Era uma sexta-feira de céu encoberto, o tipo de dia em que o vento parecia sussurrar segredos antigos pelas calçadas. Amanda saiu da escola um pouco antes do habitual. Sabia que não iria para a empresa naquela tarde — como de costume nas sextas, seguiria direto para a fazenda, onde assuntos importantes a aguardavam ao lado de Ana.Ao atravessar o portão, seu olhar foi imediatamente capturado por um carro preto estacionado do outro lado da rua. Encostado à lataria, com os braços cruzados e uma expressão indecifrável, João a observava com olhos carregados de perguntas não ditas.Amanda hesitou por um instante, respirou fundo e caminhou até ele com passos lentos, quase cerimoniais.— O que está fazendo aqui? — perguntou, mantendo a voz neutra.— Hoje você não vai pra empresa, e eu... — ele coçou a nuca, fingindo casualidade — pensei em te levar pra casa.— Eu ia de táxi.— Eu sei.— Então por quê?João suspirou, um cansaço velho pesando nos ombros. Quando falou, a voz saiu baixa, quase f
Aquela tarde de primavera era fria como um inverno esquecido. O céu límpido deixava o sol refletir sobre a neve ainda acumulada nos campos. Ao longe, cavalos relinchavam nos estábulos, e o som ritmado dos tratores costurava a paisagem gelada da Fazenda Volchya Dolina — o império silencioso da família Duarte.Amanda caminhava entre a neve rala, os passos firmes. A camisa jeans amarrada à cintura, o gorro de lã cobrindo os cabelos rebeldes, e uma prancheta apertada contra o peito davam-lhe um ar de força e propósito. Ao seu lado, Ana acompanhava cada relatório como quem revisa um legado.— O curral doze teve queda considerável este mês — disse Amanda, os olhos fixos nos números.— Muito bem notado — respondeu Ana, com um raro sorriso. — Já te disse que nasceu pra isso?— Já, mas gosto de ouvir de novo.Ana pousou uma mão no ombro da sobrinha, com ternura e firmeza.— Você é o meu maior acerto. Tem mais pulso que muito homem. E os russos que o digam.Amanda sorriu, encabulada. Aquelas pa
Dessa vez, não havia música. Nem palavras. Apenas os pensamentos de Amanda — agora divididos entre o toque inesperado e os olhos de Bruno, que também haviam dito tanto sem uma única palavra. O carro deslizava pela estrada coberta de neve. O céu escuro era recortado apenas pelas luzes dos faróis e algumas estrelas tímidas. Amanda mantinha o rosto encostado no vidro, o frio contrastando com o calor estranho em seu peito. João dirigia com calma, mas a tensão era palpável. — Você tá quieta — comentou ele, finalmente. — Tô só cansada — respondeu Amanda, sem desviar os olhos da paisagem. João soltou um suspiro mais longo do que deveria. — Foi uma boa aula? Ela hesitou. — Foi. Leve. Engraçada, até. Conversação com situações do dia a dia. João assentiu, lançando um olhar rápido na direção dela. — E aquele cara que saiu atrás de você… ele estuda com você? Amanda virou lentamente o rosto. Os olhos se encontraram. — Bruno. Sim, estuda. — Ele parece... interessado — disse João, com
"Ela está roubando tudo. Meu lugar. Minha família. Meu João..."Clara fechou a porta com um clique quase imperceptível. Mas dentro dela, o barulho era ensurdecedor.Clara observava tudo da janela de seu quarto no andar superior. Não sorria. A xícara de chá que segurava já estava morna. Seu olhar passou por cada carro, cada rosto — até parar em Amanda, ali na varanda, cercada de sorrisos. Mas o que realmente a fez apertar os dedos no vidro da janela foi ver Otávio. Ele não tirava os olhos de Amanda.— Claro... tinha que ser ela — murmurou para si mesma, os olhos escurecendo com o ressentimento.A lembrança da noite anterior queimava em sua mente. João não dormira no quarto até tarde, e, embora ele tivesse evitado olhá-la durante o café da manhã, Clara percebia — algo tinha acontecido. Algo que ele não queria contar. E Amanda... ela estava diferente. Nervosa, inquieta, com um brilho estranho no olhar. Clara conhecia aquela expressão. Já vira antes em outros rostos — era o rosto de quem
