O acordo de sangue

A presença de Caio Harlow dentro daquela cabana era como a de um predador que invadira o covil de sua presa. O ar ficou pesado, quase irrespirável. Seus olhos, frios e calculistas, percorreram cada centímetro da miséria que nos cercava antes de retornarem para mim, e então para mamãe, que tremia visivelmente em sua cadeira.

— Três semanas — ele começou, sua voz suave como veludo, mas com uma lâmina escondida em cada sílaba. — Três semanas desde que meu filho, meu único herdeiro, está inconsciente em um leito de hospital, graças à “bondade” de vocês duas.

Meu estômago se contraiu. Inconsciente? A palavra ecoou na cabana como um tiro. Então Leonel não estava... morto?

— Havia câmeras de segurança no penhasco — ele continuou, tirando um telefone do bolso interno do paletó. — Câmeras discretas, é claro, para minha própria segurança. Eu vi tudo. Vi o que Leonel tentou fazer. — Seus olhos pousaram em mim e senti um calafrio percorrer minha espinha. — E vi o que sua mãe fez com a minha pedra ornamental favorita.

Ele tocou na tela do telefone e um vídeo começou a rodar. Era escuro, granulado, mas inconfundível: Leonel em cima de mim. Minha luta silenciosa. O rosto desesperado da minha mãe. A pedra. O baque. O corpo dele, imóvel.

Eu engasguei, enjoada.

— Ele está vivo — Caio disse, guardando o telefone. — Tecnicamente. Os médicos não sabem se ele acorda. E eu… fiquei assistindo, esperando, decidindo o que fazer com as duas assassinas que arruinaram minha família.

Mamãe soluçou, um som de puro desespero.

— Por favor, senhor Harlow… eu… eu só protegi minha filha…

— Silêncio! — a voz dele cortou o ar como um chicote. Mamãe se encolheu, como se tivesse sido fisicamente golpeada. — Você não tem direito de falar, Débora. Eu a tratei como parte da família, a alimentei, lhe dei um teto...  e você pagou tentando matar meu menino.

Ele deu um passo em minha direção. Seus sapatos caros estavam sujos de terra, mas ele não parecia se importar.

— Agora, aqui está o que vai acontecer: eu poderia entregar vocês duas para a polícia agora mesmo. A tentativa de assassinato é uma pena pesada em Noriah Norte. Débora nunca mais veria a luz do sol. E você, minha querida Caliana, seria cúmplice. Sua vida, acabada antes mesmo de começar.

Ele fez uma pausa, deixando as palavras pesarem:

— Mas… há uma alternativa. — sorriu, um sorriso que não alcançou seus olhos. — Você, Caliana, vai fazer um favor para mim. Um favor simples. Você vai seduzir um homem. Vai deixá-lo tirar essa preciosidade que guardou tanto tempo para o meu filho. — O modo como ele disse aquilo me encheu de nojo, pois foi cheio de sarcasmo. — E então, vai alegar, com provas, que foi sem o seu consentimento.

Eu balancei a cabeça, incrédula. Aquilo era loucura! Mas eu não tinha outra alternativa. Ele estava me dando uma chance ao menos, mínima que fosse, de proteger a minha mãe. E eu a agarraria com unhas e dentes:

— Que homem? — perguntei, minha voz trêmula.

— Zadock Bradford Asheton, CEO da Asheton Armaments, meu principal rival. — Seus olhos brilharam com ódio puro. — Ele estará em um evento no Palácio Presidencial. Uma festa de gala com a presença do Presidente de Noriah Norte. É quando o contrato de fornecimento de armas para o exército será decidido. Zadock é o favorito. Mas… um escândalo de violência sexual envolvendo o homem mais poderoso do setor… especialmente com uma jovem virgem… seria o suficiente para afundá-lo. O Presidente tem uma filha da sua idade, você sabe. Ele é… sensível a esses assuntos.

