O silêncio que reinava na casa segura foi quebrado por três batidas fortes. Os vapores apontaram suas armas para a porta, os olhos arregalados, os corpos tensos. Mariana sentiu o coração saltar no peito, a garganta seca e os pés imóveis. A respiração pesava e o tempo pareceu congelar por um instante. Tavinho se aproximou da tranca com cautela, Bruno já com o dedo no gatilho. A maçaneta girou. Quando a porta finalmente se abriu, um corpo tombou parcialmente para dentro, sustentado por dois vapores. Era ele. Rei. Ferido, sujo de sangue, o olhar perdido entre a dor e o choque. Mariana correu sem pensar, os braços abertos, a alma em pedaços. Seus joelhos bateram no chão ao lado dele e ela o segurou com desespero. O cheiro de pólvora e suor impregnava suas roupas, o rosto sujo, o canto da boca cortado. Mas era ele. Vivo. — Meu Deus... — ela murmurou, tocando o rosto dele com mãos trêmulas. — Você voltou. Mas algo estava errado. Mesmo envolvido em seus braços, Rei não a olhava como ant
Narrado por Rei O silêncio era quase sagrado. Naquela madrugada pesada, o mundo parecia segurar o fôlego, como se até os deuses soubessem o que estava prestes a acontecer. Eu estava de pé diante do espelho sujo do banheiro da casa segura, encarando meu reflexo com olhos que já tinham visto demais. A luz amarela oscilava, lançando sombras que dançavam sobre meu rosto cansado. As cicatrizes antigas pareciam mais profundas sob aquela luz, e os olhos... os olhos estavam diferentes. Tinha algo ali, além da raiva e da sede de vingança. Tinha medo. Medo de não voltar. Medo de não ver mais Mariana. Medo de deixar meu filho nascer órfão. Passei os dedos pela barba por fazer, respirei fundo. A lembrança da última vez que vi o Enzo, encolhido ao meu lado no sofá, me veio como um soco no peito. Ele tinha dito que eu sempre voltava. E é isso que eu vou fazer. Por ele. Por Mariana. Pelo bebê que ela carrega com tanto amor mesmo em meio ao caos. Minha camisa preta colava no corpo, pesada de suor
O carro atravessava a madrugada como um suspiro preso entre o peito e o desespero. O céu parecia pesar sobre os morros, escuro, silencioso demais, como se a própria Rocinha estivesse prendendo a respiração. Mariana mantinha as mãos pressionando o ferimento do Rei, sentada no banco de trás com ele desmaiado em seu colo. O sangue escorria entre os dedos, quente e implacável. Ela já havia atendido muitos homens baleados. Já tinha visto corpos despedaçados pela violência da favela. Mas nunca fora o homem dela. Nunca fora ele. O rosto dele estava pálido, quase azulado, os lábios entreabertos como se estivesse tentando dizer alguma coisa que já não conseguia mais articular. O peso do corpo dele contra o dela era o peso de tudo: das promessas, da guerra, das perdas, do amor que ela sequer ousava nomear em voz alta. — Acelera, Bruno! — ela gritou, a voz embargada. Bruno, ao volante, com as mãos firmes e os olhos marejados, apertou ainda mais o pé no acelerador. O carro subia as ladeiras c
Narrado por Bruno O corredor do hospital respirava em câmera lenta. Por trás das paredes brancas, o Rei lutava pela vida, e ali fora tudo parecia se recusar a se mover. Eu estava sentado num banco de metal, a camisa manchada de sangue seco, as mãos apertando o boné aos joelhos como se fosse um troféu de guerra que eu não merecia ter ganho. De onde eu estava, podia ouvir apenas o eco distante de monitores que bipavam ritmicamente, lembrança amarga de que, dentro daquela sala, cada batida do coração dele era uma vitória sofrida. — Vai, Mari… — eu murmurei, quase sem voz. Mas meu pedido ficou perdido no vazio. Eu forçava o corpo a ficar imóvel, mas o peito ardia e as pernas tremiam com a urgência de correr até a porta de vidro e arranca-lá do batente para chegar até ele. Queria ser o paciente, queria sentir a lâmina do bisturi perfurando minha carne para depois cair num sono induzido, para acordar e enfrentar o mundo de novo. Mas não era eu deitado ali: era ele. E o Rei não podia mor
