Motim

(Uma aventura pirata completa em 1 capítulo!)

       

Prelúdio

- Cópias -

Se você quer achar respostas certas, é preciso achar, antes, as perguntas certas. 

Minha psicóloga está falando e não estou prestando atenção. Minha mente está distante. A mulher está apenas repassando alguns pontos de nossas conversas anteriores e, como eu estava lá durante tais conversas, não preciso recordar como se minha vida fosse uma série televisiva que acompanho. Posso apenas sorrir e fingir que escuto.

Minha mente divaga, sem pressa, e me pergunto como minha vida seria se fosse acompanhada por outros, como numa série. Vista de fora ela pareceria menor que a realidade que envolve os espectadores? Provavelmente.

A entonação da mulher muda e pisco, buscando foco para escutar.

– ... assim sendo; você deve perceber que as pessoas te percebem, não é mesmo? – Ela pergunta. Pra mim, é como se eu estivesse chegando naquela sala, na qual estou sentado faz muitos minutos. Pela minha cara, ela percebe que preciso de mais informações e diz: – Por manter constantemente esse visual, que, por mais que não seja o figurino completo de pirata, como o que você diz usar para interpretar seu personagem em palcos, é, ainda assim, fora do comum.

– Sim – respondo. – Sou chamado de Jack Sparrow cerca de setenta vezes por dia. Isso se eu for apenas à padaria.   

– E como reage a isso?

– Digo que de fato ele se parece comigo – respondo e ofereço um sorriso discreto. Ela não sorri. Espera por mais e resolvo colaborar. Desencosto da cadeira e falo: – Me incomoda um pouco que justifiquem meu visual assim. Quase todo mundo parece buscar uma justificativa para tudo, mas da forma mais preguiçosa possível. E, feito crianças, se divertem com o que é óbvio... com as semelhanças meramente superficiais e se dão por satisfeitos por fazer algum sentido para eles. E é um pouco triste, pois o óbvio aqui deveria ser apenas a provocação. E a lembrança que eu queria ser, sequer é cogitada.

– Que lembrança seria essa?

– De que podemos ser quem quisermos ser. De que todos estamos interpretando, a todo momento. Que por trás das roupas, da pele, dos músculos, dos ossos, há uma alma. Somos todos atores interpretando. Escolhendo papéis de acordo com o que nos agrada, dentro do que é exigido.

 A psicóloga percebe que acendeu algum fogo em mim e eu também percebo. Poderia falar por horas sobre a importância em se ter consciência disso, mas hesito e meço cada palavra na tentativa de resumir o máximo e perder o mínimo da essência:

 – Para sermos aceitos, aceitamos fazer de conta isso e aquilo, montando nossas máscaras, inspirados por arquétipos com os quais no identificamos. Pelos quais somos influenciados. Criamos, assim, nossas identidades. Antigamente a humanidade se espelhava nos deuses gregos, por exemplo. Hércules, o forte. Afrodite, a bela. Hoje, nos inspiramos em cinema, em músicos que admiramos, em novelas e por aí vai. Seja um detalhe na roupa, um corte de cabelo, um determinado óculos, um boné, uma alça de sutiã que fica à mostra. Até mesmo frases e jargões, incorporamos... temporariamente ou não. No geral vamos nos atualizando com referências que nos ajudam a compor os nossos personagens, com um tantinho, ou muito, de um e/ou de outro para estabelecer conexão com os outros.

Recuo e me encosto na cadeira, satisfeito com o desabafo. A psicóloga se inclina para frente para refazer a distância de antes e me manter ainda naquela arena. Ela quer mais e traduz isso em palavras.

  – Você quer provocar toda essa linha de raciocínio apenas por usar uma bandana, manter o cabelo grande e um cavanhaque?

  Agora que ela colocou de tal forma, parece absurdo, de fato. Mas, como estou aqui para me abrir, falo:

  – O fato de me associarem ao personagem famoso é indício significativo de que acham que eu acho que sou ele. E se dez por cento se esforçasse um tantinho para imaginar o motivo disso, talvez um por cento chegasse a essa minha conclusão que, para mim é tão óbvia que nem exige tanto esforço assim. E seria um número considerável de gente, esse um por cento.

