6. Abusada

Rafael*

Eu devia saber que contratar uma babá nova seria um problema no minuto em que ela entrou na minha sala para a entrevista.

Eliza.

Pequena, nervosa… mas com um olhar firme, como quem acabou de decidir que não vai sair correndo, mesmo que queira. E tinha aquela maneira de responder que… irritava. Não por ser desrespeitosa, longe disso. Ela só era espontânea demais. Transparente demais. Viva demais.

E eu não tenho mais espaço pra esse tipo de coisa.

Quando a entrevista terminou, eu já sabia que ia contratá-la. Mesmo assim, passei o resto do dia tentando me convencer de que era só porque eu precisava urgentemente de alguém. Lucas e Alice estavam insuportáveis com a última babá, Márcia estava no limite, e eu não tinha tempo. Qualquer justificativa servia, desde que não fosse a verdadeira:

Ela me intrigou.

E isso é irritante.

No final da manhã, Henrique entrou na minha sala sem bater, como se a empresa fosse dele. Já veio falando antes mesmo de se sentar.

— Então? — jogou a pasta na poltrona. — Finalmente contratou alguém pra cuidar das crianças? Ou vamos continuar fingindo que a coitada da Márcia dá conta de tudo?

Revirei os olhos.

— Contratei. Já começou hoje.

— Ótimo. Estava na hora de parar de traumatizar seus filhos com essa sua cara de funeral.

— Henrique…

— Tá, tá. — Ele levantou as mãos. — Só estou dizendo a verdade. E… como ela é?

— É uma babá. — respondi, seco.

— Uau — ele ironizou. — Descritivo. Parabéns.

Ignorei. Não dou corda.

— Lucas já implicou com ela — falei, abrindo um arquivo na tela.

Henrique riu.

— Claro que implicou. Lucas implica até com o ar que ele respira. E a Alice?

— Ainda não sei.

Ele piscou devagar, me estudando como se fosse psicólogo.

— Tá estranho. Que foi?

— Nada.

Verdade e mentira ao mesmo tempo. Nada aconteceu. Mas alguma coisa mexeu comigo.

Ridículo eu estar pensando nisso.

Ridículo eu lembrar do jeito que ela mexia nas mãos enquanto falava comigo.

À tarde, Henrique insistiu em ir comigo “ver as crianças”. Tradução: se meter na minha vida. Como sempre.

Quando entramos em casa, as crianças estavam na sala. E Eliza também. Sentada no sofá, celular na mão, parecendo exausta, ou recarregando energia depois de mais uma batalha com Lucas.

— Boa tarde, campeões! — Henrique abriu os braços e Alice foi direto pra ele.

Claro. Meus filhos amam esse idiota. Ele mima demais, estraga a disciplina toda. É um bom amigo, mas às vezes me tira do sério.

Eliza levantou os olhos quando entramos. Ainda segurava o celular, mas claramente prestava atenção em nós.

— Isso aqui é hora de trabalho, não de lazer — falei, seco.

Ela piscou, mas não abaixou a cabeça.

— As crianças estão assistindo ao desenho. Eu só estava conferindo a rotina de amanhã.

Arqueei a sobrancelha. Respondona.

— Já arrumou a sala de brinquedos? Estava uma zona.

— Sim, senhor. Tudo arrumadinho.

— E o quarto? Não quero ver roupa fora do lugar.

— Tudo no seu devido lugar — disse ela, sorrindo — Fique à vontade para fazer a vistoria.

Muito abuso. Essa novata está pedindo demissão sem nem perceber.

— Cara, pega leve — Henrique riu, já se aproximando dela. — Sou Henrique. Não liga pra ele não. Rafael é insuportável, mas não morde.

Ele a cumprimentou. Ela ainda sentada.

Cheguei perto, inclinei-me o suficiente para que só ela ouvisse.

— Não se acostume a falar comigo desse jeito.

Eu precisava colocar essa garota na dela.

Porque, se eu não fizesse isso, o que vem depois? Ela entrando na minha rotina? Me desestabilizando? Mexendo no que eu passei anos tentando manter trancado? O que passei anos pra construir.

Não. Não vou permitir.

Henrique conversava com ela, animado. Eu fui até a cozinha, tomei um copo de água, tentando ignorar que meus ombros estavam tensos por… nenhum motivo relevante.

Quando voltei, os dois ainda estavam no sofá, conversando.

— Henrique. — chamei firme. — Você veio aqui pra ver as crianças ou a babá?

Ele arqueou a sobrancelha, sorrindo como quem achou ouro.

— Vim ver as crianças — respondeu, debochado. — Mas nada me impede de aproveitar as boas companhias.

Olhei para Eliza.

— Você pode ir.

Ela assentiu rapidamente e se levantou. Henrique, claro, se apressou para se despedir.

— Foi muito legal te conhecer. E a oferta continua de pé. É só falar.

— Obrigada — ela sorriu, meio tímida.

Quando ela fechou a porta atras de si, virei para ele.

— Oferta?

Henrique cruzou os braços, sorrindo como quem esperava minha pergunta.

— Vou mostrar uns lugares da cidade pra ela. Você não me contou que ela era tão bonita.

Fechei a cara na hora.

— Nem comece, Henrique.

— O quê? É só um fato. Vai dizer que não reparou?

— Não.

— Não reparou? — ele riu — Claro. E eu que sou o mentiroso da dupla.

— Não comente desse jeito da babá dos meus filhos.

Ele ergueu as sobrancelhas.

— Ciúmes? Logo você?

— Estou protegendo meus filhos.

— Ah, claro. Porque eu costumo sair por aí seduzindo funcionárias com crianças traumatizadas olhando… — ele ergueu as mãos. — Relaxa. Eu nunca faria nada que prejudicasse eles. Mas ela é linda. Isso é inegável.

Rosnei algo que nem eu entendi. Ele caiu na risada.

— Além disso — disse, provocando — gostei dela. Ela não abaixa a cabeça pra você.

Revirei os olhos.

— Ela é abusada, isso sim.

Henrique sorriu.

— Perfeita pra você.

— Pra mim?

— Sim, Rafael. Pra você. Alguém que finalmente te responda em vez de sair correndo. Você vive cercado de gente que te trata como se fosse uma estátua. Talvez seja bom alguém que mexa com você… e com essa cara bonita.

— Henrique…

— Tá bom, tá bom. — Ele riu alto. — Mas que ela te afetou, te afetou.

— Henrique.

— O quê?

— Cala a boca.

Ele gargalhou, satisfeito, enquanto eu balançava a cabeça, irritado comigo, com ele, com tudo.

E principalmente com o fato de que, mesmo tentando evitar, a imagem dela respondendo pra mim… ainda estava presa na minha mente.

Como se tivesse deixado uma marca.

E eu odeio marcas novas.

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