A Princesa da Casa
A família Duarte era conhecida em toda a Rússia e reverenciada nos círculos mais influentes da Suíça. Seu nome abria portas em grandes corporações, e seu brasão, gravado em cartas, contratos e taças de cristal, era sinônimo de prestígio e poder. Originários de uma linhagem antiga, os Duarte haviam transformado heranças de terra em impérios de negócios. O frio europeu não gelava seus corações — apenas os mantinha ainda mais firmes, calculistas, inabaláveis. Entre todos, Amanda talvez fosse a mais inesperada das herdeiras. Nascida longe dos salões dourados e dos jantares diplomáticos, ela fora criada por Ana e Augusto como filha, e agora carregava o nome Duarte com a mesma elegância e firmeza que os legítimos descendentes de sangue. Apaixonada pela vida, Amanda agora também carregava nas costas uma responsabilidade que faria muitos sucumbirem: ajudava na administração das empresas da família. Seu olhar era agudo como o da tia Ana, sua língua, afiada como a das mulheres que fundaram o clã. José, o irmão mais velho, comandava a área de tecnologia com precisão cirúrgica. João, o irmão do meio, era o diretor geral — estrategista, carismático, e com a ambição cravada no peito como um emblema de guerra. Amanda dividia seu tempo entre os escritórios da corporação, localizados no coração de São Petersburgo, e as terras geladas das fazendas ao redor da cidade. Estudava pela manhã, trabalhava à tarde, e à noite cursava aulas técnicas — tudo isso em meio a discussões acaloradas com João e sob a constante proteção de José, seu defensor incansável. A fazenda onde moravam era uma verdadeira fortaleza entre as neves do norte. Janelas com molduras ornamentadas, paredes revestidas de madeira esculpida à mão e uma lareira sempre acesa no salão principal. Ali também viviam Afonso, irmão de Augusto, com sua esposa Carla e a filha Clara — uma jovem dedicada à Medicina, mas cujo coração batia com inquietação sempre que João estava por perto. Clara, embora educada e reservada em público, travava com Amanda uma batalha silenciosa e diária. Afinal, era difícil competir com uma garota que, mesmo sem ter nascido na linhagem, parecia cada vez mais destinada a brilhar dentro dela. Naquela manhã de fevereiro, o aroma de pão fresco e café forte tomava conta da cozinha principal da fazenda. Do lado de fora, a neve cobria o campo como um véu branco e silencioso. Os cristais se acumulavam delicadamente nas janelas enquanto a família se reunia ao redor da mesa de madeira maciça, entalhada à mão por artesãos suíços décadas antes. Era raro estarem todos juntos pela manhã. Mas quando estavam, o ambiente oscilava entre a formalidade de uma família poderosa e a intimidade de uma casa que, apesar do luxo, ainda era movida por afeto — e alguns conflitos. — João... — começou José, rompendo o silêncio com a autoridade de quem tinha voz naquela mesa. — Oi... — respondeu o irmão, levantando os olhos do celular. — Durante os seis meses em que estarei fora com a Sofia, vou precisar que você leve e busque as meninas. Pedi pro papai, mas como ele só vai à empresa à tarde, não vai dar. Talvez ele possa buscar a Amanda depois do curso, à noite. Clara revirou os olhos com um meio sorriso cortante. — Pronto... agora o príncipe vai ter que buscar a princesa — ironizou, mexendo na xícara de chá. — Pode deixar, irmão — respondeu João, sem encarar ninguém, como se o assunto não tivesse qualquer importância. — Mas João... a Amanda pode pegar um táxi — sugeriu Carla, tentando soar razoável. — Muito perigoso, por conta do horário — rebateu Ana, com sua firmeza costumeira. Nesse momento, Amanda entrou na cozinha com o rosto levemente