Primeira Parte: Um

— Como foi? — disparou Sirena, assim que viu Vince deixando o corredor.

Ela aguardava na enorme rampa que circundava todo o prédio da universidade pelo lado de fora, em espiral, como uma serpente em torno de um galho de árvore. A moça vinha batucando na balaustrada de vidro temperado, mas quando Vince se aproximou finalmente, após quarenta e cinco minutos, ela se interrompeu; removeu o headphone da cabeça — que mais a fazia parecer um extraterrestre do que uma aficionada por música eletrônica — e o deixou descansar no pescoço, sob os cabelos castanhos muito encaracolados.

— Foi bom — respondeu Vince, ajeitando sua mochila de ombro, que hoje estava cheia como se ele se preparasse para fugir do país.

Sirena arregalou os olhos.

— Foi bom? — Aquela era a primeira vez que o amigo dizia isso sobre um dos seminários obrigatórios na universidade. Discursar para a classe nunca foi seu forte. — Quem é você e o que fez com o Vince verdadeiro?

Ele riu, começando a descer a rampa.

— Não foi bom tipo “algo sobre o que vou me lembrar com orgulho ao longo de gerações e contar para meus possíveis futuros netos” — ilustrou. — Foi bom tipo “não vou chorar no chuveiro esta noite”.

Sirena mimicou o riso.

— Acho que é o tipo de bom que, afinal de contas, todo mundo busca até o fim do dia, então… parabéns! — Deu um soquinho no ombro dele. Sirena não aplicou muita força, talvez nem fosse capaz de machucar alguém com aqueles punhos pequenos e braços quase infantis, mas Vince era magro demais para alguém que carregava uma mochila daquele tamanho, portanto chegou a se desequilibrar para o lado.

 — Não me parabenize ainda. Posso mudar de ideia durante as próximas horas, reavaliar minha performance e concluir que foi péssima. Sabe, venho tentando essa parada de ver o copo meio cheio em vez de meio vazio. Ainda soa como uma ideia idiota.

— Só no começo.

— Não sei, não. — Ele olhava para a estrada lá embaixo através do vidro, um círculo em torno do prédio de Ciências da Tecnologia. Alguns estudantes caminhavam pelo gramado do campus, outros conduziam bicicletas movidas a energia solar. O sol de meio-dia era forte apenas o bastante para se refletir nas extremidades espelhadas da rampa e do prédio, mas não para fazer com que Vince despisse o casaco pesado que vestia. — Ainda não tem funcionado muito bem. Para mim, o copo está meio cheio é de merda. Mas Darles vive dizendo que se eu continuar repetindo palavras positivas, uma hora nem vou precisar me obrigar a isso.

Sirena fez uma careta.

— Darles de novo, é? Como andam as coisas em casa, aliás?

Vince suspirou e encarou a amiga por quase meio minuto antes de responder. A expressão dele servia de introdução ao assunto. Viu uma sombra no semblante dela e, secretamente, agradeceu-a por se preocupar de verdade em vez de apenas lhe prestar condolências casuais. Suas sobrancelhas finas se estreitavam agora, e ele sabia que seu próprio rosto ficava muito semelhante ao dela quando imitava aquele trejeito. Sirena tinha lábios não muito grossos e maçãs do rosto não muito altas, o que lhe conferia aparência séria na maior parte do tempo; no entanto, suas roupas multicoloridas e repicadas nos lugares mais inesperados, além dos cachos muito cheios, evidenciavam sua personalidade expansiva.

Frequentemente, colegas de classe achavam que Vince e Sirena eram irmãos de sangue — pois pareciam mesmo ser; as características físicas da moça lembravam as de Vince, quase como se fossem bivitelinos. “Quais eram as chances de nos tornarmos amigos?”, ela costumava perguntar, retoricamente, sempre que se davam conta do quanto tinham em comum.

Mas Vince não arriscava tanto nas cores quanto ela. Seu tom de pele negro talvez viesse a se tornar tão escuro quanto o de Sirena, mas somente caso ele gostasse de pegar sol pela manhã. Além disso, havia uma diferença sutil entre os dois: os olhos dela adotavam cor de avelã em ambientes claros como naquela rampa, enquanto os dele eram sempre de um preto absoluto, não importava quanta luz lançassem em seu rosto.

— Uma noite dessas, Darles se deitou na cama e dormiu sem dizer uma palavra depois que chegou do trabalho — revelou Vince, sentindo-se mais envergonhado do que irritado.

