A prisão

(Uma aventura pirata completa em 1 capítulo!)

Prelúdio

- Diferenças -

Saber quando entrar em cena é tão importante quanto saber quando não entrar, porque há momentos nos quais estamos mais presentes quando não estamos.

Estou no consultório da minha psicóloga e antes que ela faça a recapitulação dela, pra retomar alguma linha de raciocínio, eu falo:

– Em nosso último encontro você me perguntou o que eu responderia se, naquele momento, me perguntasse quem eu era. E respondi. A resposta para essa pergunta, no entanto, é uma que realmente muda a todo momento. Estamos em constante mudança, e a constatação disso, aliás, disso, faz parte do autoconhecimento que é meu objetivo constante. Reavaliei bastante as minhas convicções depois de ter saído daqui na última vez.

– Ótimo, porque isso é tão importante quanto vir aqui.

– Concordo. E daquela vez falei, também, sobre respeito e acredito ter ficado sintonizado nessa frequência porque escrevi uma cena sobre um marujo de Ônix Pedra-Negra que não se parece nada com o capitão. Discordam tanto sobre tantos aspectos que me admirei do fato de conseguir enxergá-los como amigos. Mas, por fim, consegui entender que suas diferenças que fortaleciam tal amizade, em verdade.

– Fale mais sobre isso.

Seguro o riso ante a frase mais clichê da psicologia e respondo:

– As diferenças de suas crenças faziam com que, constantemente, reavaliassem suas convicções.

– Isso mudou sua opinião sobre as pessoas que não enxergam a mundo como você enxerga?

– Significativamente. E, por gratidão, acho, escrevi um capítulo focado em tal marujo, chamado Di-Boa, que enxergava o lado bom das pessoas, nas mais variadas situações graças à sua fé. Algo que o pirata Ônix não era capaz de fazer facilmente.

  – Eu gostaria de ouvir sobre isso.  

  Eu nem respondo. Me acomodo e inicio minha narrativa.

Lúdio

- A prisão –

Ser forte, de verdade, é enxergar o melhor dentro do pior, na pior situação.

Di-boa estava acorrentado e esticado numa cela iluminada por duas lamparinas pequenas. Um carrasco muito musculoso estava visivelmente cansado do trabalho feito até ali, em vão. O marujo ferido sorria para ele entre o cabelo claro que caía desgrenhado sobre seu rosto suado. Estava sem camisa feito o carrasco, mas não era tão musculoso quanto o homem que trabalhava para a lei. Mas Di-Boa era bastante robusto.

O carrasco estava prestes a retomar o trabalho. Foi interrompido, no entanto, pela chegada do general e um soldado que trazia um magricelo homem de cabeleira branca e barbas fartas que foi pendurado em correntes do lado oposto a Di-Boa.

            A um sinal do superior, o soldado e o carrasco deixaram o General e os prisioneiros. O recém chegado perguntou ao marujo que, apesar de bastante ferido, mantinha um sorriso no rosto:

– Qual seu nome?

– Acredita que nunca tive um nome certo? Atualmente meus amigos me chamam de Di-boa. 

– Mas não somos seus amigos – o General avisou.

– Como não? – Di-boa soluçou um riso. – Me hospedaram aqui sem cobrar nada por isso.

– Você está preso aqui e não vai embora.

– Ó, que bonito. – O marujo atenuou o riso. – Gostam tanto de mim que não querem que eu me vá! Muito obrigado pelo carinho.

– Você pode brincar, mas, sabemos que já foi torturado o suficiente para nos dizer onde encontrar o pirata Ônix Pedra-Negra. – A voz do general era inflexível. – Aquele que tem um crânio alado como bandeira e que destruiu a fortaleza do velho Agures...

Di-Boa suspirou fundo e falou:

– Me sinto importante em ter a honra da sua visita, general. Sobre Ônix Pedra-Negra, não posso contar onde ele pode estar, porque eu não sei. O código diz que após a prisão de um marujo, a tripulação abandona todos os locais que tinham como esconderijos. Mesmo assim, como não sou um mentiroso, prefiro não dizer nada mais sobre isso. E nada é o que eu diria; fosse como fosse, pra ser bem honesto.

