O salão da casa de meus pais estava impecável. Mesas postas com prata cintilante, lustres refletindo a luz dourada sobre taças de cristal, e o murmúrio de vozes misturando-se ao tilintar de talheres. Para qualquer um, parecia uma noite perfeita, digna de alianças e celebrações. Para mim, era uma prisão de paredes douradas.
Sentado à cabeceira, controlava cada expressão do meu rosto como faria em uma reunião de investidores. Respostas medidas, postura ereta, olhar firme. Só que, ao contrário de uma sala de negócios, aqui o produto em negociação era eu mesmo. À minha esquerda, Cecília sorria como se já tivesse vencido. Loira, olhos azuis que pareciam querer capturar qualquer hesitação minha, postura impecável, mas o vestido azul justo mostrava que sua intenção não era apenas ser elegante: era provocar. A cada comentário, ela me tocava levemente no braço, como se quisesse cravar seu direito sobre mim. — Você deve estar muito ocupado, Felipe — disse, inclinando-se um pouco mais do que o necessário. — As manchetes não param de falar sobre a expansão da sua empresa. Respondi sem tirar os olhos do vinho na taça: — Ocupado é pouco. Inovação não espera. Ela riu baixo, aproximando-se. — Mas você precisa de alguém para lembrá-lo de respirar. Meu maxilar travou. Respirar era tudo que eu queria… mas longe dali. O cheiro do perfume dela, adocicado demais, me enjoava. Por fora, esbocei um sorriso educado. Por dentro, só queria levantar e sair. Meu pai, Arthur, e Augustus, o pai dela, conduziam a conversa principal como dois generais planejando uma guerra. Só que, agora, as batalhas não eram travadas com sangue e espadas, mas com números, ações e parcerias estratégicas. — Os shoppings são apenas a ponta do iceberg — dizia Augustus, erguendo sua taça. — O futuro está na tecnologia. E quem melhor do que o seu filho para conduzir isso, Arthur? Meu pai assentiu com orgulho. — Felipe tem uma visão que vai muito além da nossa geração. Inteligência artificial, segurança digital, realidade aumentada… Ele está redesenhando o mercado. Senti os olhos de todos sobre mim. Fiz um leve aceno de cabeça. — Não é questão de visão. É questão de entender que o mundo não espera. Ou nós inovamos, ou ficamos para trás. Augustus riu, satisfeito. — Exatamente! E imagine unir essa visão ao peso da minha família. Parcerias, casamentos… símbolos que solidificam impérios. Meu olhar endureceu. — Símbolos só têm valor se sustentados por resultados reais. E isso, eu já tenho. Meu pai lançou-me um olhar cortante, como se minhas palavras tivessem sido afiadas demais. Mas Augustus apenas riu, como se tivesse ouvido uma ousadia típica de juventude. Cecília, porém, não perdeu tempo. Inclinou-se mais uma vez, o braço roçando no meu. — Eu adoraria conhecer seu escritório, Felipe. Ver de perto como você transforma ideias em realidade. — Escritório não é lugar para visitas sociais. — Respondi rápido, seco, mas ela não recuou. — Então me leve para jantar, em outro dia. Prometo não falar de negócios. Sorri, mas não pelos motivos que ela imaginava. O sorriso era de ironia. Um jantar com ela era a última coisa que eu desejava. Ainda assim, calei-me. A última coisa que precisava era de um escândalo na frente de todos. Minha mãe, sentada mais ao fundo, observava em silêncio. Não dizia uma palavra, mas seus olhos me acompanhavam como lâminas afiadas. Conhecia aquele olhar: o de quem percebia a distância entre meu corpo presente e minha mente ausente. Ela sorria para todos, mas eu via a preocupação escondida no fundo da alma dela. O jantar seguiu. Para mim, cada minuto era um arrastar de correntes. A cada pergunta de Augustus, respondia como em um conselho de administração. — Qual o próximo passo da sua empresa? — ele perguntou, genuinamente interessado. — Expansão internacional. Nossa plataforma de segurança digital já está pronta para competir com as grandes. — Respondi firme, olhando-o diretamente. — E não preciso de alianças matrimoniais para garantir isso. Um silêncio incômodo se seguiu. Meu pai respirou fundo, disfarçando com um gole de vinho. Cecília sorriu como se não tivesse ouvido, insistente, colocando a mão no meu braço novamente. Meu corpo enrijeceu. Era como se cada toque dela fosse uma marca indesejada, gravada contra a minha vontade. Eu me obrigava a não afastá-la de forma rude, mas o nojo queimava na pele. Conduzi o jantar como conduziria qualquer negócio: com clareza, firmeza, mas sem emoção. Não havia prazer, não havia calor. Apenas o teatro necessário para não incendiar o salão. Quando, finalmente, os pratos foram retirados e os convidados começaram a se dispersar, Cecília se aproximou. Seu perfume adocicado e enjoativo me envolveu como uma armadilha. — Felipe — disse, em tom baixo, quase íntimo. — Foi uma noite maravilhosa. Nós dois precisamos repetir. Talvez só nós dois, sem tantos olhares. Ela era ousada. Demais. E acreditava que ousadia era a chave para me conquistar. Eu abri a boca para responder, mas a voz do meu beta ecoou do outro lado do salão: — Alfa, precisamos conversar. Agora. É urgente. Meu peito se expandiu em alívio. A desculpa perfeita. Cecília franziu o cenho, contrariada. Meu pai e Augustus trocaram olhares, sorrindo como se tivessem arquitetado tudo. — Sempre os negócios, não é? — Augustus comentou, divertido. — Mas tenho certeza de que você encontrará tempo para… outras responsabilidades. Meu pai completou, em tom mais carregado: — Uma união entre nossas famílias é o passo lógico, Felipe. Não apenas para você, mas para todos nós. Senti a raiva latejar em minhas têmporas. — Eu não preciso de casamento para ter sucesso. — Minha voz saiu firme, quase cortante. — Eu já construí meu caminho. Minha mãe desviou o olhar, apertando os lábios, como se segurasse a vontade de intervir. O silêncio caiu pesado. Sem acrescentar mais nada, virei as costas. ⸻ De volta à minha casa, finalmente pude respirar. Tirei o terno, deixei os sapatos no canto. O peso daquela noite ainda ardia nos ombros. Eu precisava me libertar. Meu lobo rugia dentro de mim, impaciente. Saí para a noite escura, e a transformação veio como um estilhaço de corrente se partindo. O chão tremeu sob minhas patas, o vento cortou meu rosto, e o mundo se reduziu ao instinto. Corri pela mata, cada músculo explodindo em liberdade. Queria apagar o gosto amargo da noite. O perfume de Cecília. As palavras afiadas de Augustus. O olhar frio de meu pai. Mas, quanto mais corria, mais uma lembrança me perseguia. O cheiro suave. O calor de um toque que nunca senti, mas sabia reconhecer. Alice. Por mais rápido que eu fosse, não havia fuga. O vazio que ela preenchia me seguia como uma sombra. E isso me enfurecia ainda mais.