Sirena estalou a língua.

— Vocês costumavam ser tão unidos.

— É… uns anos atrás. Mas desde que… aquilo aconteceu… — Ele não concluiu. A morte de sua avó, única família consanguínea que Vince um dia tivera, abalara-o demais nove meses atrás, e desde então ele nunca havia sido capaz de falar abertamente a esse respeito, não sem sentir a garganta apertar.

A perda não havia sido repentina. Sua avó vivera uma vida emocionalmente miserável, e talvez a ideia de partir tivesse sido um alívio para ela em seus últimos minutos no leito. Havia sido atormentada por transtornos psicológicos por quase um século, e Vince tinha certeza de que sua infelicidade incurável fora responsável pelo padecimento físico. “Psicossomático”, ele ouvira muitas vezes na clínica ao visitá-la, até desenvolver aversão a essa palavra.

A consternação paralisante de perder metade da família o transformara. Darles, seu parceiro há cinco anos e namorado há dois, fora capaz de respeitar o luto de Vince pelos primeiros três ou quatro meses, mas já há algum tempo preferia ignorar a existência dele em vez de tentar consolá-lo. Vince o havia exaurido, e sabia bem disso, uma vez que ele próprio também se sentia assim. Não podia culpá-lo, mas também não podia, de todo modo, fugir de si próprio — ou das sensações de solidão e impotência que o arrebatavam quando se lembrava de que o amor de filho que sentia por sua avó não havia sido suficiente para salvá-la de alguma forma.

Sirena não insistiu no assunto. Respirou fundo e levantou o queixo:

— Quer saber? Hoje é sexta-feira. Vamos afogar as mágoas num copo meio cheio de vodca, o que acha? Ou totalmente cheio. Ou, mais provavelmente, vários copos totalmente cheios.

Vince sorriu e sacudiu a cabeça.

— Não posso. Tenho trabalho para fazer.

— Numa sexta-feira? — grasnou.

— A universidade não me paga para passar sextas-feiras festejando por aí.

— Nem finais de semana, feriados, folgas e férias, você quer dizer. — Revirou os olhos.

— Estou quase terminando minha carta-proposta. Preciso concentrar minhas energias nisso.

— Você tem trabalhado nisso desde que se matriculou aqui. Literalmente. Está “quase terminando” essa droga há três anos. E aí, de repente, resolve ter uma ideia nova e colocar no projeto. Quando não, reescreve tudo.

Vince se ofendeu. Aquele era um resumo grosseiro e cínico de como vinha sendo seu trabalho.

— Eu não tenho “novas ideias”, apenas coleto novos argumentos para adicionar à minha proposta. E só reescrevi o projeto inteiro uma vez.

— Tanto faz. Isso já virou rotina — insistiu. — Termine logo. Mande-o para qualquer companhia ou sei lá. Você vai precisar estagiar até o final do ano que vem, e isso não vai acontecer se não entregar logo essa proposta para alguém.

— Não quero estagiar em qualquer companhia. Você sabe que a OneBionics é a única opção para mim — retrucou. Vince não se satisfaria com menos. Precisava garantir que sua carta-proposta estivesse perfeita antes de enviá-la, certificar-se de que nenhuma outra carta-proposta, de nenhum outro estudante de Engenharia Robótica, se equipararia à dele; precisava ser o escolhido.

Quando eles finalmente saíram da rampa para o gramado, Sirena ainda tentava convencê-lo a visitarem um bar. Ela foi interrompida por um homem muito alto e robusto, de meia-idade, que se aproximou dos dois com o cenho franzido.

— Vince Lancchesi? — perguntou.

Vince reparou no uniforme do homem antes de reconhecê-lo. Era um dos guardas de segurança do prédio de Ciências da Saúde. Tentou se lembrar do nome dele, mas recordava apenas que começava com a letra P.

— Algum problema?

— Você faz parte dos voluntários da equipe de… — hesitou. Olhou para o prédio do qual os dois jovens haviam acabado de sair. — De manutenção de biônicos, certo? Estão solicitando você na ala de acolhimento à comunidade. Pode vir comigo?

Vince trocou olhares com Sirena, silenciosamente usando mais esse argumento na discussão.

