5. Claro, senhor

Cheguei na mansão dos Monteiro às seis e quarenta e cinco da manhã, respirando fundo como quem se prepara pra entrar numa arena. Segundo dia. Segundo round. E vamos ver se hoje as crianças lembram que eu existo… ou se continuo sendo uma planta decorativa altamente qualificada.

Entrei pelos fundos, como Márcia tinha me instruído. Encontrei os dois na sala de jantar: Márcia tomando café e Lucas terminando o dele. Ele estava sorrindo pra ela — até me ver. A expressão apagou como se tivesse sido puxada pelo interruptor.

— Bom dia — tentei, otimista.

— Bom dia, Eliza — respondeu Márcia, simpática. — Ele só precisa colocar o tênis antes de sair.

— Certo.

Lucas levantou da mesa como se estivesse cumprindo uma sentença judicial. Segui atrás dele até o quarto. Ele colocou o tênis… e ficou olhando pros próprios pés, imóvel. Parecia travado num videogame.

E então eu entendi.

Ele não sabia amarrar os cadarços.

Ajoelhei ao lado, com cuidado pra não assustar.

— Posso te ajudar? — perguntei num tom suave, quase sussurro.

Ele demorou, mas esticou o pé. Amarrei devagar, mostrando cada passo.

— Faz assim… laço… passa por dentro… puxa. Se quiser, depois eu te ensino pra você fazer sozinho.

Ele observou tudo com atenção intensa, mas, quando terminei, simplesmente se levantou e foi embora. Sem palavra. Sem gesto. Mas também sem recusar. Um progresso microscópico… ainda assim, progresso.

O motorista o levou minutos depois.

Desci e ajudei a cozinheira com a louça. Conversamos sobre a rotina, e então fiquei esperando Alice acordar. Às nove, fui chamá-la como Márcia pediu. Ela estava toda enroladinha no cobertor, com o rosto amassado de sono.

— Bom dia, Alice — falei baixinho, tocando seu braço.

Ela abriu os olhos devagar, sem susto. Não reclamou do banho, deixou que eu penteasse seu cabelo com cuidado e até ficou sentadinha enquanto eu fechava os botões do vestidinho. Era tímida, mas mais receptiva do que Lucas.

— Quer brincar com os bloquinhos? — perguntei.

Ela assentiu e foi até a sala de brinquedos. Enquanto ela montava torres coloridas, peguei o celular e comecei a pesquisar:

Como criar vínculo com crianças tímidas.

Estratégias para aproximar irmãos fechados.

Como lidar com crianças em luto.

Eu só tinha suposições. Não sabia detalhes da vida deles. Só que perderam a mãe, e que o pai… bem… o pai parecia carregar os próprios fantasmas.

A manhã passou arrastada, igual aquelas aulas em que o professor fala sobre impostos e a gente só pensa em ir embora.

Às 12h40, Lucas chegou da escola. O silêncio veio junto, como sempre. Ele tomou banho, e enquanto isso abri a mochila pra verificar deveres e recados.

Encontrei dois papéis dobrados.

Uma autorização pra participar de um teatro e um convite pra uma reunião onde teria a apresentação do teatro.

Saí do quarto dele quando ouvi o chuveiro desligar.

— Lucas, olha que legal — falei, tentando parecer animada e não desesperada por qualquer sinal de interação. — Vai ter apresentação na escola. Quer convidar seu pai?

Ele pegou o papel da minha mão sem sequer olhar pra mim.

— Não.

— Por quê?

— Ele não vai mesmo.

Como se tivesse dito: “O céu é azul”. Fato incontestável.

Depois apertou o convite contra o peito e completou:

— Vou dar pro tio Henrique.

— Você pode convidar os dois…

— Não.

Guardou o convite na gaveta e saiu andando.

Fui até a cozinha, ainda com aquilo martelando dentro de mim.

— Márcia… encontrei uma autorização do Lucas. E um convite da escola. Devo falar com o Rafael?

Ela suspirou.

— Fala. Ele sempre assina. Mas ir a eventos… não vai. Nem reunião. Desde que a mãe dos meninos façeceu.

E aquilo me atingiu. Não como crítica ao Rafael… mas como dor pela criança. Eu não era mãe, não entendia esse tipo de perda, mas sabia o suficiente pra reconhecer abandono emocional.

Passei a tarde tentando aproximar as crianças de mim. Tentando mil táticas que vi na internet. Mas no fim… tudo se resumia a paciência. A dar tempo. A estar ali.

Quando ouvi o barulho da porta no fim da tarde, meu estômago deu um salto. Mas respirei fundo, reuni coragem e fui até o corredor.

Rafael entrou pela porta com o habitual ar de nuvem carregada.

— Senhor Rafael… — comecei. — Preciso falar com o senhor um instante.

Ele me encarou como quem avalia um pedido de empréstimo a juros negativos.

— Agora?

— É rápido.

Ele caminhou até o escritório. Entrei atrás, tentando ignorar o frio na barriga.

— O que foi? — perguntou seco, parando atrás da mesa.

Entreguei a autorização.

Ele pegou, assinou sem ler muito e devolveu como se fosse só mais um documento entre milhares.

— Também chegou esse convite… — falei, tirando do bolso. — É da apresentação na escola. Vai ser junto com a reunião de pais.

Ele assentiu, impassível.

Nada.

Nenhuma reação.

— O senhor vai? — arrisquei, tentando ser respeitosa sem parecer intrometida.

Ele ergueu o rosto devagar, como se a pergunta tivesse irritado uma parte específica da alma dele.

— Você é paga para cuidar das crianças, Eliza. Não para se meter na vida deles.

A frase caiu pesada.

Gelada.

— Claro, senhor — respondi, contendo a vontade de dizer mil coisas. — Com licença.

Saí do escritório com o coração apertado. Não por mim.

Mas por duas crianças que já estavam acostumadas a esperar… e não receber.

Sai da casa naquele dia certa de que eu não conseguiria ficar no claro senhor por muito tempo.

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