Capítulo 1

Minha avó sempre foi o tipo de mulher que transforma vontades em destino. Eu aprendi isso desde criança. Quando ela diz que algo vai acontecer, simplesmente acontece. E agora, ela queria um herdeiro.

Um neto. Meu filho.

A ideia parecia absurda e, ao mesmo tempo, inevitável.

Eu podia lutar contra o mundo, mas não contra ela.

Eu costumava acreditar que tudo na vida podia ser resolvido com lógica. Problemas, pessoas, negócios, tudo se encaixa quando se entende o ponto de controle.

Mas, nos dias que se seguiram à conversa com minha avó, percebi que havia algo que nem o dinheiro, nem o poder, nem a razão podiam comprar: tempo.

O dela estava acabando e o meu, pela primeira vez, parecia ter um prazo.

Os dias seguintes foram um ciclo de frustração e impaciência.

O tempo passava. As empresas me exigiam decisões, minha avó continuava adoecendo, e eu começava a perceber que esse “acordo bilionário” — como Laura o chamou, meio irônica — estava virando algo maior do que imaginei.

Passei semanas visitando clínicas e agências especializadas, ouvindo discursos sobre “milagre da vida” e “realização de sonhos”. Eu não queria um milagre. Queria um acordo.

Cada clínica dizia ter “a candidata ideal” e cada entrevista terminava igual.

Algumas mulheres pareciam estar ali por desespero. Outras, por vaidade. Uma delas chorou enquanto me contava que “sempre quis ajudar alguém a realizar o sonho da paternidade”. Eu agradeci e pedi que encerrassem a entrevista.

Nada contra sentimentos.

Eu só não queria misturá-los ao processo.

Laura começou a ficar impaciente comigo.

— Você está recusando todas, Leo — disse ela, em um dos nossos encontros no escritório.

— Não estou recusando — corrigi. — Estou sendo criterioso.

— Criterioso demais.

— Eu não posso errar nisso.

— Você fala como se fosse uma fusão de empresas.

— Porque é assim que eu trato tudo o que pode dar errado.

Quando Laura perguntou se não era melhor adiar tudo e tentar adotar, respondi apenas:

— Não. Eu só ainda não encontrei a pessoa certa.

E, no fundo, nem eu sabia o que “certa” significava.

A noite abri uma garrafa de uísque e caminhei até o jardim. A grama ainda estava úmida da chuva da tarde.

Olhei para as luzes da cidade ao longe e, pela primeira vez, deixei a pergunta vir com força:

Por que isso parece tão errado?

Minha avó queria um herdeiro. Eu queria vê-la em paz.

Tudo era lógico, mas, por algum motivo, cada passo nesse processo me deixava com uma sensação de vazio que eu não sabia nomear.

Talvez porque, por mais que eu dissesse o contrário, um filho não é um projeto.

É uma pessoa e eu estava tratando isso como um negócio.

Mas eu não sabia agir de outro jeito.

O tempo passou mais rápido do que eu gostaria. Minha avó começou a faltar aos jantares de família. A tosse ficou mais frequente, o semblante mais cansado.

Ela ainda sorria quando me via, mas eu percebia o medo escondido nos olhos.

E cada vez que ela me olhava daquele jeito, algo apertava dentro de mim.

Eu não podia decepcioná-la.

Naquela noite, saí do prédio da empresa mais tarde do que o habitual. A cidade estava molhada, o asfalto refletia os letreiros vermelhos e brancos como feridas abertas. O motorista insistiu em me levar, mas eu recusei.

Precisava ficar sozinho para pensar.

Precisava de silêncio ou do som do caos, que às vezes dá na mesma.

Caminhei pelas ruas estreitas próximas à Avenida Paulista, sem rumo definido. A chuva fina começava a cair outra vez, fria, insistente, dissolvendo as luzes nos vidros. As pessoas passavam apressadas, encolhidas sob seus guarda-chuvas. Eu segui meu caminho, mãos nos bolsos, tentando organizar o que viria a seguir.

Foi então que ouvi um som abafado. Um grito engolido pelo vento.

Parei.

O beco à direita estava quase completamente escuro, havia apenas uma lâmpada quebrada que piscava de tempos em tempos. A princípio, achei que fosse uma discussão qualquer. Até ouvir outra voz — feminina, desesperada.

— Me solta!

A adrenalina subiu antes que o pensamento chegasse. Meus passos ecoaram no concreto molhado. Quando entrei no beco, a cena congelou o ar.

Quatro homens cercavam uma mulher contra a parede. Um deles segurava o braço dela com força, outro revirava sua bolsa e o terceiro bloqueava a saída. O quarto, que estava mais afastado, ria. Ela lutava, chutando, empurrando, mas a diferença de força era absurda.

Não pensei duas vezes, apenas agi.

— Ei. — Minha voz saiu baixa, controlada. — Soltem ela.

Três pares de olhos se viraram para mim. O que ria parou. O que segurava a bolsa arregalou os olhos.

— Se manda, cara. Isso aqui não é da sua conta — disse um deles, com um sorriso sujo.

Dei mais um passo à frente.

— Agora é.

O maior deles avançou primeiro, tentando me empurrar. Desviei, segurei o braço dele e o girei contra a parede. O som do impacto ecoou. O segundo veio logo em seguida, e antes que levantasse o punho, acertei um golpe rápido, certeiro. Ele cambaleou, caiu.