*****

Não era a primeira vez que Vince visitava o escritório de práticas terapêuticas. Era amplo, as paredes apresentavam um padrão de decoração assimétrico, com arandelas que lançavam luz na forma de ampulheta. Embora o resto do prédio tivesse uma arquitetura sisuda, aquele cômodo havia sido pintado com cores primárias; era mobiliado de pufes e poltronas com almofadas. O par de funcionários, que trabalhava atrás de escrivaninhas, não desviou o olhar do computador quando Vince entrou.

— Deixe que ela me acompanhe — pediu ele quando o segurança fez menção de impedir a passagem de Sirena.

Uma das paredes era completamente feita de vidro, através da qual era possível ver a sala adjacente, dedicada a meditação e terapia. Estudantes da universidade de vários cursos se prostravam diante de biônicos, sentados em posição de lótus sobre tatames coloridos.

No centro do escritório, mais um guarda uniformizado esperava.

— Deu problema nesta aqui outra vez — informou, não muito surpreso. Apontou para a cadeira ao seu lado, onde alguém aguardava. Uma biônica.

Vince pegou uma cadeira num canto e a posicionou diante da mulher antes de se sentar. Seus cabelos negros caíam em cachos largos até a altura do peito; usava vestido florido e meia calça.

— O que há de errado? — inquiriu Vince.

O segurança que havia ido buscá-lo — Vince agora o chamava de P em pensamento — se colocou do outro lado da cadeira da biônica. Os dois homens pareciam guardá-la como gárgulas, ainda que isso não fosse necessário.

— Uma paciente veio para a sessão de terapia uma hora atrás e disse que vinha se sentindo desmotivada com a vida — entabulou P.

— Nada incomum. Só gente desmotivada entra nesta ala — rumorejou o outro segurança, contendo uma risada não correspondida pelos demais.

— Só que esta doida aqui não estava muito disposta a ajudar — completou o primeiro, apoiando a mão no respaldo.

Vince concentrou-se na mulher. Não gostava de chamá-los daquela maneira. “Biônico” soava como uma parte isolada de um corpo, um membro com função, mas sem individualidade. Sabia muito bem que não se tratava de pessoas, é claro; mas também não achava justo reduzi-los a meros fragmentos de um mecanismo — era um terrível impropério contra engenheiros como ele, que passavam a vida estudando e se aperfeiçoando a fim de criar uma ferramenta inteira e complexa. A palavra “biônico” não fazia jus ao que aquelas máquinas eram. Com frequência, ouvia-se professores do curso de Engenharia Robótica usando termos como “sintético”, “dispositivo” ou “autômato”; soavam ótimos no meio acadêmico, mas não se fixavam na linguagem popular, e a culpa disso talvez fosse da mídia.

A biônica permanecia em posição hirta; seus olhos castanhos, vidrados; o rosto, inexpressivo. Era possível notar o limiar entre a camada de pele feita de silicone que revestia seu rosto e a que cobria o tronco, bem como em outras juntas — cotovelos, pulsos, joelhos…

Vince sabia que a peruca não estava encaixada adequadamente e que, a qualquer movimento brusco, seu cérebro sintético feito de fios e circuitos ficaria à mostra. Os modelos enviados para as áreas de apoio gratuito geralmente não eram os melhores, mas mesmo os biônicos do prédio de Ciências da Tecnologia não pareciam muito mais realistas do que isso.

— Qual é o designativo dela? — perguntou, mas não esperou que respondessem. Pôs-se a levantar o vestido da mulher, até encontrar uma parte da coxa que não estivesse coberta pela meia calça. Leu no silicone os algarismos marcados na fabricação. — D-0N40, olá!

A biônica se manifestou perante o comando, saindo do estado de letargia. Reposicionou a cabeça e pousou olhar em Vince, piscando algumas vezes.

— Pois não? — articulou. Sua voz, ao menos, parecia completamente humana. Nesse aspecto, nem mesmo a área de tratamento gratuito deixaria a desejar. Nada soava mais acolhedor para um paciente transtornado do que uma voz morna.

— Há qualquer registro de erro no seu histórico de operação? — Ele examinava o rosto dela como um doutor num consultório, apesar de saber que dificilmente encontraria a resposta para aquela pergunta na aparência da biônica. Ela parecia saudável; tinha compleição atraente e simpática, bochechas rosadas, cílios longos e um sorriso espontâneo.

— Não.

Vince colocou a mochila sobre o colo e abriu o zíper. Sentia a presença de Sirena às suas costas; ela adorava vê-lo trabalhar.

