Acordei com o som de vozes baixas vindo da cozinha.
Meu corpo ainda pesava do cansaço do dia anterior e minha cabeça ainda latejava. Não sei quem me colocou na cama, provavelmente minha mãe, pois estou com as roupas trocadas. Pequenos lapsos de memória passam pela minha cabeça. A conversa com Marina, o pedido para minha mãe e por último, meu padrasto. Ele me agrediu. Tocou em mim para roubar meu dinheiro de novo, como fez da última vez. Uma fúria tomou conta de mim e me fez chutar o cobertor para longe e me levantar mesmo ainda de pijama. Estava farta dos abusos e gritos, de ser roubada e de deixar que minha mãe passasse pelas mesmas coisas. Hoje eu iria enfrentá-lo. Pois o pedaço de esperança ainda brilhava em algum lugar dentro de mim e me dava coragem, mesmo que o medo e a culpa tentassem apagá-lo. Respirei fundo, tentando me preparar para mais um dia de decisões impossíveis. Quando saí do quarto, o cheiro de café estava no ar, mas também havia algo mais: a tensão. Minha mãe estava na cozinha, sentada à mesa com as mãos envoltas em uma xícara. Ela não olhou para mim quando entrei, mas eu vi os olhos vermelhos, o rosto cansado. E então, percebi. Ele estava lá. Meu padrasto estava encostado na geladeira, com os braços cruzados e um olhar que eu conhecia bem. Aquele olhar que dizia: "Você não pertence aqui." Ignorei-o, focando na minha mãe. — Bom dia, mãe — cumprimentei, tentando manter a voz calma. — Bom dia, Isa — ela respondeu, sem levantar os olhos. Peguei uma xícara e enchi com café, tentando me distrair com o ritual. Mas ele não ia me deixar em paz. Nunca deixava. — Então, ouvi dizer que você quer ir embora — ele disse, a voz carregada de sarcasmo. Congelei. Como ele sabia? Olhei para a mãe, mas ela continuava olhando para a xícara, como se não estivesse ouvindo. — Não é da sua conta — respondi, tentando soar firme. — Sou maior de idade e independente, e não pode me impedir. — Não é da minha conta? — Ele riu, um som seco e sem humor. — Enquanto você morar debaixo do meu teto, tudo aqui é da minha conta. Meu coração acelerou. Eu sabia onde isso ia dar. Sempre acabava no mesmo lugar: gritos, ameaças, lágrimas. Dessa vez, eu não ia deixar. — Você não é meu pai. Eu não vou discutir com você — disse, colocando a xícara na pia. — Ah, não vai? — Ele se aproximou, e eu senti o cheiro de álcool misturado com raiva. — Você acha que é melhor que todo mundo, não é? Acha que pode sair por aí, deixar sua mãe pra trás como se ela fosse um fardo. — Não é isso! — gritei, sem conseguir me controlar. — Eu só quero uma chance de ter uma vida melhor! — Uma vida melhor? — Ele riu de novo, mas dessa vez havia algo perigoso no tom. — Você não merece uma vida melhor. Você não merece nada. Foi quando ele deu um passo à frente, e eu instintivamente recuei. Minha mãe finalmente se levantou, colocando-se entre nós. — Para, por favor — ela implorou, a voz trêmula. — Não façam isso. — Cale a boca! — Ele gritou, empurrando-a para o lado. Ela caiu na cadeira, e algo dentro de mim estalou. — Não toque nela! — gritei, avançando em direção a ele. Mas ele era mais forte. Ele me segurou pelo braço, com uma força que fez eu ver estrelas. — Você vai embora — o padrasto resmungou, a voz carregada de amargura — e não vai levar nada daqui. Virei-me para encará-lo, com o coração pulsando acelerado, tentando controlar o tremor na voz. — Vou sim. Tenho documentos, dinheiro e tudo que preciso para começar uma nova vida. Ele deu um sorriso torto, sem humor, e passou os dedos nos cabelos despenteados, um gesto irritado. — Ingrata. Você acha que pode simplesmente fugir e me deixar aqui com essa mulher? — apontou para minha mãe. Meu sangue ferveu, e a raiva que eu tentava conter explodiu. — Eu sou a única tentando salvá-la! Você só a mantém presa nesse inferno! O silêncio caiu pesado por alguns segundos, até que minha mãe, num ato inesperado, levantou-se de sua cadeira com uma força que eu não sabia que ela tinha. Sem hesitar, deu-lhe um tapa no rosto. O som reverberou pela cozinha, e ele caiu no chão, surpreso. — Vai embora, Isa — ela disse, os olhos brilhando de lágrimas e uma determinação recém-descoberta — Vai embora agora! Rápido. Eu estava chocada, mas senti meu coração apertar com o sacrifício que ela fazia por mim. Eu não pensei duas vezes, pois a raiva e o cansaço de todo aquele inferno me tomou. Enquanto os dois gritavam na cozinha, entrei no quarto e comecei a jogar tudo o que havia dentro do armário na minha única mala. Todas as poucas roupas que eu tinha cabiam dentro dela. Meus sonhos e projetos. Fechei tudo sem me importar em arrumar ou até mesmo trocar de roupas, e voltei para a cozinha pronta para ir. — Venha comigo, mãe — implorei, segurando suas mãos. Ela olhou para mim com tristeza e negou, já sozinha, pois de novo ele havia sumido. — Eu não posso, Isa. Não tenho forças para sair. Mas você precisa ir. Meus olhos se encheram de lágrimas, uma mistura de dor e gratidão. Sabia que não seria fácil, mas precisava continuar. Peguei o celular com as mãos trêmulas e disquei o número da minha prima, a única pessoa em quem eu confiava de verdade. Eu precisava de um tempo para pensar longe daqui e dar a minha mãe o mesmo espaço. — Prima? — minha voz saiu embargada, quase um sussurro. — Eu… eu preciso de um lugar para ficar. — Isa! O que aconteceu? Você está chorando? — a voz dela se encheu de preocupação. — Eu não aguento mais. Ele… Ele estava revirando minhas coisas, procurando o dinheiro que guardei para a gente. A gente brigou, ele me empurrou para fora de casa... Eu não sei o que fazer. As lágrimas começaram a escorrer, e eu tive que fechar os olhos para não deixar a voz falhar ainda mais. — Calma, Isa. Respira fundo. Você está segura agora? — Estou sentada num ponto de ônibus, do outro lado da rua da minha casa. Não tenho para onde ir.Você pode me ajudar? — Claro que posso. Vou buscar você. Aguenta firme que eu já estou saindo.