– Por que gostaria de provocá-los assim? – Ela pergunta. A voz tão medida que chega a ser carinhosa. 

– Não é com a intenção de criticá-los. Só quero ser uma lembrança de que todos somos cópias. Em constante atualização. Parecem esquecer que personalidade deriva de persona que significa máscara. E somos, sim, cópias do que vemos. Cópias desde o princípio. Nossas células são cópias de nossos pais, graças ao nosso DNA. Não bastasse essa predisposição física, nossa psiquê usa os mesmos pais como primeiras referências. Mais tarde vamos agregando outras que nos agradam. Mas, no geral, nos apropriamos de aspectos que já existem. Não há originais. No fim das contas, todos somos versões pirata. Pegamos o que nos interessa e usamos.

Agora sim, estou satisfeito com minha conclusão e me afundo mais na cadeira. Quero ver se a mulher vai sentar na pontinha da cadeira dela pra tentar manter essa conversa nessa intensidade. Ela recua, no entanto.

– Agora está me dizendo, então, que este seu visual, no seu cotidiano, tem esse propósito?

A pergunta parece remeter ao fato de eu já ter explicado meu visual antes, mas no momento não me recordo exatamente. Provavelmente já falei muito antes e não na sessão anterior, e provavelmente a resposta foi outra. O que de certa forma me faz reconsiderar as recapitulações dela no início das sessões. Talvez valha a pena escutá-la. Acho que minha resposta foi outra, mas também foi verdade. É que a verdade tem muitas camadas. Devo ter falado que a razão é me agradar, então é bom mencionar isso novamente, de forma estratégica, e digo:

– Certamente que tem tal propósito, mesmo que não seja aproveitado como devia. Mas me agrada, esteticamente, vale mencionar. Como eu disse: escolhemos dentro do que nos agrada. O problema é que a maioria se esquece disso. Talvez porque a maioria escolhe dentro de um padrão que a maioria acha normal e ninguém se orgulha disso, pelo que vejo, ou não se incomodariam tanto com quem difere dessa maioria. A diferença parece ferir alguns. Mas são eles que aceitaram os próprios papéis e se esqueceram que há uma alma por trás do papel escolhido, aliás. Acreditam que são o que fazem de conta ser. Acreditar que é um policial, advogado, lixeiro, ou o que estiver representando, de verdade, pode ser mais perigoso do que acreditar que é um pirata de mentira. Porque o pirata de mentira sabe que é mais que isso. Que é uma consciência vivenciando aventuras em busca de aprendizados. Tesouros. A maioria está enterrada. É necessário esforço. É necessário lembrar que há profundidade além da superfície. É necessário se lançar numa busca. Uma busca por si mesmo. Meu visual é só um ponto de partida. Mas, não, não espero que filosofem assim apenas por terem olhado para meu visual. Por isso escrevo. Para facilitar o processo, da forma mais divertida que posso.

A psicóloga faz algumas anotações e me pergunta:

– Se eu te perguntasse, agora, quem é você, o que me diria?

– Eu diria que sou quem eu quero ser e quero ser um ponto de partida no mapa que todos já possuem nas próprias mãos. Linhas traçadas que podem levar à essência de si mesmos. Não sou o X no mapa, porém. Longe disso. No fim das contas, eu sou o que eu sou, apenas. Na verdade, eu não sou ninguém e sou todos. Eu sou uma vontade.  E meu nome representa isso muito bem. Will i am. Sou quem eu quero ser e, acima disso, quem quer ser.

– E você espera compreensão?

– Não muita. Refletir profundamente sobre algo, num mundo de superficialidades, não é para qualquer um e sim, o mundo está cheio deles.

– E não se importa com o que os outros pensam sobre você?

– Nesse aspecto, sim, sou parecido com o personagem Ônix Pedra- Negra.