— Pode me dizer qual é sua função aqui na ala de acolhimento? — investigou ele.

— Receber aqueles que precisam de apoio emocional e fornecer ajuda especializada.

Vince lançou um segundo breve olhar para além da parede de vidro, verificando que os demais biônicos punham em prática tal atribuição naquele exato momento; um deles, inclusive, concedia uma sessão particular de ioga a um dos pacientes. Desde que fora comprovada, há cerca de uma década, a influência positiva que esse tipo de interação podia ter no emocional das pessoas, espaços de terapia como aquele vinham se tornando cada vez mais comuns em todo o continente. Os biônicos responsáveis por receber pacientes eram programados com as orientações e supervisões de psicoterapeutas treinados no ramo.

— E foi isso que você fez nas últimas vinte e quatro horas?

— Sim.

Vince sabia que não era verdade, caso contrário ele não teria sido chamado. O processamento da biônica precisava ser verificado.

Tirou da mochila seu dispositivo em formato de óculos de uma lente só, sua objetiva. Ouviu Sirena estalando a língua em reprovação; ela sempre guardava sua própria objetiva no bolso da blusa — isto é, quando a tirava do rosto. Vince, por outro lado, acabava abandonando a dele em qualquer lugar, já nem sabia quantas vezes a havia perdido na universidade.

Colocando a objetiva no olho — e garantindo que o fone na ponta da haste estivesse bem-posicionado no ouvido —, lançou a próxima pergunta:

— O que você me diria se eu lhe dissesse que tenho me sentido desmotivado ultimamente?

Ela levou um segundo.

— Desmotivação impede a realização de tarefas ou o interesse por elas — explicitou, e, quando parecia ter terminado, após uma breve pausa, completou: — É um estado de espírito inerente ao caráter humano.

Vince franziu o cenho e olhou para os guardas. Um deles fez cara de “está vendo?”, deixando subentendido que a última frase não condizia com a abordagem de qualquer espécie de tratamento aplicado naquela ala.

— Explique melhor.

— Crise existencial, levianamente chamada de neurose noogênica, é relativa à percepção das ambiguidades presentes na existência em si. É experimentada por seres autoconscientes que, devido aos intrínsecos instinto de sobrevivência e necessidade de compressão, são capazes de contemplar a incoerência da própria existência diante de questões com particularidades especulativas, como a ideia da morte, o conceito de liberdade e o sentido da vida — proferiu, tranquila e calorosa, como uma mãe que coloca o bebê para dormir. — É inevitável que você se sinta desmotivado, uma vez que perceba a insignificância da sua própria existência perante a imensidão do universo e a efemeridade de toda a vida presente no planeta em que vive.

Vince soltou ar. Entendia o problema.

— Uma garota saiu daqui aos prantos depois de ouvir isso — apontou um dos guardas.

— Não sei de onde esses trecos tiram essas coisas. Eles me assustam — contribuiu P. — Minha filha resolveu dormir fora durante uma semana depois que o biônico lá de casa sugeriu que adicionássemos carne humana à lista de supermercado.

Sirena começou a rir atrás de Vince, mas logo tapou a boca ao notar o olhar sem humor no semblante transtornado do homem.

— Suponho que essa biônica não tenha sido programada para dizer isso aos pacientes — começou Vince, com ênfase no “biônica”, discretamente repreendendo o segurança por chamá-la de treco. — É provável que o mecanismo de aprendizagem dela esteja ativo e descalibrado. Algum paciente muito niilista deve ter filosofado além da conta durante uma sessão; ela provavelmente registrou essas novas informações e fez algumas deduções, o que resultou nessa… verborreia bizarra. — Vince removeu o pequeno chip da haste da objetiva e se colocou de pé. — Pode levantar o cabelo dela por um segundo, por favor?

P obedeceu. Vince poderia apenas parear sua objetiva à biônica remotamente, mas preferiu encaixar o chip diretamente na entrada entre a nuca e a borda da peruca.

— Deduções? Está dizendo que ela ficou impressionada com o que um paciente falou e… chegou a essas conclusões por conta própria? — sondou o segurança.

