade como navalhas. Gritavam seu nome, zombavam da sua roupa, da sua ingenuidade... e da carta de amor que ela tinha deixado no armário dele.Caio Ventura estava no centro da roda, alto, impecável, com aquele sorriso cruel estampado no rosto. Segurava a carta nas mãos como se fosse um troféu ridículo.
— Você realmente achou que eu ia me interessar por você? — ele perguntou, a voz carregada de desprezo. — Isso aqui é patético.
O coração de Luna se partiu ali, diante de todos. Não pela rejeição. Mas pela forma.
Pelo prazer que ele sentia em humilhá-la.
Pelos risos dos colegas.
Pela vergonha que colou nela como uma cicatriz.
Naquela noite, jurou nunca mais olhar na cara de Caio Ventura.
Nem em um milhão de anos imaginaria que, seis anos depois, ele estaria sentado diante dela. Em uma cadeira de rodas. E precisando dos seus cuidados.
O destino tem um senso de humor perverso.
E Luna ainda não sabia que aquele reencontro mudaria tudo.
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Capítulo 1 – Contrato com o Passado
A folha tremia entre os dedos de Luna, mas não era pelo peso do papel — e sim pelo peso das escolhas. O letreiro da Agência Vitae de Cuidadores Profissionais ainda brilhava no reflexo da janela enquanto ela ajeitava a pasta no colo e tentava respirar fundo.
Depois de meses de entrevistas, recusas e trabalhos temporários, aquela proposta parecia um milagre. Ou uma armadilha bem disfarçada.
— Você tem um ótimo histórico — dissera a supervisora, uma mulher seca de blazer azul-marinho, que não sorria com os olhos. — Mas esta vaga exige discrição absoluta.
— E o que exatamente significa “paciente de alta complexidade”? — Luna perguntou, tentando parecer segura. — Ele é... reservado. Rígido. Mora sozinho numa propriedade isolada. Não recebe visitas. E não aceita cuidadores há meses. Mas hoje, por algum motivo, ele pediu para ver currículos. — E... ele escolheu o meu? — Na verdade, ele viu seu nome e pediu para que fosse você. Pessoalmente.Luna franziu a testa.
Ela não conhecia ninguém influente. Não fora enfermeira de nenhuma celebridade. E não tinha parente rico. Algo ali não fazia sentido.— Quem é ele? — perguntou.
A mulher apenas entregou um cartão. Um endereço era num condomínio de bairro nobre de Vinhedo, sem nome, sem pista alguma. — Vá. Hoje. Ele te espera às 17h. Se aceitar, o contrato é imediato.O portão da mansão se abriu lentamente quando ela chegou. A propriedade era grande, mas não ostentosa — cercada de jardins bem cuidados, fontes silenciosas, esculturas discretas. Mas o que chamava a atenção era o silêncio.
Não havia música. Nem vozes. Nem risos.
Tudo ali parecia estagnado no tempo.O mordomo surgiu na porta com movimentos precisos, medidos.
— Boa tarde. A senhorita Luna, correto? — Sim. — O senhor Ventura a espera na sala oeste.O coração de Luna parou por um segundo.
Ventura?
Não podia ser. Era um sobrenome comum. Não podia ser ele.Ela seguiu o homem pelos corredores amplos. Os quadros nas paredes mostravam paisagens nebulosas e rostos que pareciam julgá-la. O ar era gelado, e o silêncio só fazia o som dos seus passos ecoar mais forte.
Quando entrou na sala, a luz atravessava as janelas altas e dourava o ambiente com um tom quase sacro. E ali estava ele — de costas, na cadeira de rodas, diante de uma lareira apagada.
O som da porta se fechando fez o homem girar lentamente a cadeira de rodas.
O tempo parou.
Luna sentiu o estômago afundar.
Os cabelos mais curtos, o maxilar mais marcado, os olhos ainda mais frios. Mas era ele.
Caio Ventura.— Olha só... — ele disse, com aquele meio sorriso que sempre soou como veneno. — Quanto tempo, Luna.
Ela não respondeu. Só ficou ali, em pé, com as mãos trêmulas e a mente tentando aceitar que o destino tinha mesmo um senso de humor macabro.
— Você não vai dizer nada? Achei que estaria mais... surpresa.
— Estou. Só... tentando entender o que você quer de mim. — Cuidados. — Ele apontou para as pernas. — Como pode ver, não estou mais no meu auge.Luna se aproximou um passo.
— Por que eu? Depois de tudo? Você tem dezenas de profissionais à disposição. — E nenhum deles me interessa. Gosto de desafios.Ela cerrou os punhos.
— Eu não sou um brinquedo. — Não. Você é uma enfermeira que precisa de dinheiro. E eu sou um inválido solitário que precisa de cuidados. Somos perfeitos um para o outro.O sarcasmo dele doía mais que os anos que os separavam.
Ela olhou para a cadeira, depois para os olhos dele. E, pela primeira vez, notou algo além da arrogância: havia raiva. Havia mágoa. E talvez, muito talvez... havia dor.
— Eu jurei nunca mais olhar na sua cara, Caio.
— E eu jurei nunca mais precisar de ninguém. — Ele se inclinou para frente. — Mas cá estamos. Que tal quebrarmos nossos votos juntos?Ela queria ir embora. Mas não foi.
Porque por trás de toda aquela tensão havia algo que ela precisava mais do que orgulho: respostas.
— Qual é a condição?
— Um mês. Vinte e quatro horas por dia. Você mora aqui. Recebe dobrado. Mas... não pergunta. Não invade. Não sente pena.Luna respirou fundo.
Se aceitasse, não seria apenas um emprego.
Seria uma guerra.
E ela estava pronta para lutar.
— Traga o contrato — disse, finalmente. — Eu fico.
Caio sorriu.
E pela primeira vez, em muito tempo, ela teve medo do futuro.Mas não recuou.