Mundo de ficçãoIniciar sessão
O relógio de pêndulo no canto da sala marcava cada segundo com um som grave e compassado, preenchendo o espaço entre as minhas respirações contidas. Era um som que eu sempre ouvira naquela casa — às vezes fundo, às vezes tão alto que parecia ditar o ritmo da minha vida.
A mansão Ferraz estava mergulhada em um silêncio pesado. Não era o silêncio tranquilo de uma noite qualquer. Era um silêncio espesso, que se arrasta pelas paredes, se infiltra nos móveis e pesa nos ombros. O tipo de silêncio que avisa que algo importante está prestes a acontecer.
A noite havia caído em tons de âmbar. As grandes janelas de vidro refletiam o jardim impecavelmente iluminado, e as luzes embutidas no chão deixavam a chuva recém-cessada brilhar como um manto de ouro líquido sobre a grama aparada. Eu sempre detestei a maneira como tudo ali parecia perfeito demais — organizado demais. Como se a própria casa carregasse a frieza calculada da família Ferraz.
Caminhei pelo corredor de mármore preto, os passos ecoando como pequenos golpes. Assim que empurrei as portas pesadas de madeira e entrei na sala principal, percebi. Tinha algo diferente no ar.
Minha avó, Dona Elisa Ferraz, estava sentada em sua poltrona verde-musgo — a mesma em que a vi incontáveis vezes. Aquela poltrona parecia um trono, e ela, uma rainha. O coque impecável, a manta de cashmere sobre as pernas, a postura ereta… aos oitenta e dois anos, ainda era impossível não endireitar a coluna ao entrar em um cômodo onde ela estava.
Mas naquela noite, havia algo diferente no olhar dela. Não era fraqueza — Elisa Ferraz não conhecia essa palavra. Era algo mais silencioso, íntimo. Uma vulnerabilidade escondida por trás de uma fortaleza cuidadosamente construída.
— Recebi sua mensagem — disse, mantendo a voz firme. — Achei que fosse urgente.
Ela ergueu os olhos com lentidão.
— É urgente, Leo. Sente-se, por favor.
O apelido de infância me atingiu de forma estranha. Quase ninguém mais o usava. E talvez por isso, naquele instante, percebi que aquela conversa não seria sobre negócios. Caminhei até o sofá de couro marrom, afundei-me nele com a rigidez de quem nunca se permite relaxar.
O silêncio entre nós era espesso, cortado apenas pelo estalar da lenha na lareira e pelo tique-taque insistente do relógio de pêndulo.
Aquela sala guardava pedaços de mim que preferia esquecer.
Foi ali que corri com meus primos quando ainda acreditava que a vida era simples. Foi ali que meu pai — com o mesmo olhar frio que hoje carrego — reuniu os acionistas após a morte do meu avô, reafirmando ao mundo que a família Ferraz continuaria no topo. Foi ali também que, aos dezessete anos, jurei que jamais dependeria de ninguém. Nem de amores. Nem de promessas. Nem de heranças.
A mansão Ferraz nunca foi só uma casa. Era um lembrete. Um peso.
Minha avó ajeitou a manta no colo com delicadeza. Aquele gesto… eu conhecia. Era o mesmo que antecedia cada conversa séria da minha vida. A mesma maneira como, anos atrás, ela me contou que meus pais haviam morrido. Como se sempre soubesse a ordem certa para desmontar minhas defesas.
— Fui ao médico esta semana — começou, com calma demais.
Minha coluna se enrijeceu de imediato.
— E o que ele disse?
Ela respirou fundo. O som pareceu preencher todo o espaço vazio entre nós.
— Os exames confirmaram o que eu já suspeitava.
— Do que está falando, vó?
Ela manteve os olhos fixos nos meus, e eu senti a estranha sensação de estar com treze anos novamente, sentado naquela mesma sala depois de ter levado minha primeira suspensão no colégio. Era aquele olhar que me despia, que me fazia querer lutar — mas nunca conseguia vencer.
— De que o tempo está se esgotando para mim, meu querido.
Por um segundo, não ouvi mais nada. Nem o relógio, nem a lareira. Só o som do meu próprio coração dando um passo em falso.
— Não diga isso — sibilei, mais ríspido do que pretendia.
Ela sorriu de leve, com um carinho antigo.
— Não estou brincando, Leonardo. Eu, realmente, tenho pouco tempo de vida.
Aquele silêncio pesado ficou ainda mais denso. Senti-o empurrando contra meu peito, como se me obrigasse a respirar mais devagar.
— Vamos procurar outro médico. O melhor do país. Eu posso te levar para Boston, Zurique, Paris… — falei rápido, automático, como quem monta um plano de ação para uma crise empresarial. — Eu resolvo.
Mas ela ergueu a mão, aquele mesmo gesto que já calou conselheiros, acionistas e até ministros.
— Eu já aceitei, Leo.
Engoli seco. Eu não choro. Leonardo Ferraz não chora. Nunca. Nem no enterro dos meus pais, quando tinha apenas dezessete anos e prometi que ninguém mais me veria fraco. Mas uma fenda começou a se abrir dentro de mim.
— O que quer que eu faça? — perguntei, quase num sussurro.
Ela me olhou de um jeito que sempre me desconcerta, entre carinho e estratégia.
— Quero ver meu legado continuar. Quero que você me dê um herdeiro.
Por um instante, achei que tinha entendido errado.
— Um herdeiro?
— Quero que você tenha um filho, Leonardo. Um neto para mim. Alguém para carregar o sobrenome Ferraz no sangue.
