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CAPÍTULO 3 - Primeiro Round

A quadra do morro fervia.

De um lado, o barulho da furadeira marcava o ritmo da reforma na parte de cima da ONG Raízes do Morro. No outro, o batuque do tamborim ensaiava o som do futuro desfile da escola de samba da Tia Isis. Era sábado, e o sol castigava sem dó.

A lona azul do ringue já estava montada. Em volta, os meninos se apertavam, rindo, suando, prontos pra mais uma aula de boxe. Mas o foco do dia não era mais o embate.

Era a evolução.

— Professor! Já coloquei as luvas no menor aqui, ó! — Binho gritou, orgulhoso, já se sentindo autoridade.

Theo sorriu, ajeitando a faixa nos pulsos enquanto observava o garoto ajudar os mais novos.

— Boa, assistente. Tá contratado — respondeu, com uma piscadinha.

— Tá vendo, Tia Isis? Falei que eu era bom nisso. — Binho se gabou, jogando o peitoral pra frente.

Isis, que vinha se aproximando com uma prancheta na mão e os óculos espelhados no rosto, apenas arqueou uma sobrancelha.

— Só falta aprender a ser humilde.

— Isso aí eu aprendo no round três. — ele respondeu com um sorriso malandro, arrancando gargalhadas dos outros.

Theo observava Isis com atenção. Era impossível não notar a força com que ela dominava o espaço, mesmo sem dizer muito. As crianças respeitavam, os adultos obedeciam. E ele... ele estava cada vez mais envolvido.

Ela olhou pra ele, sem sorrir.

— O treino tá rendendo?

— Tá sim. Eles são bons. Só precisam de direção.

— E você é essa direção?

— É pra isso que tô aqui, né?

— Espero que sim — ela respondeu, firme. Mas havia algo no olhar dela. Uma pontinha de provocação que ela não conseguia esconder.

Theo limpou o suor do pescoço com a toalha, disfarçando o calor que sentia. Não só do clima.

Enquanto os meninos treinavam em duplas, Binho circulava como se fosse técnico de time profissional. Corrigia postura, imitava os movimentos do professor, dava bronca nos mais lentos.

— Guarda alta, menor! Não vai apanhar de graça, não! — gritou, empolgado.

— Tá se achando, hein? — Isis comentou, se encostando na mureta, ao lado de Theo.

— Deixa. Melhor ele se achar aqui do que se perder na rua.

Ela olhou pra ele. Dessa vez, sem ironia.

— E você? Vai se achar onde?

Ele virou de frente pra ela, os olhos nos dela.

— Já me achei. Aqui.

Ela manteve a postura, mas o maxilar trincou. Ele sabia que tava mexendo onde não devia. Mas não recuou.

Antes que ela respondesse, um barulho mais forte da furadeira estourou no alto da construção. Isis resmungou e tirou o celular do bolso pra responder mensagens.

Theo ficou observando. Aproveitava cada brecha pra entender mais daquele mundo. E dela.

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No fim do treino, os meninos se despediam entre risadas, com sacolinhas de lanche nas mãos.

— Vai, vai, amanhã tem mais! — Binho gritava, já se sentindo dono do ringue.

Theo guardava os equipamentos. O sol já começava a descer no horizonte. Ele caminhou até a varanda da ONG, onde Isis estava sozinha, fumando devagar, com o olhar perdido no morro.

— Cansativo? — ele perguntou, chegando perto.

— Isso aqui nunca descansa.

— Mas você devia.

Ela soltou a fumaça pro lado, sem tirar os olhos da paisagem.

— Gente como eu não pode se dar esse luxo. Quem manda na quebrada não pode cochilar.

— Eu achei que você mandava era no coração deles.

— E o que você manda, professor? — ela virou pra ele com os olhos semicerrados. — Missão? Ordem? Relatório?

A frase bateu seco. Theo segurou firme.

Ela não sabia. Não ainda. Mas parecia sentir.

— Eu só tô tentando fazer o certo.

Ela tragou mais uma vez, depois jogou o cigarro fora com raiva.

— O certo aqui muda todo dia.

Nesse momento, o celular dela vibrou.

Ela pegou e leu em silêncio. Os olhos se apertaram. A tensão voltou.

> “Dois da Linha Verde passaram pela viela da Biquinha. Tão rondando.”

Ela apertou o aparelho com força, como se quisesse quebrar a tela.

— Droga.

— Aconteceu algo? — Theo perguntou, com calma.

— Eles tão cutucando a onça. E tão achando que ela dorme.

— Quer ajuda?

Ela olhou pra ele, firme.

— Quero que você esteja pronto. Porque quando essa guerra começar... não vai ter round pra descansar.

Theo ficou parado, encarando ela.

Sabia que a luta dele não era só com socos e esquivas. Era com verdades escondidas, mentiras mal contadas e sentimentos que cresciam na sombra do perigo.

Ela virou de costas e entrou.

E ele ficou ali, com o morro inteiro diante dos olhos... e o coração mais pesado que os punhos.

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Spoiler da A.C.Borges:

Na viela da Biquinha, uma sombra observa a ONG de longe.

Celular na mão. Olhos atentos.

— É aqui que ela esconde o ouro... — a voz sussurra.

A paz no morro tava com os dias contados.

E a primeira ameaça já tinha nome.

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