Assassinas fugitivas

O tempo corria lento e doloroso naquele casebre úmido no meio do nada. Três semanas. Vinte e um dias desde aquela madrugada no penhasco. Vinte e uma noites em que eu fechava os olhos e via o sangue escuro de Leonel se espalhando pelo seu rosto sob os primeiros raios de sol da manhã.

A casa que estávamos era uma estrutura de madeira podre, abandonada há anos nos confins do início de uma área verde, distante da costa. Não tinha água corrente. A luz vinha de velas e de um lampião a querosene que cheirava forte e fazia sombras dançarem nas paredes, como fantasmas nos observando. E sabíamos que aqueles fantasmas não estavam só ali nas paredes. Haviam agora fantasmas dentro de nós, os quais carregaríamos para sempre me nossas mentes e corações.

Mamãe havia me trazido para aquele lugar naquela mesma manhã, após enterrarmos o corpo de Leonel em um local que nem eu sabia onde era. Ela se moveu com uma frieza que eu não conhecia, uma determinação de sobrevivência que superou até o seu próprio desespero.

Agora, porém, aquela frieza havia derretido, deixando surgir uma mulher quebrada, arrependida, perdida.

Ela passava os dias sentada numa cadeira de balanço enferrujada perto da janela, encarando a área verde e densa sem realmente ver. Seus olhos, antigamente cheios de vida e luz, agora eram opacos, vazios. Ela mal comia, pouco falava. Às vezes, eu a ouvia sussurrar no escuro:

— Eu matei um menino. Matei o filho dele!

Era um mantra de culpa que ecoava na casa silenciosa, mais alto que o vento que assobiava pelas frestas das paredes durante as noites em que tentávamos, em vão, dormir.

Minha própria dor era como a de um animal ferido. A violência que Leonel havia infligido ao meu corpo doía menos que a traição. A dor física havia cedido lugar a hematomas roxos e amarelos que cobriam meus seios, minha cintura, meus pulsos. Mas a ferida que ele deixou na minha ideia de amor, de desejo, de confiança… essa ainda sangrava.

Eu era a filha da empregada que se achou importante o suficiente para sonhar com o príncipe. E o príncipe mostrou que era apenas um monstro com coroa.

Mas eu não podia me dar ao luxo de desabar. Não ainda. Minha vida estava apenas começando. Eu tinha concluído a faculdade e nem havia pego o diploma ainda, que viria em breve, me abrindo um mundo de possibilidades com as quais sonhei a vida inteira.

A cada dia que passava, o medo crescia. O medo de que alguém tivesse nos visto. O medo de que a polícia batesse na porta. O medo de que Caio Harlow, com todo o seu poder e conexões, já estivesse atrás de nós.

E havia outra coisa. Uma coisa que não fazia sentido. O silêncio.

Nos primeiros dias, eu esperava a todo momento ouvir no velho rádio a pilha que trouxemos notícias sobre o desaparecimento de Leonel Harlow, o herdeiro de uma das famílias mais ricas e poderosas de Noriah Norte. Um playboy conhecido, fotogênico, que vivia nas colunas sociais.

Mas não veio nada. Nenhum alerta de desaparecimento. Nenhuma reportagem especial. Nenhuma menção sequer. Era como se Leonel Harlow nunca tivesse existido.

— Mãe, você não acha isso estranho? — perguntei uma noite, enquanto mamãe e eu tentávamos nos alimentar de algo no jantar — Ninguém está procurando por ele.

Ela nem olhou para mim.

— Eles esconderam — ela murmurou, com a voz rouca. — Gente como eles… não suja a própria roupa em público. Lavam em casa.

Fazia sentido. Caio Harlow não era o tipo de homem que admitiria que seu único filho havia sido morto, supostamente, por sua empregada. Seria uma humilhação muito grande. Uma mancha no nome deles.

Mas mesmo assim… algo não encaixava. Se Caio sabia o que aconteceu, por que não veio atrás de nós antes? Por que o silêncio absoluto?

— Talvez ele não saiba — sugeri, tentando me agarrar a um fio de esperança. — Talvez pensem que Leonel fugiu, se afogou ou se acidentou…

Mamãe balançou a cabeça lentamente, seus olhos ainda fixos na janela escura.

— Ele sabe, filha. Um homem como Caio Harlow sabe tudo. Ele está nos dando corda. Nos deixando entrar em pânico. Nos assustando até que uma de nós cometa um erro.

Suas palavras me gelaram. Ela estava certa. Era exatamente algo que Caio faria. Um jogo de gato e rato. Ele era o gato, e nós éramos os ratos, correndo sem rumo, esperando a patada final.

Eu sabia que nossa vida estava destruída. Minha faculdade, meu futuro como química, meus sonhos… tudo havia evaporado naquela noite. Tudo o que restava era eu e mamãe e o segredo pesado que carregávamos.

Eu precisava fazer algo. Precisava ajudá-la. Mas como? Não tínhamos dinheiro. Não tínhamos para onde correr. Não tínhamos ninguém.

Numa tarde chuvosa, sentada no chão de terra batida da varanda dos fundos, eu observei mamãe enquanto ela balançava para frente e para trás naquela maldita cadeira de balanço, com os olhos fixos em algo que só ela podia ver. A culpa estava consumindo-a viva. E eu não sabia como tirá-la daquele mundinho que a estava engolindo vagarosamente.

— Mãe — eu chamei, minha voz rouca quase que por falta de uso. — Precisamos pensar no que fazer. Não podemos ficar aqui para sempre.

Ela nem sequer virou a cabeça quando disse:

— Para onde vamos, filha? — sussurrou, sem emoção. — O mundo é pequeno demais para esconder o que fizemos.

