Capítulo 2

A noite inteira, eu rolei de um lado para o outro da cama, contei carneirinhos, fiquei olhando para o teto. Nada adiantou, não conseguia dormir.

Fechei os olhos várias vezes, mas a cena no beco voltava como um filme que se recusa a terminar. A chuva, o grito, os quatro homens e, no centro de tudo, ela.

Camila.

Os olhos escuros, o queixo erguido, a coragem absurda em meio ao medo. Uma mulher que eu nunca tinha visto antes… mas que, de algum modo, ficou comigo.

Acordei antes do amanhecer, sentia o corpo cansado, mas a mente desperta. Tomei um banho, vesti um terno cinza com uma gravata vermelha e desci para o café. A mansão estava silenciosa, o relógio do corredor marcava seis e quarenta e cinco. Dona Elisa ainda dormia, mas a mesa para o café da manhã já estava posta.

Eu estava tomando a primeira xícara de café quando fui informado que Laura tinha chegado, pedi para a governanta trazê-la até mim.

— Achei que sua urgência fosse algo relacionado à empresa — disse ela, pousando o casaco sobre o encosto da cadeira. — E não café da manhã.

— As duas coisas não são incompatíveis — empurrei a xícara extra em sua direção. — Sente-se.

Ela se acomodou, observando-me com curiosidade.

— Você parece… diferente hoje.

— Não dormi.

— Isso eu já sei. — Pegou a xícara e cheirou o café. — O que aconteceu?

Eu poderia ter dito “nada”, mas Laura me conhecia demais pra acreditar, então apenas fui direto ao ponto e contei a ela minha decisão.

— Você quer que eu redija um contrato para uma mulher que você conheceu ontem à noite?

— Sim — respondi sem hesitar.

— Leonardo, isso é… muito precipitado, até pra você.

— Eu sei o que estou fazendo — peguei uma pasta sobre a mesa. — Camila Torres, desempregada, vinte e nove anos, boa saúde e inteligente o bastante pra não fazer perguntas erradas.

Laura cruzou os braços.

— E como exatamente você a conheceu?

— Ela estava sendo atacada e eu a ajudei.

— Meu Deus. — Ela piscou, surpresa. — E a primeira coisa que te veio à cabeça foi transformá-la em sua barriga de aluguel?

— Não — respondi, sério. — A primeira coisa foi levá-la ao hospital. A segunda foi perceber que ela é diferente. Não tem interesse no meu sobrenome, nem medo do meu tom de voz. É o tipo de pessoa que não se curva, mesmo quando deveria.

Laura me observou com aquele olhar clínico que ela usa quando está tentando entender até onde eu já fui longe demais.

— E ela sabe da proposta?

— Ainda não. Vou convidá-la para conversar hoje.

Ela suspirou.

— Então espero que, pelo menos, você seja humano nessa conversa.

— Eu sempre sou.

— Você conheceu essa mulher há menos de vinte e quatro horas.

— Eu conheço o suficiente pra saber que não é como as outras.

— Então… você quer que eu prepare o contrato para hoje?

— Ainda não — me levantei. — Primeiro, quero ver se ela ouvirá a minha proposta.

— E se ela disser não?

— Aí eu volto pra estaca zero — dei de ombros. — Mas algo me diz que ela vai ouvir.

Laura bufou, levantando-se também.

— Isso vai dar problema.

— Tudo que vale a pena dá.

Laura arqueou uma sobrancelha, mas não respondeu.

Ao meio-dia, o carro parou em frente a uma pequena cafeteria no bairro de Pinheiros. O céu estava nublado, e o ar carregava o cheiro de chuva antiga. Camila já estava lá, sentada próxima à janela. Nenhum salto, nenhuma maquiagem pesada. Jeans, blusa clara, cabelo preso em um coque desalinhado. Simples. Real.

Ela me viu e se levantou, visivelmente tensa, mas sem parecer intimidada.

— Senhor Ferraz.

— Leonardo — corrigi, estendendo a mão. — Obrigado por aceitar me encontrar aqui.

Ela apertou minha mão firme, sem hesitação.

— Imagino que não é todo dia que um bilionário convida alguém para um café depois de um resgate cinematográfico.

Sorri de canto.

— Eu raramente faço algo cinematográfico.

— Então devo estar com sorte. — Ela cruzou os braços. — Qual é a proposta?

Direta. Sem rodeios. Eu gostei disso.

Sentei-me à frente dela. O garçom trouxe café. Ela pediu um pão de queijo. Eu, nada.

Quando ele se afastou, encostei as mãos sobre a mesa e fui direto ao ponto.

— Você disse ontem que estava procurando emprego.

— Sim.