– E isso é um sim ou não?

– Ah! E por que responder apenas sim ou não se posso exemplificar de forma muito mais interessante?

Estico um sorriso na cara e aguardo que ela peça.

– A resposta é uma narrativa – ela deduz. – Tem alguma que responda minha pergunta?

– De certa forma... – falo, me desencostando na minha cadeira, e inicio a narrativa.

Lúdio

- Motim -

“Antes a incerteza do fim uma vida curta, mas boa, do que a certeza de uma vida longa e ruim.”, pensou o pirata Ônix, ao contemplar o brilho de uma joia cara. Era uma boa frase de efeito que ele certamente usaria num momento oportuno.

Era noite. O navio estava no porto e a maior parte dos marujos preparava a partida. Apenas três estavam com o capitão Ônix Pedra-Negra, ao redor de um amontoado de baús no convés do Camaleão. Alguns dos baús estavam abertos. Os marujos fuçavam as pratarias. Os olhares de dois deles eram de puro deslumbre. O terceiro estava visivelmente descontente.

  Os olhos de Pedra-Negra pareciam mirar uma moeda muito brilhante, mas seu foco já estava longe dali. Ele sabia que deviam partir o quanto antes. Já não agia sob a bandeira falsa do capitão Hawk. Seu plano de culpar outro capitão por seus crimes, a ponto de poder cometer novos com mais facilidade, quando as atenções estivessem focadas em Hawk, tinha durado o quanto foi possível. E o tal Hawk, pelo que Ônix tinha ouvido falar, havia descoberto a estratégia do concorrente e agora Pedra-Negra tinha que se preocupar com a lei e com a vingança do outro capitão.

  Piriri-Gangorra, um marujo magrinho, estava com os olhos esbugalhados mirados num bracelete dourado, a boca rindo de nervoso, quando falou:

  – Essa foi por pouco.

O marujo carrancudo, moreno e parrudo, chamado de Perrengue, falou com desprezo:

– Nunca nos arriscamos tanto.

Chulapa, o marujo muito alto e magro, de cara quadrada e ossuda, falou, escancarando a boca abaixo de um bigode fino:

– E nunca lucramos tanto.

– Ainda acho que o risco foi alto – Perrengue resmungou alto o suficiente para o capitão escutar.

Pedra-Negra finalmente piscou, voltando seu foco para o momento, e afirmou:

– Antes a incerteza do fim uma vida curta, mas boa, do que a certeza de uma vida longa e ruim.

Perrengue não recuou. Pelo contrário. Encarou Pedra-Negra e falou:

– Mas é o capitão quem menos se arrisca e quem mais lucra.

O silêncio foi mantido por alguns segundos. Piriri-Gangorra e Chulapa sequer se moviam. Apenas os olhos giraram bem devagar em direção ao capitão que apertou o nó da bandana negra sobre a cabeça, dedilhou o cavanhaque e finalmente perguntou ao descontente Perrengue: 

– Há quanto tempo foi aceito à bordo, marujo?

– Sete semanas. E nunca ouvi você dizer que eu era bem-vindo!

Ante a fúria do marujo, Ônix manteve o tom bem medido de voz:

– E qual codinome lhe dei?

– Sem perguntar minha opinião, determinou que eu seria chamado de Perrengue!

– O que parece bem apropriado agora. – Ônix inclinou a cabeça por um breve instante. – Está aqui há sete semanas e ainda não aprendeu que dividimos em partes iguais todo o tesouro conquistado?

– Não tudo. – Perrengue não cedia.

Os outros dois prenderam a respiração e continuaram imóveis. Perrengue estava do lado oposto ao do capitão. Os baús entre eles. Pedra-Negra não parecia disposto a gastar energia além do estritamente necessário e tentou ser claro:

– A parte que não é dividida...

– A maior parte – Perrengue fez questão de mencionar. 

Pedra-Negra reconsiderou sua paciência. Piriri e Chulapa recuaram um passo, muito lentamente. Mas o capitão apenas falou:

– A parte que não é dividida é investida em nossos equipamentos e no Camaleão, que é muito maior do que nós e sem o qual não navegamos.

