Narrado por MarianaO dia começou igual aos outros: a luz fraca entrando pelas frestas das janelas, cortinas grossas mal desenhadas, e o leve eco dos passos dos vapores nos corredores. Eu abri os olhos e senti novamente o peso enorme da casa segura. As paredes me cercavam, mas não havia muralhas de pedra — apenas seguranças, câmeras e portas blindadas. Na prática, era um castelo, mas para mim parecia uma gaiola.Levantei devagar, observando a sala silenciosa. Havia um sofá enorme, uma televisão sempre ligada em canais que falavam de violência e “soluções”, e à frente, duas portas que davam para quartos trancados. Cada manhã, eu fazia o mesmo caminho: passava pelos vapores que me cumprimentavam com acenos contidos — Tavinho, Aline, Tuca. Eles eram leais ao Rei, carregavam armas e promessas de proteção, mas não trocavam uma palavra além da necessidade. A cada vez que eu cravava os olhos em suas fardas escuras, sentia um frio na espinha. Não era hostilidade; era o reconhecimento de que e
Narrado por MarianaEu já devia ter aprendido que paz demais era sinal de que alguma merda estava prestes a acontecer.A noite estava abafada, o plantão corria num ritmo quase entediante no Hospital Geral do Norte, e o café da máquina tinha gosto de arrependimento. Eu me recostava na parede do corredor, revisando prontuários, tentando manter a mente ocupada com algo que não me lembrasse o porquê de eu estar ali — ou melhor, o que eu estava tentando esquecer.Foi quando o rádio interno chiou, seguido por passos apressados e olhares trocados entre os plantonistas. Antes que eu pudesse entender, um dos seguranças do hospital apareceu com olhos arregalados, suando frio.— Dra. Mariana... é melhor a senhora vir comigo.— Aconteceu alguma coisa? — perguntei, já me colocando de pé, instintivamente ajustando o jaleco.Ele hesitou. — Não é... comum. Mas... ele tá pedindo pela senhora.— Ele quem?O segurança engoliu em seco.— O Rei.Eu congelei. O nome soou como um trovão. Eu já tinha ouvido
Narrado por ReiEu nasci no meio da merda.E fui me tornando ela.Não tive escolha. Quando se cresce cercado de morte, você aprende a lidar com ela cedo. Meu pai era apenas mais um nome riscado em uma lista de acertos. Minha mãe virou estatística antes de eu completar sete anos. Depois disso, o mundo me ensinou tudo que eu precisava saber: se você não impõe respeito, você vira alvo.Aos quinze, já tinham me dado apelido. "Reizinho", diziam. Achavam graça. Eu achava útil.Aos vinte e três, já mandava em quatro morros e dois bairros nobres, com sangue na camisa e grana no colchão.Agora... aos trinta, sou o nome sussurrado com medo, o homem que a polícia não encosta e que até os chefes das outras bocas observam com cuidado.O Rei.Mas naquela noite, enquanto o sangue escorria da minha cintura, enquanto sentia o peso da morte quase encostar no meu ombro, eu só conseguia pensar nela.Na médica de boca suja que me encarou como se eu fosse qualquer um.Mariana.Ela me tirou a bala. E levou
Do terraço mais alto da minha casa, eu observava as luzes da cidade como quem observa um império que construiu com as próprias mãos. Lá embaixo, as vielas serpenteavam entre casas coladas, crianças brincando com o que restava de inocência, e os olhares atentos dos meus soldados protegendo as bocas. A guerra não para. Só muda de endereço. O Morro da Rocinha sempre foi meu. Desde o dia que eu coloquei o primeiro vapor armado lá, já era meu por direito. Quem entrava sem permissão, caía sem aviso. Agora o Alemão queria tomar o que é meu? Ele ia engolir o próprio sangue. Mas em meio a toda essa guerra eu não podia deixar de pensar nela. Mariana. A médica que salva vidas e não teme sequer a própria. Um dos caras que seguiu ela, o Menor L, me disse que ela saiu do plantão às três e foi direto pra casa. Chegou de táxi. Nem olhou pro lado. Subiu as escadas do prédio com o jaleco pendurado no braço. Ela mora a uns quinze minutos da base. Perto demais pra estar tão longe da minha mão.
