Mundo de ficçãoIniciar sessãoO sol daquela manhã parecia ter acordado de bom humor e, por milagre, Sophia também.
— Hoje é dia de fazer bolo de nuvem! — anunciou, pulando na minha cama antes mesmo do despertador tocar.
— Bolo de nuvem? Isso existe? — perguntei, esfregando os olhos.
— Existe sim! É feito com açúcar de estrela, leite de unicórnio e um pouquinho de magia. A mamãe... — ela parou de repente, como se tivesse tocado em algo quente.
Meu coração apertou.
Mas não forcei. Só sorri e sentei na beirada.— Então vamos inventar a receita hoje. Mas aviso: se não der certo, a culpa é do unicórnio.
Ela riu, jogando os braços no meu pescoço.
Enquanto preparávamos a “massa mágica” na cozinha (leite normal, farinha, ovo e muito açúcar escondido por ela), Sophia falava sem parar, contando histórias de quando era “bebezinha” e “morava no céu com os anjos”.
— A mamãe morava no céu comigo — disse, de repente, com a colher na mão. — Mas um dia ela sumiu.
— Sumiu como? — perguntei, com cuidado.
— Tipo... puff! — fez um gesto com as mãos. — Foi dormir e nunca mais acordou aqui. Mas eu acho que ela tá em outro lugar. Olhando.
— E você sente falta?
Ela assentiu, os olhos marejados, mas segurando firme a colher.
— Sinto. Mas tenho medo que, se eu chorar muito, você também some.
— Eu não sumo, mocinha. Eu tô aqui.
— Até quando?— Até você não precisar mais de mim.— Eu vou precisar para sempre.— Então para sempre.Nós estávamos cobertas de farinha, rindo da tal farinha de nuvem, quando ouvimos o som de saltos batendo no mármore da entrada como se fossem marteladas.
Eu não estava pronta para conhecer a megera indomada que estava a minha frente.
— Quem é você? — perguntei.
— Ora, eu sou a tia da Sophia, me chamo Valentina. — Respondeu. — Você não vem dar uma abraço na titia? — Perguntou destilando fel.
Ela tinha o rosto afiado, sobrancelha arqueada, vestido preto justo demais para um encontro casual, óculos escuros mesmo dentro de casa. Parecia que carregava uma nuvem de fumaça sobre sua cabeça.
Vendo que a menina não iria, ela resolveu apelar para a baixaria.
— Que fofo — disse, com voz melada de veneno. — A empregada brincando de ser mãe.
Sophia se encolheu atrás de mim.
— Eu não sou empregada — falei, sem levantar os olhos da tigela. — Sou babá. E tô fazendo bolo com a Sophia.
— Babá... — repetiu, como se experimentasse um gosto azedo. — Quantas já passaram por aqui? Três? Quatro? Todas sumiram. Será que é o sofá? Ou será que é ele? — sorriu, apontando o queixo para o andar de cima.
— Valentina — disse Sophia, com uma voz pequena, mas firme. — A Mauren não vai sumir.
— Ah, é? — A mulher se ajoelhou, fingindo doçura. — E se um dia ela achar alguém melhor do que você para cuidar? Ou um lugar onde ela ganhe mais, que possa ter acesso a uma formação, que não precise vestir roupas de brechó?
Eu ia responder, mas Sophia foi mais rápida.
— Ela me ouve quando eu caio! — gritou, os olhos brilhando. — Ela come brócolis comigo! Ela conhece meu esconderijo! Você nunca veio aqui!
Valentina se levantou, ofendida.
— Essa criatura está enchendo sua cabeça com histórias. Você nem se lembra direito da sua mãe, querida. Talvez seja melhor eu conversar com seu pai sobre quem realmente tem autoridade aqui.
— Minha mãe sumiu — Sophia disse, de repente, com uma calma que assustou até a mim. — Mas você sempre esteve aqui e nunca me trouxe bolo.
Foi nesse exato momento que a porta da biblioteca se abriu.
Arthur desceu as escadas com passos firmes, terno ainda impecável, mas os olhos estavam em chamas.
— O que você está fazendo aqui, Valentina?
— Só vim ver como minha sobrinha está. E descobri que está nas mãos de uma... de alguém que não tem nem currículo.