– Um ladrão honesto... – Foi o único momento que o general quase esticou um riso na cara, enquanto pegava dois itens ao lado. – Sabemos que você fazia parte da tripulação dele. Ele te entregou este chapéu e sobretudo para que fôssemos atrás de você, enquanto ele fugia com o resto dos marujos.

O general jogou os itens mencionados num dos cantos da sala, com desprezo por terem sido enganados. Di-boa olhou para eles e lamentou. Não pelo motivo que o general tentava apontar e sim por entender que não veria mais os amigos.

– Ônix te usou. Te deixou para trás – o general sussurrou como se pudesse seduzir o prisioneiro. – Posso te libertar se me der alguma pista que leve à prisão dele. Um nome de alguém importante para ele... se é que isso existe. Sabe que estou falando a verdade, porque acreditando que você era ele, deixamos todos os outros escaparem.  

– Aprecio sua visita, mas, sobre isso nada tenho a dizer.

  – Então me diga o que achou das chicotadas de ontem...

– Chicotadas?! Ah! Teve um amável senhor que foi colocado aqui para espantar as moscas que poderiam pousar em mim. Muita gentileza.  

– E a visita do Quebra-Ossos? Vai me dizer que não foi espancado durante todo o dia?

– Espancado? Não. Teve um massagista gente fina...

– E durante a madrugada? Não foi torturado com óleo quente?

– O banho delícia de relaxante que me deram? Me esquentou durante a noite fria e tirou umas cracas que estavam fazendo aniversário. A galera aqui faz o serviço completo...

O general perdeu a paciência e falou num tom mais alto:

– Ah! Fazemos sim. E vamos te colocar para dormir, para sempre, se não me contar algo que me leve ao pirata Ônix.

– Para sempre, você quer dizer todas as noites?

– De uma vez por todas.

– Entendi. Di-Boa balançou a cabeça alguns milímetros, pois tudo doía. – Querem me proteger do mundo cruel, né? Porque viver é muito perigoso. Tem muita gente cruel, né? Manda ver.

– É o que farei, a menos que nosso último recurso funcione. – O general finalmente sorriu.

– Você é perseverante, general, e isso é admirável. Sei que está fazendo seu trabalho, mas não vou poder colaborar. Digo isso pra evitar frustrações.

– Você pode não se importar com o que fazemos com você, mas, veja só... tenho aqui um velhinho que impediu que uma criança fosse morta por furto e, se não me disser o que quero ouvir, mataremos ele, lentamente, em sua frente. Se me disser o que quer saber, porém, o libertamos junto com você.

– Então é isso? – Di-Boa ficou sério.

– É como você disser que vai ser – o general afirmou.

– Bom, nesta circunstância, acredito que Ônix me desculparia em dizer exatamente onde você pode encontrá-lo.

– Ótimo – o general animou-se. – Onde ele está?

– Atrás de você.

O general se virou e o tal velhinho não estava mais pendurado e já não parecia um velhinho. Uma cabeleira e barba brancas estavam no chão e diante dele havia um homem com roupas rasgadas, mas com uma bandana negra e um sorriso emoldurado por um cavanhaque. As mãos seguravam um grilhão aberto.

O general sacou a espada e atacou o alto da cabeça do pirata que usou a corrente para bloquear o ataque, num primeiro instante, e para laçar a lâmina, num segundo; e lançar a arma para o canto da cela. O general merecia uma surra e Ônix estava disposto a fazer justiça.