Narrado por MarianaEu costumava amar o silêncio. A calma depois de um plantão pesado. O som abafado das minhas próprias batidas cardíacas enquanto caminhava de volta pra casa. Mas hoje, o silêncio me apavora.Não sei se é só impressão... ou se tem mesmo alguém me observando.Desde aquela noite em que costurei um traficante — o tal "Rei" da Rocinha — algo mudou. Não só dentro de mim, mas ao meu redor também. É como se a sombra dele tivesse me seguido pra casa. Como se os olhos dele nunca tivessem saído de cima de mim.Tentei ignorar. Tentei racionalizar.Mas até isso está falhando.[...]— Mariana, ei! — A voz de Camila, minha colega de plantão, me tirou do transe.— Oi, desculpa. Tô meio aérea hoje.— Percebi. Desde que chegou, tá parecendo que viu um fantasma.Camila era aquela pessoa que, mesmo no meio do caos, encontrava tempo pra rir. Médica também. Dois anos mais nova que eu, mas com uma coragem que eu invejava.— Só não dormi bem — menti.— É aquele caso da bala na cintura, né
Narrado por MarianaO hospital estava mais silencioso do que o normal naquela manhã.O tipo de silêncio que antecede alguma tempestade. Aquele que faz a gente olhar por cima do ombro, mesmo sabendo que não tem ninguém atrás. Que faz o coração apertar sem explicação. Eu já tinha aprendido a não ignorar esses sinais.Entrei na ala ortopédica com os olhos fixos na prancheta. João já tinha me avisado no começo do plantão que o paciente da fratura — aquele mesmo — ainda estava internado. "Alemão", ele disse, como quem cuspia o nome. "Tá lá ainda, cheio de sorrisinho."— Vai lá ver como ele tá? — João perguntou, com aquele ar maroto de sempre. — Ou vai evitar ele também?— Vou fazer o meu trabalho. É diferente.— Claro, doutora. Só cuidado, dizem que esse cara é mais perigoso do que parece.Respirei fundo.Não era novidade. Desde a primeira vez em que tratei daquela fratura no braço esquerdo — dias atrás —, eu já sentia o incômodo. Era mais do que o típico desconforto por tratar alguém envo
Narrado por ReiO rádio chiava no canto da sala enquanto eu terminava de enrolar mais um baseado. O vento da manhã ainda tava úmido, carregando aquela fumaça suja que sobe do asfalto molhado lá de baixo. A Rocinha respirava em silêncio, mas o que vinha dentro de mim era puro trovão. Desde a última noite eu não dormia direito. Aquela cena da Mariana mexendo nos curativos, os olhos dela cravados nos meus, ainda dançava na minha mente. Só que hoje... hoje o bagulho mudou de figura.— Chefe — Cebola entrou devagar, sem levantar a voz — a informação chegou.Levantei o olhar.— Fala logo.— A médica cuidou do Alemão. Ele deu entrada no Hospital da Rocinha, ficou sob os cuidados dela. E... teve caô.Fechei a mão devagar, o sangue fervendo até a ponta dos dedos.— Que tipo de caô?— Dizem que ele deu em cima dela. Pegou no braço dela, chamou de bonita. Uma enfermeira contou que ele tentou segurar a mão dela depois do curativo. Mariana deu uma cortada, saiu da sala, mas ele ficou falando merda
Narrado por MarianaO dia amanheceu abafado, e como de costume, eu já estava a caminho do Hospital antes mesmo do sol nascer completamente. O calor impregnava as paredes do morro como se o concreto fervesse, e dentro da minha cabeça, a sensação era a mesma. Os últimos plantões estavam me consumindo de uma forma cruel. Não apenas pelo número de casos, que aumentava diariamente, mas pela estrutura do hospital, que estava ruindo.Faltava tudo. Desde luvas descartáveis até antibióticos. As lâmpadas da emergência piscavam, algumas nem acendiam mais. O refeitório funcionava com doações, e o gerador falhava com frequência. A gente já tinha feito vaquinha, campanhas, pedidos desesperados a órgãos públicos, mas ninguém parecia se importar com um hospital enfiado no meio do morro.Era desesperador. Era humilhante.Entrei pela porta dos fundos como sempre, já que a recepção estava com a fechadura quebrada — mais um item na lista interminável de problemas. Cumprimentei alguns colegas com um aceno