corado do frio e os cabelos presos em um rabo de cavalo desalinhado. Usava botas forradas de lã, um sobretudo azul-escuro com botões dourados e o uniforme da escola sob ele — uma mistura de elegância espontânea e despretensão encantadora. Ela se aproximou da tia Ana, beijou-lhe a testa com carinho, apertou José num abraço caloroso, cumprimentou Sofia com leveza e acenou para os demais com simpatia. — Zé, pode viajar tranquilo. Já combinei com a Bia para ficar no apartamento dela três vezes por semana. Assim não atrapalho a rotina do João — disse Amanda, com a segurança de quem já pensara em tudo. — Pequena... não quero que você fique longe de casa — José respondeu, com o tom protetor que lhe era natural. — Obrigada, irmão. Mas isso vai me poupar tempo e cansaço. O que acha? — insistiu Amanda, olhando-o nos olhos. Ana, sentada com a postura de uma matriarca nascida para comandar impérios, não hesitou. — Eu confio na minha menina. — Então está combinado. Mas nos fins de semana, quero você aqui — disse José, por fim, rendido. — Combinado — respondeu Amanda, sorrindo. Clara observava a cena em silêncio, segurando a colher com força. Amanda, como sempre, parecia conseguir tudo. Até o afeto — talvez principalmente o afeto. — Sofia, me traz um presente Suíço, tá? — pediu Amanda, com um sorriso travesso. — Claro, pequena — respondeu Sofia, divertida. — Não seja cara de pau, Amanda — provocou Clara, já com um tom de deboche. — Quer um também ou está com inveja de mim? — Retrucou Amanda, mantendo o olhar fixo. — Inveja... de você? — Clara riu, jogando os cabelos para trás com desdém. — Meninas, chega — interrompeu Afonso, entrando na cozinha com o sobretudo ainda nos ombros. — João, vamos? — Disse Clara, tentando mudar o tom da voz para algo mais doce. — Amanda vai com a gente? — Perguntou João, sem expressão. — Não. Vou com o Zé hoje. Amanhã eu vou com vocês, obrigada — respondeu Amanda, gentil. — Vamos, Clara — disse João, já caminhando em direção à porta de entrada, onde o motorista os esperava com o carro aquecido. — Já estamos atrasados — avisou José, olhando o relógio suíço no pulso. — Vamos, Amanda — chamou ele, levantando da mesa. Amanda beijou a testa da tia, deixou um abraço em Augusto e lançou um beijo no ar para Sofia, antes de sair apressada com José. Carla, que observava tudo em silêncio, virou-se para Ana com um sorriso quase profético: — Essa sua sobrinha ainda vai deixar todo mundo com o cabelo em pé... Do lado de fora, os carros aguardavam em fila na entrada da propriedade. O motorista da família já havia limpado o gelo dos vidros, e o ar quente dentro dos veículos criava um contraste acolhedor com o frio cortante de vinte graus negativos. No banco de trás, ao lado de João, Clara bufou: — Não acredito que você vai ter que ficar trazendo aquela menina... insuportável. Enquanto o carro deixava a propriedade Duarte rumo à cidade, Clara digitava no celular com pressa, as luvas jogadas ao lado. Provavelmente contava a alguma amiga como a manhã tinha sido — para variar — insuportável.José dirigia com tranquilidade, o braço apoiado na janela emoldurada pelo frio russo e a mente já mergulhada nos preparativos da viagem com Sofia. Amanda, ao seu lado, observava as árvores cobertas de neve desfilarem pela estrada, em silêncio. Quando chegaram em frente ao colégio, Amanda se despediu do irmão com um sorriso sincero.— Vai com Deus, Zé. Qualquer coisa, me liga, tá? — Disse, ajustando a alça da mochila.— Cuida de você, pequena. E não deixa ninguém te irritar — ele piscou, como quem já adivinhava o caos que rondava os corredores daquela escola.— Eu? Nunca! — Ela riu, fechando a porta e seguindo em direção à entrada coberta de gelo.No colégio, Amanda era popular. Seu carisma natural e inteligência afiada faziam dela uma presença marcante. Mas ser uma Duarte — mesmo que de coração e não de sangue — também atraía inveja.Entre os desafetos, Emili era a mais notável. Filha de Carlos, irmão de Augusto, ela ostentava o sobrenome Duarte com arrogância. Estudavam na mesma esco