A audácia do plano era monstruosa. Era perverso. Era…

— Por que eu faria isso? — desafiei, me erguendo à sua altura, mesmo com as pernas tremendo. O medo ainda estava lá, mas agora era superado por uma raiva fervente. — Por que eu ajudaria você? Eu poderia alegar legítima defesa. O vídeo mostra o que Leonel estava tentando fazer comigo. Mostra que eu estava lutando. Qualquer tribunal…

Caio riu, um som seco e sem humor que cortou minha fala:

— Quanta ingenuidade! Você realmente acha que um tribunal seria justo com você? — Ele deu mais um passo à frente, invadindo meu espaço pessoal. O cheiro de seu perfume caro era sufocante. — Você é a filha de uma empregada. Eu sou Caio Harlow, dono da maior empresa de armas do país, amigo do Presidente, conselheiro de ministros. — Sua voz baixou para um sussurro venenoso. — Eu escolho os juízes. Eu controlo a mídia. A narrativa seria que você o seduziu, mudou de ideia e sua mãe, em um acesso de fúria, tentou matá-lo. A legítima defesa… sumiria. O vídeo… sumiria. E o que restaria seria a palavra de um homem respeitado contra a de duas mulheres… problemáticas.

Ele fez uma pausa, deixando a ameaça pairar no ar:

— Além do mais — acrescentou, seus olhos percorrendo meu corpo de cima a baixo — você bebeu voluntariamente. O beijou voluntariamente. O vídeo mostra isso também. Não seria difícil pintá-la como uma oportunista, alguém que veio do exterior com um único intuito: seduzir o herdeiro da Harlow Defense.

Meu sangue gelou. Ele estava certo. Na justiça dos ricos e poderosos, pessoas como nós sempre perdiam.

— Não, Cali! — a voz de mamãe irrompeu, cheia de pânico. Ela se levantou da cadeira, cambaleando. — Não faça isso, minha filha. Não se envolva nisso. Eu… eu prefiro ir para a prisão. Prefiro apodrecer numa cela do que ver você se prostituir por esse… esse demônio!

— Ah, que comovente! — Caio foi sarcástico. — A mamãe leoa protegendo sua cria! Mas pense, Débora, pense com clareza: com você na prisão, quem cuidaria dela? — Gesticulou em minha direção. — Sozinha no mundo, sem dinheiro, sem nome, marcada pelo meu ódio, Caliana não duraria um ano. Pelo menos dessa forma, as duas sobrevivem.

— É pior que a morte! — mamãe gritou, suas lágrimas escorrendo livremente. — Estará à mercê dele para sempre, Cali. Não cogite aceitar esta proposta. Manchará não só a sua reputação, mas também seu corpo, sua alma... Por favor, eu imploro... Não!

Eu observei o desespero genuíno em seus olhos. Minha mãe estava disposta a sacrificar sua liberdade, sua vida, para me poupar daquela humilhação. Mas o preço da recusa era alto demais.

— Ele está certo, mãe — minha voz estava surpreendentemente estável. — Na prisão, você não sobreviveria. E eu… eu não sobreviveria sozinha aqui sem você e com ele por trás, fazendo da minha vida um inferno — Respirei fundo, virando-me para enfrentar Caio. — Eu farei o que pede. Mas sob minhas condições.

Caio ergueu uma sobrancelha, surpreso, talvez até divertido com minha ousadia.

— Oh! – ironizou — E o que a assassina fugitiva exige?

— Primeiro: dinheiro. O suficiente para eu e minha mãe começarmos de novo em outro país. Quero também novas identidades e passaportes. E uma quantia que nos permita viver com conforto, sem precisarmos trabalhar por anos. — Enumerei, mantendo contato visual. — Segundo: sua garantia, por escrito, com testemunhas de sua confiança, de que, depois que eu fizer isso, você nunca mais vai nos procurar. E que estaremos quites.

— Caliana, não! — mamãe implorou, agarrando meu braço.

