O portão de ferro da casa da matilha rangeu quando se abriu para mim. O som ecoou como um lembrete incômodo de tudo o que eu havia tentado ignorar ao longo do caminho. O cheiro familiar de terra molhada e pinho envolveu meus sentidos assim que o carro entrou pelo pátio, mas, ao invés de trazer conforto, só acendeu a irritação que eu vinha alimentando desde cedo.
Meu pai estava à minha espera. Álvaro nunca foi de sorrir, mas agora seu olhar era ainda mais duro. Erguia-se na entrada como a sombra de tudo aquilo que eu deveria ser — imponente, rígido, intransigente. Sua voz, quando cortou o ar, veio seca e carregada de autoridade. — Sim, pai — respondi, a mesma secura, sem baixar os olhos. Ele não gostou. Eu vi pela forma como seus punhos se cerraram ao lado do corpo. — Onde você estava, Felipe? — perguntou. Não havia preocupação, apenas cobrança. Respirei fundo, controlando o lobo dentro de mim que rosnava impaciente. — Estava resolvendo uns negócios. — Negócios? — ele riu sem humor. — Que negócio pode ser mais importante do que o encontro com Alfa Augusto? Você sabe muito bem qual era a importância desse dia. Você concordou, Felipe. Nós planejamos tudo. Cada palavra dele era um peso que caía sobre os meus ombros, mas eu não recuei. — Bem lembrado, eu sou Alfa. Estou fazendo o que precisa ser feito. Meu tom era frio, quase cortante. Não havia espaço para concessões. Eu não daria a ele a satisfação de me ver vacilar. O silêncio se estendeu por alguns segundos. O suficiente para eu perceber a fúria contida nos olhos dele, a raiva por não conseguir me dobrar. Quantas vezes eu mesmo já não me perguntei se poderia simplesmente jogar tudo para o alto? Abandonar essa vida de obrigações, de expectativas sufocantes? Quantas vezes eu quis deixar de ser “o Alfa herdeiro” para ser apenas… eu? Mas eu fui criado para isso. Fui moldado para carregar essa responsabilidade. E uma humana jamais poderia caber nesse mundo. Respirei fundo, tentando expulsar a lembrança de Alice. Mas não consegui. O cheiro dela ainda impregnava minha mente. Baunilha suave, inebriante. A lembrança dos olhos assustados, a vulnerabilidade… e aquele sonho, que ainda me atormentava como se fosse real. Balancei a cabeça e subi para o quarto, ignorando qualquer novo comentário do meu pai. Eu não tinha paciência para discussões sem fim. Precisava de silêncio. Precisava organizar o caos dentro de mim. Fechei a porta e encostei a testa contra a madeira por alguns segundos. Meu coração batia rápido demais, como se eu tivesse corrido quilômetros. E não era pela discussão. Era por ela. Meu lobo emergiu no fundo da mente, impaciente. — Companheira precisa de nós. Rosnei em pensamento. — Pare de colocar esses pensamentos em mim! — Ela é nossa! — Ela não vai ser nossa. O lobo avançou contra mim, feroz, como uma fera enjaulada. — Minha companheira! Não aceitarei ninguém além dela. As palavras ecoaram como trovões na minha cabeça. Eu fechei os olhos e, com toda a força da minha vontade, ergui barreiras mentais. Empurrei-o para as profundezas da minha mente, trancando suas exigências atrás de muros de ferro. Silêncio. Mas eu sabia que não duraria. Ele sempre encontrava um jeito de escapar. Sempre voltava, cobrando aquilo que eu não poderia permitir. Alice. Maldita humana que mexia comigo de um jeito que ninguém nunca conseguiu. Sentei-me na beira da cama, passando as mãos pelo cabelo. Como resistir? Como ignorar algo tão visceral? Eu não podia. Mas também não podia ceder. Esse desejo era uma condenação. Fechei os olhos e respirei fundo. Por um instante, permiti-me imaginar. Imaginei como seria tocar sua pele suave, ouvir sua risada, sentir seus lábios contra os meus. Imaginei uma vida longe daqui, longe de tudo isso, onde eu poderia ser apenas um homem e ela apenas uma mulher. Abri os olhos de repente, sufocado. Eu não podia me permitir esse luxo. Eu era o Alfa. Eu tinha responsabilidades. Minha vida não me pertencia. Um barulho do lado de fora da porta me fez levantar. Passos apressados, murmúrios baixos. O peso da realidade caiu sobre mim outra vez. Eu não deveria ter ido. Mas eu precisava vê-la. Nunca estive tão perto de alguém e, ao mesmo tempo, tão proibido de tocá-la. O som de uma batida firme na porta me trouxe de volta. — Alfa — a voz de André, meu beta, ecoou. — Seu pai exige sua presença. Todos estão na sala de recepção. Fechei os olhos, sentindo a pressão voltar a me sufocar. — Já vou — respondi. Minha voz soou firme, mas por dentro eu estava despedaçado. Mais uma vez, coloquei a máscara que todos esperavam de mim. Mais uma vez, deixei o homem de lado para ser apenas o Alfa. Quando abri a porta e vi André, percebi a preocupação nos olhos dele. Ele me estudava em silêncio, como se conseguisse enxergar as rachaduras sob a superfície. — Estou bem — garanti, seco. — Apenas um banho e já desço. Ele assentiu, mas não pareceu convencido. Fechei a porta novamente, encostei-me contra ela e soltei um suspiro longo. A cada dia, a cada minuto, era como se duas forças dentro de mim me puxassem em direções opostas. O Alfa que todos esperavam… e o homem que só queria a sua companheira. E eu sabia que, cedo ou tarde, um deles teria que morrer.