— Eu tenho um para te oferecer — respirei fundo. — Mas não é um trabalho comum.

Ela arqueou uma sobrancelha, desconfiada.

— Já estou imaginando.

— Preciso de alguém que aceite gerar uma criança.

O silêncio caiu como um soco.

Ela piscou. Uma, duas vezes.

— Desculpe, o quê?

— Preciso de um filho — expliquei, sem desviar o olhar. — Não um relacionamento. Não uma família. Apenas um filho. E não quero me envolver com casamentos, amores ou expectativas. Quero algo limpo, claro, direto.

Ela recostou-se na cadeira, me estudando com atenção.

— Você está falando de… barriga de aluguel?

— Sim.

— Então é isso? Você salva uma mulher e, como agradecimento, oferece uma gravidez contratual?

— Não estou oferecendo como agradecimento. Estou te oferecendo uma oportunidade.

Ela me olhou por longos segundos, como se tentasse entender se eu era um sociopata ou só um idiota funcional.

— E por que eu?

— Porque confio na minha intuição — respondi. — E algo me diz que você é forte o bastante pra aguentar o processo.

Ela riu, sem humor.

— Isso não é um elogio.

— É uma constatação.

— E por que não procura alguém em uma clínica? — retrucou. — Gente especializada nisso?

— Porque nenhuma das candidatas que entrevistei me passou confiança. Queriam dinheiro, fama, ou uma história pra contar. Você, pelo contrário, não parece querer nada disso.

Ela ficou em silêncio por alguns segundos. O olhar endurecido.

— Você é inacreditável — murmurou. — Acha que pode resolver tudo com contratos, inclusive um filho.

— Acho que posso evitar dores desnecessárias se tudo estiver claro desde o início.

Camila cruzou os braços, respirando fundo. Eu podia ver o conflito dentro dela: repulsa, curiosidade, desconfiança.

— E o que eu ganharia com isso?

— Financeiramente, tudo o que precisar para recomeçar. — Respondi, direto. — As dívidas do seu irmão quitadas, um recomeço, segurança, posso te arrumar uma vaga de emprego decente, acompanhamento médico integral e... um acordo de confidencialidade.

— E o bebê?

— Será meu — falei, sem hesitar. — Biologicamente, meu. Legalmente também.

Ela assentiu devagar, olhando pela janela. O reflexo da chuva no vidro distorcia a expressão dela.

— Você fala disso como se fosse uma transação.

— Porque é — disse com sinceridade. — Mas com a diferença de que essa transação exige confiança.

Ela virou o rosto de volta para mim.

— E o que faz você achar que pode confiar em mim?

— Eu não sei — respondi. — Mas sei que confio mais em você do que em qualquer pessoa que já entrevistei.

Ela segurou o olhar por alguns segundos. Então riu, baixo, como quem não acredita no que está ouvindo.

— Você é mesmo louco.

— Talvez — dei de ombros. — Mas, se topar, prometo que vai ser a decisão mais racional da sua vida.

— Ou a pior.

— Depende do que você fizer com ela.

Camila respirou fundo, passando a mão pelo rosto.

— Isso é surreal. Eu nem te conheço.

— Pode conhecer. Aos poucos. — Tirei um cartão do bolso e deslizei pela mesa. — Amanhã, dez da manhã. Clínica Shapiro. Avaliação médica, sem compromisso. Se decidir não ir, eu entendo.

Ela olhou para o cartão, depois para mim.

— Você realmente acredita que eu aceitaria gerar um filho pra você?

— Acredito que vai pelo menos pensar na proposta.

Ela riu de novo, mas havia algo diferente dessa vez. Não era ironia. Era curiosidade.

— Você é impossível, senhor Ferraz.

— Leonardo — corrigi outra vez, e um sorriso quase involuntário escapou.

Ela se levantou, pegando a bolsa.

— Se eu for amanhã, é só pra dizer pessoalmente que não aceito.

— Tudo bem — respondi. — Eu gosto de gente decidida.

— E eu não gosto de homens que acham que podem comprar o impossível.

— Então talvez a gente se equilibre.

— Você devia aprender a perder, Leonardo.

— Eu nunca perco — respondi, calmo. — Às vezes, só demoro mais pra vencer.

Ela me olhou por mais um segundo antes de sair. O cheiro do perfume dela ficou no ar, algo leve, fresco, com um toque agridoce que parecia definir perfeitamente quem ela era: simples na superfície, impossível de decifrar no fundo.

Quando o garçom veio recolher a mesa, percebi que ela não tinha levado o cartão. Ficou ali, sobre o guardanapo, molhado por uma gota de café.

Sorri de leve. Algo me dizia que ela voltaria.

E, pela primeira vez em muito tempo, o imprevisível não me incomodava.

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