O general, no entanto, era versado em um bom tanto das artes de combate do passado esquecido do velho tempo. O homem da lei se defendeu de um soco alto do pirata, usando o bracelete da armadura, assim como bloqueou alguns chutes alternados de Ônix. Os golpes do pirata eram intensos e se ficasse apenas se defendendo, o general seria atingido em algum momento, por isso ousou contra-atacar e enfiou um soco direto na fuça do pirata. O braço do general, porém, foi agarrado e torcido para um lado que a natureza não permitia. Isso tirou a atenção e postura dele. O pirata chutou atrás a perna do general e o forçou a se ajoelhar, ante de receber um violento chute na cara que quase o fez perder a consciência.

No chão, o general escutou o pirata dizer:

– Muitos dos nossos caíram em suas mãos, general Mansur, e não tiveram clemência. Você também não terá.  

O homem da lei fez menção de se levantar para uma segunda rodada de combate, mas Ônix enfiou um coice no estômago do oponente que caiu aos pés de Di-Boa, imobilizado pela dor. Quando conseguiu se mover novamente, Pedra-Negra já havia recuperado a espada e vinha em sua direção.

Mansur agarrou uma perna do marujo acorrentado e o desespero se mostrou visível em sua cara. Tremendo, ele balbuciou, olhando Di-Boa de baixo para cima:

– Somos amigos, lembra? Hospedamos você aqui. Massagem... espantar moscas... banho quente... peça para ele me poupar... só estou fazendo meu trabalho... 

– Ô, meu querido, pode ter certeza que eu o impediria, mas, estou de mão atadas em relação a isso, como pode ver – o marujo falou, balançando os braços nas correntes. – Se serve de consolo, não importa o que ele faça com você e o quanto isso me deixe incomodado. No fim das contas, sempre acabo entendendo que faz parte da vida e eu vou ficar Di-Boa...

O General, em verdade, estava apenas interpretando e ganhando tempo. Sabia que Ônix cederia tal tempo para implorar perdão. Pedra-Negra não ia matar o general, mas queria assustá-lo. O deixaria preso e humilhado. Mansur, porém, conseguiu tempo de retirar uma pistola que estava escondida e a apontou para o pirata.

Pedra-Negra avaliou as chances, um tanto surpreso. Era uma pistola de dois tiros. Fez um movimento para um lado e um tiro foi disparado. Se moveu para outro lado e outro tiro foi disparado. O som ainda ecoava quando a lâmina foi retirada do peito do General morto. Ônix tentou evitar o segundo disparo de ser feito, mas não conseguiu.

Pedra-Negra recuou um passo e sentiu dor na perna esquerda. A calça clara ficava cada vez mais vermelha. Tinha sido atingido. Rasgou um pedaço do trapo que era a calça e amarrou firme sobre a ferida. Só então falou ao amigo:

– Por essa eu não esperava.

– E eu não esperava por você.

– E quem ia te salvar se eu não viesse? É melhor nem responder, porque sua fé me irrita.

– É minha fé em Dáverus que me mantém enxergando além do que há de ruim neste mundo.

– E isso te impede de lutar contra tudo o que está errado, com todas as suas forças, ou você acha que merecia tudo o que lhe fizeram passar aqui? – Ônix estava bravo. Vasculhava entre a roupa do general e só parou quando encontrou as chaves que poderiam libertar Di-Boa. 

– Não concordo com o que aconteceu aqui. Mas, cada um tinha suas razões. O carrasco tinha um irmão, chamado Navalha, e, por isso, queria tanto encontrar você. Ele quer se vingar com as próprias mãos pelo que você fez ao irmão dele. Chegou a dizer que enforcamento é uma forma muito rápida de morrer. Você merece algo muito pior, ele disse. – Ônix escutava enquanto libertava o amigo e, neste aspecto, sim, fazia sentido. E Di-Boa continuou: – Entendo as razões dele. Mas, o que me impediu de lutar contra o que fizeram aqui, não foi isso e sim as correntes. E quando algo está além das nossas capacidades, só os deuses podem nos ajudar.

Ônix fechou a cara e falou:

– Mas eu vim te salvar. Não foi um deus.

– Talvez ele tenha tocado seu coração. Te guiado até aqui.

