Simas deixou a ilha de Ventura e finalmente se viu livre do controle do Núcleo. O trajeto pelo oceano seria uma etapa tranquila rumo à província - isto é, caso ele e seus aliados não tivessem cometido tantos erros durante o processo. Agora a Corte tem uma nova preocupação, e a Suprema Magister iniciará uma caçada àqueles que vêm perturbando a ordem em seu império. Após descobrir o ingresso ilegal de uma garotinha provinciana no Núcleo, Scylla se esforçará para impedir que o resultado das ações dos infratores macule sua imagem de governante, enquanto engendra um esquema para se livrar em definitivo de seus adversários - mesmo que para isso precise exterminá-los como insetos invasores num ninho de abelhas. No segundo volume de Projeto Colmeia, mistérios enterrados no passado virão à tona, revelando segredos de um período anterior à chegada de Simas ao Núcleo. Restará ao rapaz tomar uma decisão delicada que mudará o curso não apenas da sua vida, mas a de todos que ele conhece: inclusive a de Benjamin.
Leer másFazia muito calor essa noite, apesar da chuva torrencial que assolava as janelas de casa. Eu me via batendo na porta do quarto. Talvez faltasse energia elétrica, não era comum que minha mãe deixasse todas as luzes da sala apagadas.
A porta se abriu, minha mãe me fitou por um instante com olhos semicerrados. Seus cabelos volumosos, negros e encaracolados, davam a ela a aparência engraçada de um abajur — devia saber disso, pois logo os prendeu num rabo de cavalo.
— O que faz acordado, meu filho? — perguntou, a voz ainda embargada de sono.
Segurei o travesseiro mais perto do rosto, mas não disse nada. Eu não queria acordar o papai, ele ficava bem irritado quando o incomodávamos.
Ela compreendeu. Fechou a porta atrás de si e me pegou no colo. Eu sabia que já estava muito crescido para isso, para ficar com medo do escuro — completara cinco anos no mês passado, e a mamãe vez ou outra reclamava que suas costas doíam por segurarem meu peso. Mas, essa noite, Farid dormia quieto, e eu não gostava quando ele não roncava, pois tudo ficava muito silencioso.
Ela me levou de volta para o quarto e me deitou na cama; acomodou-se ao meu lado e me lançou um olhar complacente.
— É a segunda vez esta semana — disse ela.
— Desculpe.
Sorriu e balançou a cabeça.
— Não tem problema. Mas, se há alguma coisa preocupando você, sabe que pode conversar comigo, não sabe?
Apertei os lábios.
— Papai diz que sou muito novo para ter preocupação — respondi, num sussurro.
— É, ele diz. Mas nunca se é jovem demais para isso. Ele é velho. E quando se é velho, se esquece de como é ser novo.
Mamãe sempre dizia aquilo para mim, e eu sempre respondia da mesma maneira, apenas para lhe provocar risada:
— Você também esqueceu?
Ela colocou as mãos na cintura de modo ensaiado e forçou um semblante ofendido, como de costume.
— Está me chamando de velha? — perguntou. Rimos. E então, ela retomou: — Me diga, o que tem assustado você?
Fiz uma careta.
— É uma coisa que Farid disse — revelei. — Falou que eu sou um mal-apanhado, mas que os homens vão me pegar quando eu crescer e me levar embora.
Eu já sentia as lágrimas forçando a saída. Não queria ir embora. Esperava que minha mãe me confortasse e dissesse que era besteira ter medo de algo tão improvável — assim como já tinha feito acerca do bicho-papão embaixo da cama. Não foi assim dessa vez. Passou a mão pelos meus cabelos e estalou a língua num muxoxo melancólico. Seu carinho era tão real que mal parecia fruto de uma lembrança antiga.
— Disso seu irmão não sabe. Você é esperto demais para dar ouvidos a ele, não é? — sugeriu. Balancei a cabeça positivamente. Era esperto, sim. Todos me achavam esperto. Farid, nem tanto. — Então não há com o que se preocupar.
Um trovão retumbou lá fora. Levantei o cobertor até a altura do peito, apesar do quarto estar bem quente.
— Mesmo assim, não consigo dormir.
Ela levantou as sobrancelhas.