– E você usa essa maior parte como e onde melhor entende – Perrengue rebateu. – Cada vez mais ouro.

– Que resulta em cada vez ainda mais ouro – Ônix abriu os braços provando estar certo. – Como pôde ouvir seu camarada Chulapa dizer. – E o marujo mencionado que tinha acabado de deslizar para trás, deslizou para frente na mesma velocidade lenta. E Pedra-Negra continuou: – Por isso ainda sou o capitão. Mas, não se acanhe. Faz parte deste meu papel, escutar quando um marujo quer falar.

Como se tivesse sido uma deixa, um marujo, chamado Passarinho-Azul, embarcou e foi em direção ao capitão e aos outros no convés, perto do mastro principal. Muitos outros marujos pararam os preparativos para zarpar e apreensivos aproximaram o suficiente para escutarem a notícia. E o recém chegado anunciou:

– Capitão, o Di-Boa não conseguiu!

A notícia aumentou o transtorno de Perrengue. Ônix, no entanto, pareceu não entender e disse:

– Claro que conseguiu. Sem a distração dele não estaríamos aqui. Deixei meu chapéu e sobretudo com ele, para atrair os soldados que estavam atrás de mim, liberando, assim, nossa rota de fuga.

– Isso ele conseguiu – Passarinho falou. – Mas... foi capturado.

– Temos de voltar! – Perrengue urrou. A tripulação ao redor pareceu concordar. Cordas foram largadas e espadas foram apanhadas.

Pedra-Negra não gostou daquilo e falou em alto e bom som:

– Não. Não temos.

A tripulação parou de se mexer. Perrengue acusou o capitão:

– Você acaba de dizer que o capitão tem o dever de escutar os marujos.

– Escutar sim. E escutei. Certamente foi levado em consideração, em minha tomada de decisão, mas, a decisão ainda é minha. Di-Boa conhecia o risco. Quando embarcam neste navio, a primeira coisa que recebem é o código. No código está claro que quem ficar para trás, será deixado para trás. Você deveria se lembrar, marujo, tão pouco tempo está entre nós.

– Dane-se o código! – Perrengue rugia. – Di-Boa é nosso camarada!

– É sim – Ônix concordou. – Ele é nosso camarada há mais tempo que de você, aliás. Mas o código deve ser mantido. Este é o papel do capitão. Tomar decisões difíceis provavelmente me faz parecer menos camarada, mas, consegui este navio com muito custo. Esperamos por Di-Boa o máximo de tempo possível. A qualquer momento podemos ser encontrados pelos soldados e seria o fim de nossos sonhos. Ofereço oportunidades neste navio, mas, não posso carregar todos nas costas.

– Mas você, pelo visto, espera o contrário, não é mesmo? – Perrengue vociferou. Ônix estreitou os olhos, avaliando a melhor maneira de lidar com aquela insubordinação, enquanto o marujo continuava: – Quer nos explorar até não sermos mais úteis. Dizem que você sequer lamentou a morte do...

Antes que pudesse terminar a frase, a lâmina de uma das espadas de Ônix já estava a poucos centímetros da garganta de Perrengue.

Irritado, Pedra-Negra falou:

– Você sequer o conheceu. Não tem o direito de mencionar o nome dele.

– Mas tenho o direito de desafiar o capitão para tomar o navio. Está no código e o código não pode ser contestado – Perrengue falou, sacando a sua espada e empurrando a lâmina do capitão para o lado.

Ônix concordou, sacudindo a cabeça. Enquanto sacava sua outra espada, porém, avisou:

– Assim como tem o direito de falar, tem o direito de me desafiar e mudar o curso do navio. Mas, se for derrotado, sabe que tenho direito de expulsá-lo, sem uma moeda sequer do último trabalho.  

– Assim como eu, se eu o vencer – Perrengue falou, pegando a espada de Piriri ao seu lado, para se igualar em armas ao capitão.