Amanda estava no jardim lateral da casa, sob a sombra de uma cerejeira que começava a florescer. Observava as pétalas suaves caírem ao chão, em contraste com a turbulência em seu peito. O som dos passos firmes na madeira da varanda a alertou antes mesmo de ouvir a voz dele.— Amanda — disse João, parando a alguns passos de distância.Ela não se virou de imediato, mas seu corpo enrijeceu. Sabia que ele viria. Sabia que, depois da noite anterior, eles não poderiam apenas fingir que nada havia acontecido.— A gente precisa conversar — ele completou, com a voz baixa, contida.Ela virou-se lentamente, os olhos sérios, tentando manter o controle.— Sim... eu imaginei que você viria.João deu mais um passo, agora próximo o suficiente para que ela pudesse sentir sua respiração. Ele hesitou por um instante, como se procurasse as palavras certas.— Eu não devia ter te beijado ontem. Mas... eu não consigo fingir que não senti. E você?Amanda o encarou, os olhos intensos, sem fugir da verdade.—
O clima ainda carregava os resquícios da tensão da mesa, mas ninguém comentou. A tarde avançava com uma brisa amena e um céu azul cortado por nuvens delicadas. Como era tradição nas visitas de primavera, todos saíram para caminhar pelos campos da fazenda e visitar os cavalos — um dos orgulhos da propriedade Duarte.Amanda caminhava à frente, vestindo uma blusa branca de linho e calça de montaria, o cabelo preso de forma prática, mas ainda com uma elegância natural. Seus olhos buscaram direto o pasto reservado, onde estava seu cavalo — um puro-sangue preto, forte, de porte nobre e temperamento arisco.— Ele é igualzinho a você, sabia? — comentou Augusto, vendo Amanda se aproximar do animal com firmeza e delicadeza.— É por isso que nos entendemos tão bem — respondeu ela, acariciando o pescoço do cavalo, que relinchou suavemente, reconhecendo sua dona.O cavalo, batizado de Tempestade, era um presente de José quando Amanda completou 15 anos. Um animal valioso, estimado em milhões, escol
Mais tarde, no quarto… Sozinha novamente, Amanda encarava o espelho. O reflexo que via não era só dela — era da mulher que Ana havia moldado. Mas algo mudava em seus olhos: a consciência de que estava traçando o próprio caminho. Ela abriu a gaveta da cômoda e tirou uma caixinha de veludo escuro. Dentro, uma pequena fivela de prata, antiga, com o brasão dos Duarte. José a tinha dado junto com o cavalo no seu aniversário de 15 anos. Ela prendeu o cabelo com a fivela, respirou fundo, e sussurrou para si mesma: — Cavalgar na tempestade... é isso que eu fui feita pra fazer. Lá fora, os cavalos relinchavam, e o vento começava a soprar com mais força no vale. O sol já se escondia atrás das colinas quando Amanda, com os cabelos soltos e botas marcando o piso do corredor, saiu de seu quarto. Caminhou decidida até o final do corredor, parando diante da porta de João. Ela bateu duas vezes. João abriu, surpreso ao vê-la ali. Não teve tempo para perguntar nada — Amanda o puxou pela camisa
O sol mal havia despontado no horizonte quando os primeiros passos ecoaram pelo casarão. O aroma do café fresco e do pão recém-assado já tomava conta da cozinha, onde Dona Fátima e Judite arrumavam a mesa do desjejum. A família começava a se reunir aos poucos, com os rostos ainda sonolentos e as palavras ditas em meio a goles de café e mordidas em torradas amanteigadas.Amanda desceu elegante e serena, o cabelo ainda úmido do banho matinal, os olhos atentos. Sentou-se ao lado de João, que já estava à mesa com a xícara na mão, como se nada tivesse acontecido. Mas para Clara, que surgia logo depois com um sorriso cínico nos lábios, aquilo era o ápice da provocação.Ela se serviu de suco, sentou-se calmamente e, antes de levar a primeira garfada à boca, soltou com a voz doce e afiada como lâmina:— A noite passada foi movimentada, não? Tem gente que nem dormiu no próprio quarto... eu vi quando João entrou no quarto da Amanda.A frase caiu como um raio. O tilintar dos talheres cessou por