— Acho que você precisa de uma história de ninar. — Sim, claro que sim! E eu já esperava que ela fosse oferecer uma. — Que tal a história dos três irmãos?
— Essa de novo?
— É sua preferida.
Na verdade, eu não me lembrava de ter uma preferida. Mamãe sempre dizia que era a história mais divertida, apesar de eu poder enumerar uma porção de outras um tanto melhores. Bem, uma história era uma história afinal — e, numa noite escura de tempestade, eu não recusaria nenhuma.
Então ela começou a narrar, bem baixinho, com uma voz dramática de contador de histórias que só ela sabia fazer:
— Era uma vez três jovens irmãos, assim como você e Farid. Eles moravam num vilarejo com os pais. Certo dia, sua mãe pediu que levassem umas ervas de chá para sua tia, pois a coitada estava muito doente. Preocupada com a segurança de seus filhos, a mãe os orientou que não fossem pela caverna entre a montanha, pois corriam o risco de se perder e serem capturados pelo malvado monstro que lá habitava.
"Os dois mais velhos não tinham medo de cavernas escuras. Pelo caminho, ao se aproximarem da entrada que existia à base da montanha, preferiram explorá-la. Curiosos como eram, ignorando o pedido da mãe e os protestos do irmão mais novo, desviaram-se da trilha segura.”
Ela repetia as palavras que eu já até havia memorizado. Conhecia a história de cor, mas algo na maneira como minha mãe a narrava fazia com que soasse interessante como da primeira vez.
Mamãe continuava:
— Os garotos achavam que o caminho até o outro lado não podia ser longo, mas logo se deram conta de que estavam perdidos num labirinto e que, mesmo se quisessem, seria impossível retornar à entrada.
"Foi então que, quando as crianças já começavam a se desesperar, uma figura surgiu. Não era um monstro, mas um homem; estava bem-arrumado, bengala numa mão e chapéu elegante na outra. Definitivamente não podia ser o tal monstro malvado que morava na caverna.
“Os meninos, ainda mais intrigados, cumprimentaram o senhor e pediram que ele lhes apontasse a saída. O homem sorriu e perguntou: ‘como se chamam?’. O mais velho respondeu: ‘Sou Eroniel. Esse é meu irmão Agediel. E o mais novo se chama Rainiel’. O homem soltou uma risada muito simpática e falou: ‘Parecem perdidos. Gostei de vocês. Posso ajudá-los a sair daqui’.
— Ai, não! — exclamei. Eu já sabia o que ia acontecer, ficava aflito sempre que chegávamos a essa parte.
Minha mãe meneou a cabeça e prosseguiu:
— O moço gesticulou na direção de duas grandes portas atrás de si. A porta da esquerda era opulenta, feita de ouro e encrustada de diamantes, a mais bonita que os meninos já tinham visto; a da direita era uma singela porta de latão enferrujado, feia como a feiura deve ser.
“O homem cantou numa voz melodiosa: ‘se a luz do dia desejam ver, a porta correta devem escolher; uma delas é a saída, a outra é morte doída’.
"Os irmãos discutiram para escolher, sem conseguirem chegar a um acordo. Eroniel devia ser o mais sábio, pois era mais velho, e, portanto, tomou a decisão pelos demais: ‘a porta dourada é a mais bonita, deve nos levar a um lugar legal’. Ele avançou à porta de ouro e a abriu com um empurrão. Lá dentro, contudo, um leão faminto esperava; com uma só mordida, abocanhou o pobre menino, devorando-o.”
Prendi a respiração. Essa parte da história me dava medo. Mamãe passou outra vez os dedos pelos meus cabelos, tranquilizando-me para que eu continuasse ouvindo o restante da história.
— Apenas dois meninos restavam. Eles estavam assustados, mas não tinham como voltar por onde haviam vindo. O mais novo só conseguia chorar de medo; foi o irmão do meio que empurrou a porta de latão enferrujado, a única opção que sobrava.
“Chegaram a um outro salão. Agora, como da primeira vez, havia mais duas portas esperando por eles. Essas portas eram diferentes das anteriores: a da direita era esculpida em mármore e encrustada de rubis e safiras, a outra era feita de pedra simples. Cantando outra vez, o homem recitou: ‘Atentem-se, crianças, pois das duas, só uma salva; a outra, por sua vez, condenará sua alma’.