– Vai insistir nesta querela? – Ônix deu uma chance ao marujo.

– Estou com espadas em mãos, não estou?

– Não por muito tempo... – Ônix falou e voltou a sorrir, embora dessa vez houvesse um evidente tom sinistro em seu rosto.  

  Cada um deles alternou ataque e defesa como puderam. Perrengue tinha força extraordinária, superior à do oponente. Ônix não imaginava que o outro fosse tão forte, mas não se intimidava. Pedra-Negra tinha experiência e técnica superiores às do marujo. O capitão deixou isso claro e atacou com as duas lâminas ao mesmo tempo, de cima para baixo, para que o marujo se defendesse com ambas as lâminas que manuseava e repetiu o ataque duplo na altura dos braços de Perrengue que também se defendeu. O marujo queria mostrar que era uma muralha impenetrável. Pedra-Negra, não gostou daquilo e chutou o braço direito do oponente com tamanha precisão, que forçou Perrengue a ficar de costas para ele. E antes que o pé do capitão tocasse o solo, foi erguido em novo chute que atingiu as costas de Perrengue.

O marujo foi lançado para frente, em visível desequilíbrio. Mas não era verdade. Simulou esse desarranjo para girar muito veloz e surpreender Ônix que avançava em sua direção.  Perrengue girou e atacou usando a espada na mão esquerda. Pedra-Negra bloqueou segundos antes do braço direito de Perrengue atacar do outro lado. O capitão também bloqueou este ataque e foi a vez de Ônix mostrar que conseguia parar qualquer adversário.

Perrengue urrou de fúria, pois não conseguiria replicar o chute que o capitão usou para obrigá-lo a girar, por ser muito alto e preciso. Chutou a perna baixa do capitão que ergueu o pé para evitar ser atingido. O pé do marujo passou por baixo. Enquanto baixava tal pé, no entanto, Perrengue aplicou o segundo chute que veio atrás do primeiro, graças a um giro inusitado. E o coice atingiu o estômago do capitão que foi lançado longe em desequilíbrio real.

Perrengue não hesitou e atacou com as duas espadas ao mesmo tempo, na altura dos braços do capitão, pra provar que Ônix não poderia pará-lo para sempre. Pedra-Negra bloqueou o ataque duplo, ainda ajoelhado e, girando os pulsos, desenhou pequenos círculos no ar com as pontas dos punhos de suas espadas, que terminaram encaixados entre os punhos das espadas seguradas pelo marujo e suas mãos. Pedra-Negra não deu tempo a Perrengue de entender aquilo e recuou, puxando violentamente.         

O capitão recuou num instante e avançou no outro, e neste segundo o marujo já estava desarmado. As espadas tinham sido retiradas de sua mão pelo engenhoso movimento do capitão.  E Perrengue teria morrido se Ônix não tivesse parado as duas pontas das espadas em suas mãos a poucos centímetros do peito que arfava em fúria.

 – Aceito minha derrota – falou Perrengue, entre os dentes cerrados.

– Ótimo. – A cara séria de Ônix se desfez e ele sorriu, dizendo: ­– Agora podemos partir.

Confuso, o marujo derrotado quis saber:

– Não vai me expulsar?

– E por que eu faria isso? – O capitão parecia não entender.

– Porque eu o desafiei. Porque demonstrei meu descontentamento. Porque certamente o desafiarei novamente, quando achar que tenho uma chance de vencê-lo, e, pelo que vi, não é impossível.

Ainda dando a entender que não entendia, o capitão perguntou:

– E por que você faria isso? Ah! Sim. O código lhe dá esse direito. Mas, não antes de seis meses após o desafio que perdeu. Isso significa que precisa permanecer vivo e no navio por, pelo menos, tal tempo. Acatando minhas ordens. Fará de tudo para não ficar para trás, como o Di-Boa ficou, para ter sua revanche. Isso é bom pra mim; alguém com quem contar. Agora, vamos zarpar!

Chulapa, no entanto, assim como todos os outros, não se movia e foi ele quem teve coragem de murmurar:

– É o Di-Boa, capitão...