— Não foi “você” quem fez — eu disse, me levantando e me aproximando dela. Me ajoelhei ao lado da cadeira, colocando minha mão sobre a sua, que estava fria como gelo. — Foi nós. E foi para me proteger. Ele… ele ia me…

A palavra não saiu. A lembrança daquela noite ainda era muito vívida, muito dolorosa.

— Era o filho dele, Cali — ela sussurrou e finalmente encarou-me. E seus olhos estavam cheios de lágrimas. — Caio Harlow não vai descansar até nos encontrar. Ele sabe. Eu sei que ele sabe.

Um calafrio percorreu minha espinha. Ela estava certa. Caio não era um homem que aceitaria o desaparecimento do seu único herdeiro. Ele moveria céus e terra para descobrir o que aconteceu.

— Então temos que sumir de verdade — insisti, segurando sua mão com mais força. — Podemos ir para Noriah Sul. Pegar trabalhos em áreas rurais. Ninguém nos conhece lá. — Na verdade, ninguém nos conhecia nem ali. Éramos praticamente invisíveis... até agora.

Mamãe balançou a cabeça lentamente e uma lágrima escorreu pelo seu rosto levemente enrugado, judiado pelo tempo e trabalho pesado.

— Ele tem um arsenal, filha. Tem homens. Caio vende destruição para o mundo. Como duas mulheres vão fugir de um homem como esse?

A impotência me atingiu. Ela estava desistindo. E se ela desistisse, nós estaríamos perdidas.

Naquela noite, enquanto a chuva batia forte no telhado de zinco, eu me deitei no colchão fino no chão e prometi a mim mesma que encontraria uma maneira de sair daquele lugar. Eu era formada em química. Não era uma pessoa burra, pelo contrário, era bem inteligente. Talvez pudesse falsificar documentos. Ou conseguir dinheiro de outra forma. Qualquer coisa para tirar mamãe daquele lugar e daquela escuridão.

Três dias se passaram. A tensão na casinha era palpável, um fio esticado prestes a arrebentar. Mamãe mal saía da cadeira. Eu começava a me aventurar mais longe naquela mata densa, caçando frutas silvestres e tentando encontrar fontes de água mais limpa. Cada som me fazia pular. Cada galho que quebrava soava como um passo de aproximação.

Foi numa manhã enevoada, enquanto eu recolhia lenha perto da linha das árvores, que ouvi um som que não pertencia à floresta.

O silêncio. Os pássaros pararam de cantar de repente. O ar ficou pesado, carregado de uma ameaça invisível.

Meu coração disparou. Joguei a lenha no chão e corri de volta para a casa, meu instinto gritando que algo estava terrivelmente errado.

— Mãe! — gritei, entrando pela porta dos fundos. — Tem algo errado!

Ela estava na cadeira, totalmente ereta, alerta, seus olhos com um medo irreconhecível. Ela ouviu também.

Nós ficamos imóveis, escutando aquele nada.... apenas o silêncio opressivo.

E então, veio o som que gelou o sangue nas minhas veias.

O ronco suave de um motor de carro se aproximando pela estrada de terra que levava à nossa casa isolada. Uma estrada que ninguém usava. Uma estrada que não levava a lugar nenhum.

— Cali — mamãe sussurrou, seu rosto pálido — É ele!

Não precisava dizer quem.

Nós nos olhamos, unidas pelo mesmo pavor e medo. Não tínhamos para onde correr. Não tínhamos como nos esconder.

Os passos foram lentos, deliberados. Dois pares de sapatos pesados no chão de terra do lado de fora da frente da casa.

A porta da frente era apenas uma tábua podre trancada por dentro com uma madeira cruzada. A batida na porta não foi forte. Foi pior: fria, calma, certeira, como se quem quer que estivesse lá fora já soubesse que éramos só nós ali dentro.

Nós não nos movemos. Não respiramos.

A batida veio novamente. Mais insistente desta vez.

E então, uma voz. Uma voz que eu conhecia de anos enquanto ouvia as conversas dele bebendo drinks na varanda da mansão. Uma voz que era suave como seda e fria como aço.

— Débora! Caliana! — a voz de Caio Harlow ecoou do lado de fora. — Sei que estão aí. Abram a porta. Vamos fazer isso de forma civilizada.

Mamãe agarrou meu braço, suas unhas cravando na minha pele. Seus olhos estavam cheios de pânico.

— Não abra — ela sussurrou, tão baixo que quase não ouvi.

— Se não abrirem em três segundos, meus homens arrombam a porta — Caio disse, sua voz ainda calma, mas agora com um tom de ameaça que não poderia ser ignorada. — Um… Dois…

Antes que ele chegasse a três, eu me mexi. Com as pernas trêmulas, cruzei o pequeno cômodo e empurrei a madeira que trancava a porta.

Caio Harlow estava do lado de fora, impecável em um terno cinza escuro, contrastando brutalmente com a pobreza ao seu redor. Seu rosto estava impassível, mas seus olhos… eles queimavam com uma fúria gelada que fez o ar sair dos meus pulmões.

Atrás dele, dois homens grandes seguravam armas caras e modernas, suas expressões eram contidas, mas a postura era prontidão para fazerem qualquer coisa que o chefe mandasse, mesmo que significasse matar a mim e minha mãe.

Caio não olhou para mim. Seus olhos passaram por cima do meu ombro e prenderam em mamãe, que ainda estava sentada na cadeira, encolhida, uma sombra da mulher que ela costumava ser.

Ele deu um passo para dentro da casa, seu nariz enrugando de leve com o cheiro de mofo e medo.

— Olha quem eu achei! — disse, sua voz um sussurro venenoso cheio de desdém e deboche. — As assassinas fugitivas.

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