O dia já devia ter acabado. Meu corpo gritava por descanso, mas eu ainda estava ali, firme — ou quase. Sempre fiz de tudo nesse restaurante. Lavava pratos, arrumava mesas, atendia clientes. E o dono? O dono não dava a mínima. Se tínhamos apenas dois ou três funcionários pra dar conta de praticamente tudo, era problema nosso. Nunca dele.
Claro, havia os cozinheiros. E com eles, ele era um doce. Sorria, fazia piadas, puxava assunto. Mas com a gente, os do salão, era outra história. Para ele, nós éramos dispensáveis, descartáveis, invisíveis. Não quero parecer ingrata. Sei que com o tanto de desastre que já causei, qualquer outro chefe teria me mandado embora faz tempo. Mas é exatamente isso. O Alfredo sabia. Sabia que eu precisava desse emprego. E usava isso contra mim. Me fazia atravessar a rua no meio do movimento por uma garrafa de vinho. Me mandava andar o shopping inteiro com o uniforme amarrotado, cabelo preso de qualquer jeito, sem tempo nem pra tomar um copo d'água. E eu aguentava. Porque precisava. Porque minha família dependia disso. Pedir demissão? Pra ir pra onde? Eu não tenho um diploma. Meu currículo é raso. Só sei trabalhar. Então eu me sujeito. Engulo o orgulho. Finjo que não ouço certas coisas. Sorrio e continuo. Ainda bem que a noite estava perto do fim. Faltava pouco para meu turno acabar. Em outros dias, eu sairia dali direto para outro bico. Hoje não. Mas o alívio era mínimo. Porque mesmo com dois empregos, o dinheiro não dava. Um ajudava o outro a tapar buraco. Sozinhos, nenhum dos dois segurava a casa em pé. — Vai servir aquela mesa. A voz do Alfredo cortou meus pensamentos. Fina, seca, como uma faca de serrilha. Virei devagar, franzindo a testa. Ele mesmo tinha me proibido de atender no salão mais cedo. Por causa do copo quebrado. Agora, ele precisava de mim. E quando ele precisava, não era um pedido. Era uma ordem. — Tem certeza? — A ironia escorregou da minha boca antes que eu pudesse conter. Ele estreitou os olhos. O olhar dele cortava. Paralisava. O ajudante da cozinha congelou no canto, como se tivesse virado parte da parede. Mas eu? Eu tinha esse dom de provocar a tempestade. — Achei que eu era a desastrada da história. Tirei o pano do ombro num gesto lento, desinteressado. Quase provocativo. Ele deu um passo na minha direção. — Daphne, você gosta desse emprego? — perguntou, com a calma de quem está prestes a soltar uma bomba. Sorri de canto. Uma provocação sem graça. — Claro. Por quê? Devia ter percebido. Estava no tom. No peso das palavras. — Porque se não fizer o que eu tô mandando... vai pra rua. E se continuar com gracinha, também. Meu sorriso evaporou. A raiva veio, quente. Mas eu segurei. Peguei a bandeja. Era só uma bebida. Nada demais. Caminhei em silêncio, tentando engolir tudo junto: orgulho, frustração e exaustão. A mesa era de um homem só. E que homem. Bonito. Ridiculamente bonito. Elegante num nível que dava raiva. Mas não chegava aos pés do meu príncipe. Ainda assim, era impossível não reparar. Pele clara, lábios bem desenhados. A barba por fazer parecia proposital, o cabelo milimetricamente penteado. O terno? Caríssimo. O relógio brilhava mais que os lustres do salão. Estava sentado, pernas cruzadas, como se tudo girasse ao redor dele. Como se fosse a própria definição de poder. Mas o meu coração? Já tinha dono. Então, deixei o copo sobre a mesa. Esperei um "obrigado", um olhar, um gesto. Nada. Nem mexeu os olhos. Mais um dos que achavam que nós, do uniforme, somos invisíveis. Virei pra sair. E ela passou por mim. Loira. Apressada. Desajeitada. Esbarrou em mim, não pediu desculpas. Só sorriu de canto e se sentou na frente dele. Não deveria ter ficado olhando. Mas fiquei. Ela falava, gesticulava, e ele... nada. Imóvel. Como se ela fosse vento. Voltei ao balcão e dei de cara com Alfredo. Braços cruzados. Olhos semicerrados. Me julgando como se eu tivesse derrubado a torre Eiffel. — Esqueceu de perguntar o que a moça gostaria de beber? — disse ele. Frio. Revirei os olhos. Respirei fundo. Voltei. Pisei firme. A mulher nem me olhou. Mas o homem, ah... Ele levantou os olhos. E me viu. Os olhos dele. Negros. Profundos. Como um abismo que chamava meu nome. Meu coração acelerou. Perdi o fôlego por um segundo. Ele olhou pro meu crachá. Sorriu. — Daphne, querida. A voz dele era grave. Quente. E cortou o ar. Ele se levantou tão rápido que dei um passo pra trás. — Não é o que você está pensando — disse, quase tropeçando nas próprias palavras. — Foi minha tia. Ela marcou esse encontro. Eu não queria vir. Juro. Me chantageou... me desculpa. Não sabia que você estaria aqui. Eu piscava. Tonta. Perdida. Eu nem sabia o nome dele. — Não queria esconder nada de você. Ia dispensar ela, como fiz, mas... — COMO ASSIM?! — a loira explodiu. Estava de pé agora, vermelha. Tão chocada quanto eu. — Eu sei, não deveria — ele seguia. — Mas te peço desculpas, meu amor. E você — virou-se para a mulher — está dispensada. — Espera, o quê?! — minha voz saiu em sussurro. — Já estou em um relacionamento. Não preciso de arranjos. Venha, meu amor. Ele segurou meu pulso. Firme. Puxou. — Ei! Me solta! — gritei, tentando me livrar. — Eu não te conheço, seu maluco! Mas ele não soltou. Me puxava. Olhava por cima do ombro, como se fugisse de algo. Como se estivéssemos em fuga. Ninguém via. Mila não estava. Meu coração disparava. — Vem comigo — ele murmurou. E atravessou o restaurante comigo a reboque. Lá fora, me puxou com mais força. Me colou contra o corpo dele. Grande. Quente. E com um perfume que me envolveu por inteiro. Se eu não fosse apaixonada pelo príncipe... Mas ele era um estranho. Um louco. Um pervertido. — Entra no personagem e eu te recompenso no final — sussurrou no meu ouvido. Eu tremia. De medo? De raiva? De tudo. — Do que você tá falando? — murmurei, tentando me afastar. Ele me segurava firme. Isso estava acontecendo. Comigo. E então... ele me beijou. À força. Meu coração parou. Tentei resistir. Juro. Mas o calor, o perfume, o cansaço... Eu retribuí. O beijo foi diferente. Intenso. Quente. Entregue. Por um instante, esqueci que ele era um estranho. Mas a razão gritou. Empurrei. Com força. E o tapa veio. Seco. Rápido. Ele levou a mão ao rosto. Sorriu. Torto. Orgulhoso. Fiquei ainda mais furiosa. E então olhei. Para a porta do restaurante. E lá estava ele. Alfredo. Observando. Com outros olhos ao redor. Todos em choque. E eu ali. Respirando rápido. Lábios trêmulos. E a certeza cravada no peito: Tinha perdido o controle da minha vida.