A Ira Contida

O hospital ainda cheirava a desinfetante, mas o aroma dela — baunilha com chuva de verão — se infiltrava em cada fibra do meu corpo. Cada lembrança da noite na boate, de vê-la dopada e vulnerável, queimava dentro de mim como fogo. Eu precisava agir, precisava canalizar essa frustração em algo que não me destruísse, mas que também fizesse justiça.

Não havia tempo para hesitação. Do hospital, liguei para Gama Léo, que prontamente me passou a localização exata do galpão onde os responsáveis haviam sido levados para isolamento. Ele já me esperava lá. Dois homens, um com o joelho quebrado, o outro com o tornozelo torcido. Eles haviam aprendido da forma mais dura que tocar em alguém da minha proteção trazia consequências.

O carro cortava as ruas de Phoenix como uma lâmina silenciosa. Cada segundo que me aproximava do galpão aumentava a pressão no peito, como se Zurkn estivesse prestes a explodir dentro de mim.

— Eles a tocaram. Eles a tocaram e você não estava lá. — o lobo rosnou baixo.

— Cala a boca, Zurkn. — respondi, com os dentes cerrados. — Não agora.

Mas sabia que não podia ignorá-lo completamente. Parte da raiva que eu sentia precisava ser convertida em algo físico, em controle. Caso contrário, perderia a razão e poderia fazer algo que não poderia desfazer.

Cheguei ao galpão. Léo me recebeu com um aceno discreto, olhos sérios e tensos. O espaço estava silencioso, iluminado apenas por lâmpadas penduradas, criando sombras que se alongavam sobre os corpos dos homens caídos. O cheiro de sangue seco misturava-se ao ferro e à poeira, e meus sentidos se aguçaram. Cada músculo do meu corpo vibrou, pronto para o combate.

— Alfa… — Léo murmurou. — Eles estão prontos. Um joelho, um tornozelo. Não se preocupe, eles sentiram a dor suficiente para aprender.

Não respondi. Entrei devagar, sentindo cada passo reverberar no concreto. Os olhos dos homens se arregalaram, um reflexo instintivo de medo puro. Mas isso não era suficiente. Não para mim.

Fui até eles, e minhas mãos começaram a trabalhar. Socos precisos, cotoveladas calculadas. Eu não tinha intenção de matá-los, mas queria que cada movimento transmitisse o desespero de quem quase perdeu aquilo que lhe era mais caro. Cada golpe era mais pesado que o anterior, descarregando a frustração de não poder tocar Alice, de não poder admitir o que sentia, de ter que permanecer distante mesmo sentindo sua presença em cada respiração.

Zurkn urrava dentro de mim, sua excitação quase insuportável.

— Mais. Eles devem sentir. Eles tocaram nossa companheira.

— Já entendi, lobo. — Respondi entre dentes cerrados, ignorando o prazer sádico que Zurkn queria explorar.

Após alguns minutos, senti que não havia mais energia para descarregar. Eles estavam feridos, humilhados, mas vivos. Suficientemente feridos para que falassem quando fosse necessário, suficientemente vivos para que soubessem que a punição poderia ser ainda mais severa se houvesse reincidência.

Tirei a camisa suja de sangue e respirei fundo. Cada marca na minha pele lembrava que a violência era uma ferramenta, não um vício. Abri a bolsa, peguei uma camisa limpa e a vesti rapidamente. Antes de sair, olhei para Léo:

— Resolva. Sem rastros.

Ele assentiu, firme, os olhos refletindo respeito e determinação.

— Entendido, alfa.

Não olhei para trás. Meus passos ecoaram no galpão vazio enquanto saía, e o ar quente do meio dia me atingiu como um soco. Precisei fechar os olhos e inspirar profundamente, tentando trazer Zurkn para um silêncio parcial.

No carro, voltei a me concentrar. A visão de Alice deitada no hospital, o cheiro dela, o ar impregnado do trauma, tudo isso precisava de alguma forma ser contido. Zurkn não deixava.

— Você a sente. Está perto. Ela poderia estar em perigo novamente.

— Está segura. — murmurei, mas nem eu acreditava totalmente. — Por enquanto.

O voo de volta para Chicago foi longo. Eu ficava sentado, o corpo rígido, os olhos semicerrados, tentando organizar pensamentos que se recusavam a se alinhar. Zurkn estava parcialmente satisfeito. Tinha visto sangue, medo, dor e isso o acalmava. Mas nada disso diminuía a chama de frustração e desejo que eu carregava dentro de mim. Queria estar ao lado dela, queria poder tocá-la sem medo de quebrar regras, sem medo do conselho ou da própria reputação.

A cidade de Chicago se aproximava no horizonte, envolta em nuvens cinzentas da tarde. Meu coração batia rápido, antecipando o inevitável: meu pai, o conselho, Augusto e seu maldito almoço transformado em fardo de honra. A fúria que eu deixei no galpão agora se misturava à ansiedade de encarar o que vinha.

— Ela está segura. Não deixe que isso te consuma. — Zurkn resmungou.

— É impossível não consumir, lobo. — Respondi, apertando os punhos, sentindo cada músculo do meu corpo em tensão máxima.

Chegando, observo o cais. O vento carregava cheiro de concreto, óleo e umidade do lago. Era uma lembrança de que a vida continuava, apesar de tudo. Mas dentro de mim, nada estava calmo.

Cada passo até o hangar era pesado, calculado. Cada movimento lembrava que eu era Alfa, líder, herdeiro de um legado que não podia manchar com fraqueza. E mesmo assim, a lembrança de Alice, o cheiro dela, o rosto dopado e vulnerável, me mantinha em conflito constante.

Eu precisava de paciência, mesmo que a paciência me matasse por dentro. Precisava controlar Zurkn, controlar meu corpo, controlar meus instintos. Porque a menina, minha companheira, estava viva. E era isso que importava.

Quando as portas do hangar se fecharam atrás de mim, respirei fundo. A raiva e o desejo ainda pulsavam, mas estavam contidos. Léo cuidaria do resto. Eu tinha feito minha parte. O caminho de volta para o controle, para o planejamento, estava aberto.

E enquanto o carro cortava as ruas de Chicago, eu sabia que nada mais seria o mesmo. Alice havia entrado na minha vida de forma definitiva, e nada poderia apagar isso. Nem regras, nem conselho, nem distância.

O voo terminou no meio da tarde. Eu desci no hangar com o corpo ainda tenso, a mente alerta. Meu pai, o conselho, Augusto, todos esperavam respostas, explicações, justificativas. Mas a única coisa que eu realmente sentia era que a única questão que importava era Alice.

A humana que, de algum modo impossível, já havia conquistado meu coração e me transformado.

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