Ele parou diante dela, alto, firme, sem gritar, mas com uma autoridade que fez até o ar ficar mais pesado.
— Mauren tem algo que você nunca teve: paciência com minha filha. Respeito por quem ela é. E coragem para ficar.
— Arthur, por favor... eu só...
— Você não foi convidada. Não tem permissão para vir aqui. E ninguém — olhou para mim, depois para Sophia — tem o direito de fazer minha filha se sentir abandonada de novo.
Valentina ficou pálida. Por um segundo, pareceu que ia retrucar. Mas, ao ver Sophia agarrada à minha blusa, desistiu.
— Isso não acabou — murmurou, antes de sair batendo os saltos ainda mais forte.
Quando o carro dela sumiu, Sophia se jogou no chão e começou a chorar — em um misto de raiva e alívio.
— Eu odeio quando ela vem — sussurrou. — Ela sempre fala da mamãe, mas nunca diz onde ela foi.
Mais tarde, Arthur pediu para falar com dona Cida em particular. Eu vi os dois na sala de jantar, ele com os punhos cerrados, ela falando rápido, gesticulando, com os olhos cheios d’água.
Quando terminaram, ele deu ordens ao chefe da segurança:
— A partir de hoje, ninguém da família da minha ex-esposa entra aqui sem meu consentimento. Nem Valentina. Nem minha sogra. Ninguém.
Larissa acenou com a cabeça, séria:
— Já atualizei o protocolo.À noite, depois que Sophia adormeceu abraçando um ursinho novo (que ela chamou de “Maurensinho”), fui até a biblioteca. Arthur estava de costas para a janela, de novo com um copo na mão, mas, dessa vez, era água.
— Preciso te contar uma coisa — falei.
— Eu já sei — respondeu, sem se virar. — Dona Cida me contou tudo.
— Não é só isso. É o que a Sophia disse sobre a mãe. Ela acha que a mãe “sumiu”. Mas não sabe o quê aconteceu. Ninguém nunca contou?
Ele se virou. Estava cansado. Mas, pela primeira vez, sem armadura.
— É verdade.
— O quê?— Ela desapareceu há quatro anos, não deixou aviso, nem bilhete. Nunca encontramos o corpo. Nada.— Mas, por quê?— Tinha começado a ficar ausente. Falava sozinha. Dizia que ouvia vozes. Achava que eu estava com outra. Que a casa era perigosa. Um dia, saiu pra levar Sophia na escolinha e nunca voltou. O carro foi encontrado dias depois, a 200 km daqui, com a mala aberta, roupas dela dentro, mas sem ela.— Meu Deus...
— A polícia investigou. Psiquiatras disseram que ela teve um colapso psicótico. Talvez uma fuga dissociativa. Mas como não há corpo, não há morte legal. E sem isso... — ele passou a mão no rosto — eu não posso seguir em frente. Nem pra mim. Nem pra ela.
— E Sophia?
— Ficou comigo. Mas desde então... — ele olhou para o corredor do quarto dela. — Nenhuma babá aguentou mais que um mês. Todas diziam que a menina era “difícil”. “Rebelde”. “Apegada demais”.
— Ela não é difícil. Ela tá perdida.— É... — ele sorriu, triste. — Mas só você viu isso.Ficamos em silêncio por um tempo.
— Você acha que ela pode voltar? — perguntei, baixinho.
— Não sei. Mas se voltar não sei se ainda é ela. Ou só uma sombra do que foi.
— E se ela vier buscar Sophia?
Ele me encarou. E, pela primeira vez, vi medo nos olhos dele.
— Então eu rezo para que, quando isso acontecer, minha filha já saiba quem realmente ficou.
Ele se virou para ir embora, mas parou na porta.
— Obrigado por não ter fugido hoje.
— Eu prometi que não sumia.— Promessas são fáceis.— Mas as minhas não.Ele assentiu. E saiu.
Naquela noite, fiquei olhando para o teto, pensando na mulher que um dia foi mãe, esposa, dona daquela casa e que, de repente, virou um buraco no meio da história.
E eu, a babá das roupas de brechó, estava ali, tentando costurar os pedaços com brócolis mágico, histórias de monstros bons e um amor quieto que ninguém esperava.
Mas se a mãe voltar...
Será que meu amor vai ser o suficiente?