A expressão do capitão tornou-se séria novamente e ele quis saber:

– Mais alguém vai me desafiar? – Ninguém ousou, apesar das trocas de olhares. – Ótimo! Vamos zarpar. Antes, porém, tragam o meu chapéu e o meu sobretudo.

Foi a vez de Piriri-Gangorra se pronunciar:

– Você deixou com o Di-Boa, capitão...  

– De fato. – Ônix cutucou a cabeça, como se quisesse acordar a memória. – Bem lembrado, meu camarada, tinha me esquecido. Mas, no consta, pois minha memória é infalível, que no navio o capitão deve manter sua indumentária de capitão. Não posso partir sem meu chapéu e meu sobretudo. Vou ter de buscá-los, mesmo que venham com algum marujo perdido de recheio...

Murmúrios animados e aliviados percorreram o navio. O capitão sorria e bradou:

– Estão dispostos a me ajudar a invadir a prisão deste porto?

– Ieh! – O coro afirmativo foi ouvido. Só Perrengue ainda estava puto.

– Pois partamos imediatamente. Peguem suas espadas! – O capitão ordenou.

– Mas, capitão, você nunca age sem traçar um plano ­– Subaqueira comentou.

– Já o fiz um plano, vinte minutos atrás.

– Mas só soube que o Di-Boa não conseguiu... ahm... trazer seu sobretudo e chapéu... há dez minutos... – Janelinha observou. Perrengue sacudiu a cabeça, entendendo.

O capitão esclareceu aos que não tinham entendido ainda:

– Cabe a um capitão estar alguns passos adiante. Este é o meu papel. E devem confiar em mim. Tenho um plano. Deveras arriscado. Não vou mentir. Talvez eu morra. Mas, ainda assim, precisarei de alguém que se arrisque quase tanto quanto eu... algum voluntário?

– Eu, capitão...

A voz era rouca, mas potente. Pertencia a perrengue e Ônix foi até ele. Sorriu e disse:

– Seja bem-vindo!

Epílogo

- Ou seja -

Termino de narrar o episódio para a psicóloga e esclareço, mexendo em meu cavanhaque:

– Assim como o pirata Ônix, não espero muita compreensão. Mas respeito estaria de bom tamanho. Alguém não ter capacidade de entender, de deduzir, meus motivos, não me incomoda tanto quanto me incomoda que não pensem o mais simples disso tudo que é eu ter meus motivos para o meu estilo de vida que não ameaça ninguém. Gostaria que as pessoas se sentissem menos ameaçadas. Lembrá-las que estamos todos interpretando algum papel não ameaça o papel, pelo contrário, na minha opinião. Ajuda a reduzir a tensão. Cada escolha na vida é séria, mas, lembrar que existe algo mais, uma parte maior de nós, reduz as tristezas e não diminuí as alegrias que são ampliadas pela leveza da compreensão disso, aliás.

– Você quer mudar o mundo? – A pergunta me faz piscar repetidas vezes e rir. Não gasto energia, porém, pra tentar repassar a conversa e averiguar se houve brechas para chegarmos a este ponto. Apenas respondo:

– De certa forma. E o mundo só vai mudar para algo mais interessante se nós mudarmos para algo mais interessante e se todos continuarem a se enxergarem como oponentes, e se sentirem sempre ameaçados, isso não vai acontecer. Na minha humilde opinião, só se sente ameaçado por algo, quem não sabe quem realmente é. E aí está uma boa razão para esta minha cruzada pessoal. Tentar ajudar que as pessoas se conheçam melhor.

            – Acha que vai ter algum êxito? – A psicóloga pergunta.

– Não sei. Mas me incluo entre os que tento ajudar nesse autoconhecimento. Pelo menos um empenhado nisso eu tenho, no caso. Quanto aos outros... vai depender do quanto confiam em mim, no que diz respeito a confiarem que eu sei o que estou fazendo.

Ela entende. Eu me levanto, despeço e vou embora.

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