A luz do amanhecer entrava suave pela janela do quarto. Não era mais aquela claridade agressiva de sol forte do alto do morro — era uma luz tímida, como se o mundo lá fora ainda tivesse receio de anunciar um novo dia. O som do monitor cardíaco ainda pulsava em seu ritmo constante, mas agora, aos ouvidos de Rei, parecia uma música de fundo distante, quase como se pertencesse a outro universo. Ele piscou com lentidão, ainda sentindo os resquícios da anestesia no corpo e uma exaustão quase desumana. Mariana não estava no quarto naquele momento, e o silêncio lhe permitiu, pela primeira vez desde que acordara, estar sozinho com seus próprios pensamentos. Não gostava da sensação. Parecia que o vazio dentro dele começava a gritar. Tentou mexer a perna. A dor veio como uma punhalada. Depois tentou erguer o tronco, mas a musculatura respondeu com um tremor, como se seu próprio corpo o advertisse: “não hoje”. Mesmo assim, teimoso como sempre fora, ele afastou os lençóis, ignorando os fios co
Narrado por Melissa Nunca tive muito. Nunca fui muito. Lembro da primeira vez que subi aquele morro. O céu tava cinza, e não era só pelo clima. Era como se o mundo todo estivesse em luto por mim. O tênis furado que eu usava deixava a água da chuva entrar, e o jaleco que eu carregava dentro da bolsa era o único escudo entre mim e a realidade. Na infância, o morro era sinônimo de grito. Grito da minha mãe pedindo paz. Grito do meu pai mandando ela calar a boca. Eu ficava no canto, escondida, segurando uma faca cega e esperando o pior. Ele nunca me bateu. Sabia que eu era bruta, nascida na fúria. E mesmo sendo ele meu pai, sempre soube que se me tocasse, eu devolveria em dobro. Ele tinha medo da filha que criou. Engraçado isso. Minha mãe morreu quando eu tinha doze. Câncer. O hospital não tinha recurso. A gente não tinha dinheiro. Ela dizia que eu ia ser enfermeira, “anjo de branco”, como ela falava, rindo com aquele dente faltando do lado esquerdo. Quando ela se foi, ficou só o eco
Narrado por Mariana A sala do hospital tinha um cheiro estéril de álcool e promessas. Era engraçado como lugares assim, cheios de lembranças dolorosas, também podiam se transformar no palco dos nossos momentos mais felizes. Eu apertei a mão de Caio — meu Rei — enquanto o médico preparava o equipamento para o ultrassom. Ele ainda usava a cadeira de rodas, consequência de toda a merda que atravessamos nos últimos meses. Sequelas que a guerra deixou no corpo dele, mas que nunca conseguiram tocar sua alma. Enzo, nosso pequeno terremoto, pulava de cadeira em cadeira, curioso demais pra ficar parado. A enfermeira sorria de canto, compreensiva, e eu apenas me permiti rir. Pela primeira vez em muito, muito tempo, o riso não era amargo. Era leve. Verdadeiro. — Pronta? — perguntou o médico, um senhor de barba grisalha e mãos experientes. Eu assenti, meu coração batendo acelerado de tanta ansiedade. Deitei na maca, levantando a blusa, e senti o frio do gel na barriga já arredondada.
Narrado por Mariana Em segundos, o que era uma festa simples e feliz virou uma cena de novela mexicana em ritmo acelerado. Melissa tentou coordenar alguma espécie de plano de evacuação, mas acabou gritando com Bruno, que tropeçou em uma das cadeiras e quase derrubou a mesa de bebidas. Enzo começou a chorar alto, os olhos arregalados de medo, e correu na minha direção. — Não deixa a tia Mari morrer! — ele soluçava, abraçando minha perna. — Já perdi minha mãe! — Ei, meu amor... — tentei falar, segurando a barriga, sentindo outra contração intensa. — Eu não vou a lugar nenhum. Tô aqui, com você. Caio me pegou nos braços sem pensar duas vezes. O ex-traficante, o homem de ferro, carregando a mulher dele como se fosse feita de porcelana. — Sai da frente! — ele gritou, já se dirigindo ao carro. Ninguém ousou contrariá-lo. Melissa correu para abrir a porta, Bruno tentava ligar o carro mas tremia tanto que Caio o empurrou para o banco do passageiro e assumiu o volante, mesmo com as perna