Soltei uma risada seca, mais por incredulidade do que por humor.
— A senhora só pode estar de brincadeira.
— Nunca brinco com assuntos importantes. — A voz dela soava como aço envolto em seda. — Já alterei o testamento.
Um peso frio se instalou no meu estômago.
— É o quê?
— Sua parte da herança só será garantida se você tiver um herdeiro. Até o final deste ano.
Levantei de um salto. Caminhei até a janela. A chuva voltava a cair lá fora, fraca e ritmada, tamborilando nas vidraças. O reflexo no vidro mostrou um homem que, pela primeira vez em muito tempo, não tinha controle de nada.
— Isso é uma loucura — murmurei, virando para ela. — A senhora não pode me obrigar a isso.
— Posso. E já fiz.
Eu ri sem humor.
— Eu não sou um reprodutor. Isso não é um negócio.
— É exatamente isso que é para você: um negócio. E talvez esse seja o seu problema.
As palavras dela foram afiadas. E, no fundo, eu sabia que eram verdadeiras.
Me virei de costas para a janela e olhei ao redor da sala. As estantes de madeira escura, os livros antigos, os retratos emoldurados… Havia um quadro em especial, perto da lareira: eu e ela no jardim, eu com uns seis anos de idade. Ela sorria, segurando minha mão. Eu também sorria — e era um sorriso livre, coisa que não sei mais como fazer.
Lembrei-me de quando, ainda criança, eu corria pelo corredor principal e me jogava na poltrona dela sem pedir permissão. Ela fingia reclamar, mas sempre me cobria com um cobertor e me deixava dormir ali. Naquela época, tudo parecia simples.
Agora, aquele mesmo lugar parecia uma armadilha.
— A senhora está cansada de saber que não quero me casar — disparei, numa tentativa desesperada de impor alguma barreira.
— Então não case. Eu apenas disse que quero um herdeiro. Você sempre encontra soluções para tudo, Leo. Encontre mais uma.
Ela não estava me pedindo. Estava me dando uma missão. E eu sabia — eu sempre soube — que ninguém dizia não a Dona Elisa Ferraz.
— Quero segurar seu filho nos braços antes de ir — disse, e a emoção na voz dela finalmente rachou a armadura que sempre carregou. — Quero olhar nos olhos dessa criança e saber que, quando eu for embora, o nome Ferraz continuará vivo.
Fechei as mãos em punhos. O ar parecia denso demais.
— Isso é chantagem emocional — murmurei.
— Não. Isso é amor. — Ela inclinou levemente a cabeça. — O último pedido de uma mulher que criou você.
Amor. Uma palavra que sempre me pareceu mais incômoda do que bonita.
Ela respirou fundo e continuou:
— Eu sei que você acha que não precisa de ninguém. Que construiu tudo sozinho. Que força é não depender de amor, de vínculos. Mas não é assim que a vida funciona, Leonardo. Eu já vi demais, vivi demais. E no fim… não são empresas que ficam. São as pessoas.
Por um instante, a mulher à minha frente não era a matriarca de uma família poderosa. Era apenas uma avó olhando para o neto com medo de partir e deixar tudo vazio.
— Eu criei você para ser forte, Leonardo. Mas talvez tenha te ensinado que força e solidão eram a mesma coisa.
As palavras dela atravessaram direto o meu peito.
Olhei novamente para o quadro do menino sorridente no jardim. E odiei aquele sorriso. Odiei porque ele me lembrava que eu já fui alguém mais leve. Que a vida já foi mais simples. Que talvez — só talvez — em algum lugar dentro de mim, ainda existisse uma parte que queria pertencer a alguém.
Mas eu tinha aprendido bem: pertencer significava fraqueza.
O relógio voltou a marcar cada segundo — tique. taque. tique. taque. Como se estivesse zombando de mim, lembrando que o tempo dela estava acabando.
— Eu… não sei o que dizer — admiti, com a voz rouca.
— Não precisa dizer nada agora. Apenas pense. O tempo corre mais rápido do que imagina.
Assenti devagar. Não prometi nada. Mas o sorriso dela foi o mesmo de sempre — aquele sorriso de quem já ganhou, mesmo antes da guerra começar.
Virei-me e comecei a caminhar para fora da sala. A chuva lá fora engrossava, e os passos ecoavam pelos corredores como um réquiem silencioso.
A mansão estava igual a sempre — fria, impecável, cheia de memórias que eu não pedi para ter. Cada quadro, cada móvel, cada lustre parecia me observar com olhos mudos, como testemunhas silenciosas do que acabara de acontecer.
Parei diante da porta de entrada, observando a chuva cair no jardim. Respirei fundo, tentando empurrar para longe a pressão sufocante que tomava conta do peito. Mas era inútil. A decisão dela já estava cravada em pedra. E, no fundo, eu sabia que no fim… eu sempre acabava fazendo o que ela queria.
Ela estava morrendo e eu teria que dar a ela um herdeiro. Não porque eu quisesse, mas porque, por mais que eu negasse, ela era a única pessoa no mundo por quem eu seria capaz de fazer qualquer coisa.
Minha vida inteira foi um contrato. Cada passo calculado. Cada relação protegida por cláusulas invisíveis. Eu nunca acreditei em destino, mas naquela noite, com o som da chuva e o relógio ditando a contagem regressiva… eu percebi que estava prestes a assinar o mais difícil de todos.
E, no fundo, uma voz sussurrava:
— Tudo começou aqui. Nesta sala. Com ela.