Entre Salas e SilênciosAmanda atravessou a recepção da sede da Duarte Holdings com passos firmes. Os saltos altos ecoavam no piso de mármore e contrastavam com o som discreto das vozes, teclas e telefones ao redor. A recepcionista sorriu ao vê-la.— Bom dia, senhorita Amanda.— Bom dia, Helena — respondeu com gentileza, ajeitando a pasta nos braços.Subiu os andares até a sala de reuniões executiva. Ali, todas as terças, participava dos encontros estratégicos do setor agropecuário, ao lado de figuras influentes e experientes. Muitos a olhavam como a “sobrinha da dona Ana”, mas poucos compreendiam a força da mulher que Ana vinha moldando com precisão há anos.Ao entrar, os olhares se voltaram. Alguns se levantaram para cumprimentá-la — formais, respeitosos, mas distantes. Outros apenas assentiram, como se a presença dela ali fosse uma mera formalidade.Amanda escolheu um lugar ao centro da mesa e abriu a pasta com os relatórios de desempenho trimestral. O diretor financeiro, um homem
O Jaguar e a TempestadeO expediente finalmente chegou ao fim. Amanda saiu da empresa com passos cansados, os ombros ainda tensos pelas discussões do dia. Mas ao atravessar a calçada, avistou João encostado no Jaguar preto, de braços cruzados e expressão indecifrável.— Vamos — disse ele, simplesmente, abrindo a porta do passageiro.Ela hesitou por um segundo, mas entrou.O trajeto foi silencioso, tenso como se palavras fossem armadilhas. Quando estacionaram em frente à faculdade, Clara já aguardava na calçada, com a mochila pendurada num ombro e o celular no outro.Ao ver Amanda no banco da frente, não conteve o comentário ácido:— Não sabia que a Amanda já ia voltar com a gente hoje, João... — disse, com a voz melosa. — E ainda está no meu lugar. Agora eu vou ter que ir no banco de trás?Antes que João pudesse responder, Amanda soltou o cinto num gesto rápido, abriu a porta e desceu com a mochila em mãos.— Podem ir vocês. Eu não preciso ir com o casal — disparou, a voz afiada como
Coração em SilêncioAmanda estava deitada de lado, ainda com a roupa da empresa, os sapatos jogados no chão. O quarto estava escuro, iluminado apenas por um feixe de luz que passava pela fresta da janela. O caderno aberto sobre a cama, a caneta parada entre os dedos. Ela queria escrever, como sempre fazia quando o mundo ficava pesado demais. Mas as palavras não saíam.“Você vai mesmo dormir fora de casa três vezes na semana? ”A frase de João ecoava na mente, atravessando o peito como um estalo. Ele sempre dizia que era proteção. Mas por que doía tanto?Ela fechou os olhos por um instante, respirando fundo. Queria chorar, mas não dava esse luxo nem a si mesma.Na porta, uma batida suave.— Posso entrar?Amanda reconheceu a voz antes mesmo de ouvir o fim da frase.— Pode — respondeu sem se mover.Ana entrou devagar, sentou-se na beirada da cama e olhou o caderno sem invadir.— Não quer escrever hoje?— As palavras não querem sair — disse Amanda, ainda deitada.— Às vezes, elas só preci