— Mais ou menos — respondeu Vince, procurando mais um apetrecho na mochila. — Ela comparou informações previamente registradas no banco de dados interno com as informações recebidas por meio de interação externa. De certa forma, isso é, sim, chegar a uma conclusão. Mas, ao mesmo tempo, ela não pode ter ficado “impressionada”. — Encontrou o anel de sensor de movimento e o colocou no dedo. — Emoções têm origem apenas na fisiologia. Ela desenvolveu uma linha de raciocínio, mas não ponderou de uma maneira empática.

O segurança pareceu ainda mais confuso. Sirena se aproximou um pouco mais e interveio:

— O que ele quer dizer é que ela aprendeu um truque novo, mas não sabe o que fazer com ele.

— Ah, igual a um cachorro?

Vince fechou os olhos por um instante, reunindo paciência. Lá estava Sirena, resumindo tudo grosseiramente outra vez; e, do outro lado, estava alguém que parecia nunca ter lido um livro na vida.

Através da lente objetiva, pôde enxergar as linhas de comando no interior da biônica. Com movimentos de mão captados pelo anel, foi navegando pelas linhas, buscando a que precisava de alteração.

— Na minha época, não havia essas coisas — condenou o outro segurança. — Inteligência artificial só existia nos eletrodomésticos. Nada que pudesse abrir a porta do meu quarto à noite.

— Na sua época, havia quarenta anos de pesquisa científica a menos na história da humanidade — devolveu Vince, tentando soar o mínimo indelicado possível. Não obteve muito sucesso, e soube disso porque Sirena pousou a mão brandamente em suas costas, como se pretendesse puxá-lo para fora de uma possível discussão.

— Só estou dizendo que eles não deveriam ter cara de gente, está bem? Só gente deveria ter cara de gente. Muito menos deveriam “aprender” coisas — o segurança continuou. — Hoje ela aprende sobre universo e sei lá o quê. Quem garante que amanhã não aprenderá a exterminar a raça humana igual naqueles filmes antigos?

Nós garantimos — afirmou Vince, sem interromper seu trabalho. — Para que biônicos tomassem decisões próprias, precisariam ter uma consciência baseada num sistema não determinístico.

— E quem garante que já não têm?

A mão de Sirena nas costas de Vince se fechou, de modo que ele sentisse suas unhas. Ela sabia que Vince era um dos alunos mais preeminentes da classe; costumava ter um humor muito autodepreciativo, mas, quando ficava bêbado, resolvia contar para todo mundo sobre seu QI de 146, sobre as medalhas que ganhara no Ensino Fundamental por sua participação ilustre nas feiras de ciência e sobre seus planos megalomaníacos para o futuro no âmbito científico. No geral, permanecia calado quando alguém o desafiava numa disputa argumentativa — mas nunca quando se tratava da sua área de estudo, especialmente do tema de sua carta-proposta. Aquele escritório estava prestes a se tornar um ringue.

— Para que o comportamento de um indivíduo não seja determinístico, sua espécie precisa ter liberdade para evoluir livremente, sem intervenção objetiva. Conhece o método darwiniano? — indagou. O segundo segurança estava prestes a dizer que não, mas Vince não esperou. — Grande parte do que nós, seres humanos, somos capazes de realizar em comparação aos nossos ancestrais mais antigos só é possível devido ao processo de seleção natural. Claro que ela não acontece de maneira controlada, e a prova disso é que uma série de adaptações foram feitas pela natureza para que tivéssemos o resultado que temos hoje. A evolução modela os seres vivos para que resolvam problemas baseados no princípio da sobrevivência. É como um algoritmo que só funciona se puder lançar mão de elementos muito específicos. Um desses elementos é a mutação, como vemos acontecer em genes, e um outro é a hereditariedade.

P semicerrou os olhos, em sinal de que já havia ouvido aquilo antes.

— É aquele tal papo de que sobrevivem os que melhor se adaptam?

Vince fez que sim.

— Os que melhor se adaptam são os que se diferenciam na hora de resolver esses problemas. Em outras palavras, aqueles que possuem genes mutados “para melhor”, em termos leigos — palestrou, enquanto continuava movendo a mão no ar e acessando menus visíveis apenas para si próprio através da objetiva no rosto.

O outro segurança parecia ainda mais confuso.

— Ainda estamos falando de máquinas?