— Terceiro — continuei, ignorando o puxão dela, focada apenas em Caio — eu quero ver Leonel. Quero provas de que ele está vivo e em coma, como você diz. Nem que seja um vídeo recente ou uma nota no jornal do dia. Só assim eu acredito que não o matamos de verdade.

Caio me estudou por um longo momento, seus olhos escuros analisando cada centímetro do meu rosto. Havia um novo respeito em seu olhar, misturado com desdém.

— Astuta — murmurou, com um sorriso de satisfação surgindo em seus lábios. — Muito bem... você terá seu dinheiro e suas garantias. E também sua prova. — Concordou com a cabeça. — Minha palavra vale mais que qualquer contrato, mas entendendo sua… desconfiança. Providenciarei um documento assinado e o vídeo. Desde que Zadock Bradford Asheton seja publicamente humilhado e destruído.

— O que há por trás disso tudo? — perguntei, desconfiada. — É só… negócios? Vale tudo isso? Arruinar uma vida, manipular outra… só por um contrato?

— É sempre só negócios, minha cara — ele respondeu, sua voz gélida. — Zadock Bradford Asheton é mais que um obstáculo, ele é um espinho na minha carne. Um homem que se acha moralmente superior, mas que é tão sujo quanto eu. Ele merece cair. E você é a ferramenta perfeita para isso: bonita, discreta, nunca antes vista nos locais os quais ele frequenta... e virgem... diferente de tudo que ele costuma pegar por aí. E com uma dívida impagável para comigo. — Olhou para mamãe com desprezo. — Afinal, sua mãe deixou meu herdeiro praticamente morto. Agora, eu preciso fechar o maior negócio da minha vida, que é prover o exército de Noriah Norte com as melhores armas. E Zadock Bradford Asheton está no meu caminho. Você vai removê-lo.

Ele se virou para sair, mas parou na porta:

— E Caliana? — disse, sem olhar para trás. — Você precisará de um treinamento. Zadock não é um homem fácil de enganar. Ele desconfia de todos. Minhas assistentes virão buscá-la em uma hora. Vista-se adequadamente. — Ele finalmente olhou para trás, com um tom debochado, seu sorriso agora aberto e cruel. — Bem-vinda ao jogo, minha querida. Espero que você jogue para ganhar.

A porta se fechou atrás dele, deixando para trás o silêncio e o cheiro do seu perfume caro, que agora me dava náuseas.

Imediatamente, mamãe desabou nos meus braços, soluçando descontroladamente.

— O que nós fizemos, filha? — ela chorou, seu corpo tremendo contra o meu. — Onde eu te coloquei? Eu preferia mil vezes a cadeia!

— Mãe... — a acalmei, abraçando-a forte, mesmo com meu próprio coração estando em frangalhos. — Nós vamos sair dessa. Eu vou consertar isso. Vamos ter dinheiro e uma nova vida, longe daqui... e o principal: longe dele.

— À custa do que? — ela sussurrou, olhando para mim com os olhos vermelhos e inchados. — À custa da sua inocência? Da sua alma? De se tornar uma… uma…

— À custa da nossa sobrevivência — interrompi, secando minhas próprias lágrimas. — Ele não nos deixou escolha, mãe. É isso ou perder você para sempre. E eu não vou deixar isso acontecer.

Mas enquanto segurava minha mãe, uma parte de mim se perguntava se alguma coisa poderia consertar o que estava prestes a acontecer. Eu havia feito um acordo com o diabo. Eu me ofereci como isca em uma guerra entre titãs. E o preço, eu sabia, seria muito mais que dinheiro. Seria um pedaço de quem eu era, um pedaço que talvez nunca mais eu recuperasse.

Em uma hora, as assistentes de Caio viriam. Em três dias, eu conheceria Zadock Bradford Asheton. E minha vida, assim como tudo que eu pensava saber sobre certo e errado, mudaria para sempre.

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