Noite, Encontro, OlhosEra noite quando Amanda chegou ao prédio onde fazia o curso técnico. Estava exausta, mas determinada. O dia tinha sido longo, mas pelo menos, mais leve. Subiu as escadas com passos firmes e a cabeça cheia — até que, ao virar o corredor da sala, parou bruscamente.Ali, encostado na porta da turma de Engenharia Aplicada, mexendo no celular com a postura relaxada de sempre, estava ele.Bruno.O mesmo sorriso leve, os cabelos castanhos um pouco mais curtos, e os olhos... os olhos ainda eram os mesmos. Intensos, vivos. Como se pudessem atravessar tudo.Amanda travou por um segundo.Bruno ergueu o olhar e, ao reconhecê-la, sorriu de lado — aquele sorriso que ela lembrava tão bem.— Amanda Duarte? — Disse ele, como se fosse uma brincadeira do destino.Ela piscou, meio surpresa.— Bruno? O que você tá fazendo aqui?— Aula de pós. Vim como professor convidado hoje. Mas pelo visto, o melhor da noite acabou de chegar.Amanda tentou disfarçar o impacto que ele ainda causava
Depois da aula, Amanda e Beatriz desciam as escadas do prédio ainda rindo de algum comentário bobo. O plano era simples: ir para o apartamento da Bia, como combinado, comer alguma besteira, colocar o papo em dia e finalmente dormir sem depender da rotina da fazenda.Mas, ao virarem a esquina em direção à rua, ali estava ele. Encostado no carro, braços cruzados, o mesmo olhar de sempre. João.Amanda parou no mesmo instante.— Ah não... — murmurou. — João? O que você tá fazendo aqui?João se endireitou, caminhando na direção das duas.— Vim te buscar.— Eu disse que ia dormir na Bia hoje.— Pois é. E eu disse que você não vai — ele respondeu, seco.Beatriz abriu a boca, mas Amanda a impediu com um gesto calmo.— João, isso já passou dos limites. Eu avisei. Combinei com a Ana, com o Zé. Você não é meu pai.— Eu sou seu irmão. E tô cuidando de você.— Cuidar não é me seguir à noite como um stalker e decidir onde eu posso dormir. Eu não sou mais aquela menina da fazenda, João. Você precisa
Na fazenda, João estava no quarto, sozinho. O celular na mão, a tela parada na última mensagem não respondida de Amanda: “Boa noite, João. ”Ele leu aquelas três palavras incontáveis vezes. “Boa noite, João. ” Como se fosse um adeus. Como se ela estivesse dizendo ‘me deixa viver’.Encostado à cabeceira da cama, ele finalmente encarou algo que sempre esteve lá, escondido entre as camadas de proteção, do ciúme, da “responsabilidade”:Ele sempre amou Amanda.Não como um irmão ama. Não apenas como um protetor. Mas como alguém que viu nela tudo o que nunca teve coragem de desejar de verdade.A lembrança da infância veio forte. Amanda, com o cabelo bagunçado, correndo atrás das galinhas no quintal. Amanda, de vestido florido no primeiro dia de aula. Amanda, adolescente, cada vez mais parecida com Ana — inteligente, firme, desafiadora. Linda.E agora Amanda mulher. Amanda decidida. Amanda que já não pedia permissão pra viver.João levou as mãos ao rosto. Pela primeira vez em anos, ele sentiu
Era uma sexta-feira de céu encoberto, o tipo de dia em que o vento parecia sussurrar segredos antigos pelas calçadas. Amanda saiu da escola um pouco antes do habitual. Sabia que não iria para a empresa naquela tarde — como de costume nas sextas, seguiria direto para a fazenda, onde assuntos importantes a aguardavam ao lado de Ana.Ao atravessar o portão, seu olhar foi imediatamente capturado por um carro preto estacionado do outro lado da rua. Encostado à lataria, com os braços cruzados e uma expressão indecifrável, João a observava com olhos carregados de perguntas não ditas.Amanda hesitou por um instante, respirou fundo e caminhou até ele com passos lentos, quase cerimoniais.— O que está fazendo aqui? — perguntou, mantendo a voz neutra.— Hoje você não vai pra empresa, e eu... — ele coçou a nuca, fingindo casualidade — pensei em te levar pra casa.— Eu ia de táxi.— Eu sei.— Então por quê?João suspirou, um cansaço velho pesando nos ombros. Quando falou, a voz saiu baixa, quase f