— Aí é que está. Assim como na natureza, se inteligências artificiais tiverem permissão para criar soluções próprias para problemas aos quais são designadas, mesmo que seja por meio de tentativa e erro, uma hora não responderão apenas de maneira automática a estímulos externos. Seria o equivalente à mutação genética, mas aplicado num indivíduo não orgânico — continuou. — E, além disso, ainda considerando o método darwiniano, caso fizéssemos um crossover entre as informações registradas por uma inteligência com os dados coletados por outra, daríamos origem a uma segunda geração de biônicos, mais esperta que a anterior.

— Ele está basicamente descrevendo reprodução biológica… — simplificou Sirena.

O segurança levantou as sobrancelhas.

— Reprodução… como se tivessem filhos?

Vince não se incomodava com essa comparação simplória. Em teoria, era boa.

— Exato, mas em vez de uma troca genética, seria uma troca de dados. Repetindo isso muitas vezes, os biônicos que temos hoje finalmente pareceriam chimpanzés comparados com aqueles que teríamos no futuro. Agora, respondendo à sua pergunta… não podemos equiparar o desempenho de máquinas que operam a partir de programação prévia e que possuem uma curva de aprendizagem tão limitada à complexidade cognitiva de animais que foram submetidos a seleção por centenas de milhões de anos.

Parou por um instante, mas não se deu por satisfeito. Ao perceber que os homens não contra-argumentariam, abriu a boca para continuar. Sirena, no entanto, o interrompeu:

— Enfim, ele só está dizendo que os biônicos não são capazes de criar uma conspiração contra a humanidade porque são apenas máquinas — tranquilizou Sirena. — E isso tudo, é claro, está de acordo apenas com uma carta-proposta que ele já reescreveu milhares de vezes e nunca finalizou, então… não precisam se esforçar para entender.

Vince fuzilou a amiga com o olhar.

— É apenas uma hipótese por enquanto, mas há muito suporte teórico nisso — obstinou-se.

A moça falava diretamente para os seguranças:

— Uma hipótese que provavelmente vai continuar guardada no computador desse cara até que alguém tenha as mesmas ideias e receba todos os créditos. — Jogou sal na ferida. — Especialmente se ele continuar discutindo sobre isso com qualquer um que apareça na frente.

Vince praticamente rosnou para ela e se reportou aos seguranças:

— Está bem. Acreditem no que quiser. Máquinas dominarão o mundo em breve ou sei lá. Que seja. — Retirou a objetiva do rosto e se curvou na direção da biônica outra vez. — Oi, D-0N40. Está vendo esse moço aqui? — Apontou para o segurança com o qual havia discutido. — Ele anda muito desmotivado nos últimos dias. O que você tem a dizer?

A mulher virou um pouco o pescoço para o lado, a fim de criar contato visual com o homem. Em seguida, respondeu:

— Desmotivação impede a realização de tarefas ou o interesse por elas. O que acha de começarmos a trabalhar essa questão com um exercício simples de meditação? — E esperou. Nada de longos colóquios sobre crises existenciais.

Vince removeu o chip da nuca da biônica, devolvendo-o ao lugar. Depois, jogou tudo na mochila e a fechou.

— Está consertada. Não fará mais ninguém chorar. — Colocou a mochila no ombro e foi andando para a saída com passos firmes, seguido por Sirena. Antes de passar pela porta, entretanto, virou-se uma última vez: — E a respeito da sua filha… Não foi por causa do seu biônico que ela passou uma semana dormindo fora de casa. Foi a desculpa que inventou para viajar às escondidas com as amigas da faculdade. Passou sete dias na costa norte. O prédio inteiro de Ciências da Tecnologia sabe disso.

Minutos depois, de volta ao gramado, Sirena o recriminou:

— Sempre delicado como um jegue.

— Os caras trabalham numa universidade. Não deveriam nem dar ouvidos a essas teorias conspiratórias, essas baboseiras que dizem por aí.

Sirena estalou a língua.

— Existem maneiras mais eficientes de convencer as pessoas. Você não precisa fazer todo mundo se sentir burro.

Vince poderia discutir, mas estava cansado demais para isso. Cansado de ter sua área de atuação ameaça pela ignorância conservadora e alarmista que parecia apenas se fortalecer nos últimos anos. E também… cansado de ser essa versão ranzinza de si mesmo, que não superava o fato de que a pessoa que ele mais amava havia partido — e que a segunda pessoa que mais amava, do mesmo modo, vinha partindo lentamente, sem que ele pudesse fazer algo a respeito.

— Quer saber? O copo está vazio mesmo. Vou voltar para casa.

Para uma família que ele sabia que não existia mais.

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