“Agediel, apressado, não parou para refletir. Avançou até a porta de mármore e a abriu. Seu grito foi abafado pelas chamas de um dragão. Só restou o cheiro de queimado e o pó no chão. Agora havia apenas o irmão mais novo.”
Apertei o cobertor com força. Estávamos chegando à parte mais empolgante. Ela continuou:
— Sozinho, ele seguiu pela porta de pedra. Chegou a um terceiro salão. Dessa vez, as portas eram idênticas, ambas feitas de madeira desgastada e suja. O homem cantarolou uma última vez: ‘Seja atento, os detalhes importam. Quando somos tão iguais, o que é que todos notam?’.
“Qualquer uma das duas podia levá-lo à saída, mas também a uma besta feroz. Rainiel precisava escolher, e, sem os irmãos mais velhos para lhe dizer o que fazer, a decisão seria inteiramente sua. Olhando com mais atenção, ele notou uma pequena flor púrpura na maçaneta da porta à direita, algo que não havia na da esquerda. À princípio, sentiu que deveria ir naquela direção, mas então se deu conta do que estava acontecendo. Ouro podia até reluzir, e safiras podiam ser valiosas, mas nada disso tinha protegido seus irmãos dos perigos do caminho. Por isso, o jovem escolheu a porta de madeira mais simples, longe da flor; quando a abriu, viu-se mais uma vez fora da caverna, na estrada que levava à cabana de sua tia.
“Ao olhar para trás, pôde ver o homem através da abertura na montanha; só que agora ele estava diferente, não tinha mais chapéu nem bengala; na verdade, não era nem mesmo um homem; seus olhos vermelhos revelavam que era o monstro malvado.
“O menino correu para longe da caverna e, depois disso, nunca mais desobedeceu às instruções que lhes eram dadas.”
Ela sorriu, concluindo a história. Respirei fundo.
— Esses meninos — falei, por fim — não eram muito inteligentes.
Assentiu.
— Nem todas as crianças são. — Acariciou meu rosto. — Mas todas podem aprender a lição antes que seja tarde demais.
O sentimento provocado pela história ainda se demorava, mas senti que estava pronto para voltar a dormir. Minha mãe ainda sorria; tinha os lábios grossos. Sua presença me acalmava.
Ela se aproximou de mim e, em vez de dar um beijo no meu rosto — como costumava fazer antes de retornar para seu quarto —, puxou uma parte do edredom e se deitou ao meu lado. Eu gostava quando ela me fazia companhia na cama.
Fechei os olhos e me permiti adormecer. Antes que a inconsciência chegasse, num momento em que minha mãe provavelmente supunha que eu já não mais escutava, ela aproximou a boca do meu ouvido e sussurrou:
— Fique longe das portas erradas, meu filho.
Não era a mesma voz serena que há alguns minutos.
Lena veio me visitar, trazendo uma vasilha de canja em sua bandeja de café da manhã. Alve já havia saído para visitar seus avós, o momento de leitura estava encerrado por hoje. Minha irmã falou sobre o quanto estava aliviada por me ver, embora estivesse preocupada com a minha saúde. Ajeitou o travesseiro atrás de mim, de modo que eu pudesse me sentar; mediu minha temperatura e constatou que ela estava diminuindo. Insisti que eu poderia me alimentar sozinho, mas ela fazia questão de levar a colher à minha boca.Tomei as colheradas calado. A canja estava boa, mas minha atenção estava toda na minha irmã. Ela estava viva, segura, como tantas vezes eu havia desejado que estivesse. Agora, entretanto, eu a via com outros olhos. Vinha-me à mente as imagens de uma Lena furiosa admitindo ser responsável pelo assassinato do próprio pai. Ela fingia que não percebia meu o