Os outros dois recuaram.

— Merda, é o Ferraz! — ouvi um deles murmurar, reconhecendo meu rosto de alguma manchete.

Bastou. Eles correram, xingando, sumindo na chuva.

Fiquei imóvel por alguns segundos, o coração disparado, respirando fundo. Dei graças a Deus por ter continuado as aulas de jiu jitsu.

Então olhei para ela.

A mulher ainda encostada na parede tremia, molhada, o cabelo colado ao rosto. Segurava os próprios braços como se tentasse se recompor.

— Está machucada? — perguntei.

Ela levantou os olhos e por um instante, o tempo parou. Não eram olhos de medo, mas de desafio. Escuros, intensos, teimosos.

— Não — respondeu, firme, apesar da voz embargada. — Só assustada.

A voz dela era bonita. Doce. Baixa, rouca. Algo nela parecia… fora de lugar. Não pela aparência — embora fosse linda, mesmo toda molhada e tremendo de frio, mas pela postura. Ela parecia feita de aço e cansaço ao mesmo tempo.

Tirei o casaco e passei pra ela.

— Aqui.

Ela hesitou.

— Eu estou bem.

— Está com frio. Vista. — A ordem saiu naturalmente.

Ela pegou o casaco e o vestiu devagar, sem me tirar os olhos.

— Obrigada. — As mãos dela tremiam, mas o olhar continuava firme. — Não precisava ter se metido.

— Precisava sim — cruzei os braços. — Quatro homens contra uma mulher. Isso não é uma briga, é covardia.

Ela soltou um suspiro curto, meio irônico.

— E você é o cavaleiro de armadura cara?

— Algo assim.

Por um momento, ficamos apenas olhando um para o outro, o som da chuva preenchendo o silêncio. Foi então que percebi o que ela segurava com força contra o peito: uma pasta de documentos, molhada nas bordas.

— O que é isso? — perguntei.

— Só alguns currículos — respondeu, simples.

— Venha, vou te dar uma carona.

Ela tentou recusar, mas eu insisti. Quando, finalmente, entrou no carro, o motorista olhou pelo retrovisor, confuso.

— Leve-nos para o hospital Albert Einstein — ordenei.

— Eu disse que estou bem — ela reclamou, mas o tom era mais cansado do que irritado.

— E eu não discuto com feridos.

No trajeto, ela ficou em silêncio, olhando pela janela. Eu observava, discretamente, o modo como os dedos dela apertavam a pasta como se tivesse medo de perdê-la.

No hospital, recusou atendimento completo, aceitando apenas limpar o corte superficial no braço e da testa. Enquanto esperávamos, sentei-me ao lado dela.

— Me desculpe eu nem perguntei seu nome.

— Camila. — Ela respondeu sem olhar para mim.

— Só Camila?

— Só Camila.

— Eu sou Leonardo Ferraz.

O silêncio voltou, mas não era desconfortável. Era o tipo de silêncio que me fazia querer entender quem ela era e o que fazia sozinha em um beco escuro com documentos nas mãos.

Mais tarde, deixei-a no endereço que ela indicou — uma pensão simples, em um bairro antigo da cidade.

Quando o carro parou, ela hesitou antes de sair.

— Obrigada… por tudo. — disse, finalmente.

— Não precisa agradecer. — Inclinei o corpo levemente. — Mas eu quero entender uma coisa. O que fazia ali sozinha, àquela hora?

Ela suspirou.

— Passei o dia procurando um emprego. 

Fiquei em silêncio. Ela se virou para mim e completou:

— Sou formada em administração. Trabalhava como garçonete em um restaurante, mas perdi o emprego há três meses por causa de uma confusão que meu irmão arrumou. Agora estou tentando recomeçar.

— O que ele fez?

— Ele é viciado e agora está devendo muito aos caras errados. Quando esses caras descobriram onde eu trabalhava, foram lá e assaltaram o lugar.

— Mas a culpa não foi sua.

— Agora meu irmão está sumido e os caras estão me cobrando pelas dívidas dele.

Antes que eu pensasse, a pergunta escapou:

— Você já ouviu falar nos processos de gestação assistida?

Ela franziu a testa.

— Um pouco. Por quê?

Olhei para ela com atenção. A pele clara, os olhos determinados, o tom prático da voz. Havia força ali. E algo mais. Algo que eu não conseguia nomear.

— Porque talvez eu tenha uma proposta para você — disse, finalmente.

Ela piscou, desconfiada.

— Que tipo de proposta?

— Um acordo — respondi. — Um contrato. Nada ilegal. Mas incomum.

Ela riu, cética.

— Isso soa péssimo.

— Talvez. — Inclinei a cabeça. — Mas paga muito bem e poderia melhorar sua vida.

Por um momento, pensei que ela me mandaria embora, mas em vez disso, ela cruzou os braços, curiosa.

— Está falando sério?

Assenti.

— Totalmente.

Ela ficou em silêncio por alguns segundos, estudando meu rosto como se tentasse decifrar minhas intenções. Então respondeu:

— Tudo bem. Me conte mais… senhor Ferraz.

O modo como ela disse meu nome me arrepiou, não de forma agradável, mas como quem tem a ousadia de não se intimidar. E ali, sentado dentro do carro, com o som da chuva e o cheiro de noite molhada no ar, eu soube que nada, absolutamente nada, sairia como planejado.

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