O aroma doce me dava bom-dia. Eu podia sentir a presença de Benjamin ao meu lado no colchão. Havíamos dormido afinal. Virei-me de barriga para cima, devagar para não despertá-lo. Então, por um momento, quase experimentei um déjà vu. Colado no teto, bem acima do meu rosto, havia uma folha de papel, um desenho feito à mão.Benjamin se mexeu ao meu lado, já estava acordado. Ao perceber que ele olhava para mim, fiz uma careta.— Aquilo é uma mosca? — perguntei, tentando decifrar o desenho no papel. Tratava-se de um círculo com tracinhos ao redor.Ele cobriu uma risada com a mão.— Uma mariposa — respondeu. — A sua mariposa. — Franzi o cenho. Benjamin fixara o desenho no teto enquanto eu dormia. — Queria que você se sentisse em casa.Lembrei-me de ter contado a ele sobre a mancha do meu quart
Agora o toque era real. Mais brusco, mais… desesperado.— Simas, por toda a venustidade! — A voz de Benjamin soava bem acima de mim.Ele levantou minha cabeça para uma posição inclinada e forçou algo frio contra minha boca. De olhos ainda fechados, senti na língua o gosto de ambrosina, o fluido azul curativo; ele me empurrava a borda de um frasco. Tentei engolir o máximo que pude.Então ele me segurou. Colocou um dos meus braços por trás do pescoço e me arrastou para dentro do elevador. Percebi por sua respiração ofegante que ele esteve correndo. Os gemidos que soltava para tentar segurar o peso do meu corpo indicavam que eu não era um fardo fácil de se carregar. Minhas pernas imóveis deslizavam pelo chão.Uma vez dentro do elevador, Benjamin despencou. Não se preocupou em me ajeitar confortavelmente; apenas apertou os
Eu nunca deveria ter acreditado no que os livros diziam sobre a morte. As ficções poderiam ter me convencido de que a vida passaria diante dos meus olhos em retrospectiva; de que os últimos momentos seriam de paz antes que eu fosse levado para uma dimensão fora da matéria. As não-ficções ensinavam o incontestável: nos primeiros segundos, eu expeliria o que restava de oxigênio no meu corpo. Minha atividade cerebral pararia. Talvez algumas funções ainda se mantivessem por alguns minutos, consumindo as últimas unidades de energia. E então meus músculos relaxariam. A essa altura, eu não estaria mais ali para ver.Da minha perspectiva, nada disso era tão fácil de imaginar. Mas a poética visão de túnel era real. Quanto tempo eu teria que esperar?Obriguei-me a manter os olhos abertos até que não aguentasse mais. Em ve
Começava a anoitecer, e o céu tinha uma cor avermelhada bonita. Eu tinha ficado tanto tempo dentro daquele lugar que nem sabia que horas eram. O ar do lado de fora era um pouco abafado, mas não era o clima ou a paisagem o que me chamava a atenção.Um monte de pessoas se reunia pra gritar. Era que nem na Festa da Grande Emersão, com um monte de gente junta, mas um pouco diferente, porque pareciam estar com raiva de alguma coisa. Ou de alguém. Talvez tivesse alguma coisa a ver com o que meu irmão e aquele menino tinham conversado lá dentro.Simas tinha dito pra eu confiar no menino, mas eu estava com medo. E se a mamãe estivesse certa, e todos daquele lugar fossem maus? A pele de Benjamin era macia; ele me lembrava uma boneca que uma amiga minha tinha, toda bonitinha. Eu queria ser igual a ele. Meu irmão confiava nele. Eu ia dar uma chance pro garoto.
A conversa havia acabado.O rosto de Reina era um alvo fácil. Por um instante, desejei adiar o momento, apenas para contemplar seu desespero. Todas as suas palavras insubordinadas, seus ideais absurdos… Ela merecia morrer.Foi assim que puxei o gatilho. O que aconteceu, entretanto, estava longe de ser o que eu esperava. Esse foi o instante exato em que uma terceira bomba nos acertou. O efeito foi muito maior dessa vez, como o de um terremoto, empurrando-me para o lado. Com a mão livre, segurei-me na mesa para não cair. O tiro acertou a parede do outro lado da sala.Um segundo antes que eu voltasse a mirar na assistente, ela investiu. Reagia depressa. Segurou meu pulso com ambas as mãos e o empurrou com força contra a superfície da mesa, garantindo que o cano apontasse para outra direção senão a dela; esforçava-se para torcer meu pulso. Recobrei meu equilíbrio, mas agora est&aacut
Último capítulo