– Se for, ele não fez um bom trabalho. Você não consegue se manter em pé e agora eu também não. O carrasco deve ter escutado o tiro e logo estará aqui. Derrubá-lo, feridos como estamos, não vai ser fácil. 

– Se está além de nossas capacidades, podemos orar.

Ônix sequer cogitou tal possibilidade. Vasculhava sua mente buscando uma alternativa e falou:

  • Não sou capaz de acreditar que não sou capaz de fazer algo por mim mesmo.

Não era uma solução e Di-Boa continuou:

– Há certas situações sobre as quais não temos controle e isso nos traz sofrimento, mas, este mundo é um lugar de provações. Enxergar além de todo o sofrimento, abre portas inimagináveis.

– Ótimo. Então vai lá. Abra uma porta que nos permita evitar dezenas de soldados com a porra da sua fé num deus que nem deve saber que existimos e que, se as profecias estiverem certas, renasceu como o príncipe Aleck, que, neste momento, deve estar cercado de mulheres nuas, frutas e vinho. E, pensando assim... se pudesse, eu trocava de lugar com ele.

Di-Boa se encostou na parede e fez uma careta antes de voltar a sorrir e falar:

– Até o deus despertar nele, ele pode fazer o que quiser. Mas, seu poder vai além do que ele sabe que está fazendo. Num estado profundo, que talvez nem ele perceba, ele sabe de todos que acreditam nele e sua energia nos ampara.

– Puta merda! Deve ser muito fácil ser um deus – Ônix estava muito irritado. – Se algo dá certo, foi o deus quem ajudou. Se algo deu errado, foi uma provação pela qual os infelizes deveriam passar. Pois eu digo uma coisa: Se sairmos daqui, não terá sido pela graça de Dáverus. E, se não sairmos, terá sido apenas um fim, dos muitos que já podíamos ter tido, e dos muitos que ainda podemos ter.

Di-Boa bufou um riso ao sentir a mão do capitão em seu ombro e falou ao amigo:

– Pra ser honesto, capitão. Eu senti que ia morrer aqui. A maldade que vi e sofri aqui, minaram minhas forças, além do que quero admitir. Além do meu corpo. Feriu minha alma, essa que é a verdade. Meu esforço não era para não dizer onde você estava e sim de manter minha fé na fé dos outros. De que um dia poderiam vir a compreender. Me esforcei para manter uma única prece em minha mente e ela se realizou.

Ônix abrandou a raiva e falou:

– Não dê crédito a sua prece, meu tolo amigo, ainda não te salvei de verdade.

– Minha prece não era por salvação. Tudo o que eu não queria, era acabar como comecei nesta vida...  sozinho... e agora você está aqui.

– Pois tenho muito a fazer ainda – Ônix afirmou. Não estou disposto a morrer agora.

– E os nossos camaradas?

Ônix fez uma careta e revelou:

– Falei para eles liberaram nossa saída na parte superior. Aqui embaixo eu lidaria com o general e o carrasco. Não vão perceber que algo saiu errado em tempo.

– Então faça uma prece sincera a Dáverus para sair daqui... se ele te ouvir, ambos ficaremos satisfeitos. Eu, por você ter aberto seu coração para Dáverus, e você por continuar vivo. Se você for convertido, minha fé na fé das pessoas seria reforçada, juntamente com minha vontade de viver, no momento bastante quebrada. Porque se houver esperanças para você, se você aceitar Dáverus em seu coração, não duvidarei que todos possam ser convertidos. Talvez assim, no fim, eu terei salvado você e não contrário.

– Então nossas perspectivas não são boas, pois, antes de aceitar Dáverus, eu morro – Ônix falou, sorrindo.

– Talvez tenha de ser assim – Di-Boa falou. – Se isso acontecer.  Obrigado por estar comigo.

– Não vamos morrer aqui – o capitão afirmou, embora escutasse sons de passos ecoando pelos corredores. – Não aceito isso.

– E o que você pode fazer?

– Você vai ter de renegar Dáverus.

– Que maluquice é essa?

– A única que pode nos tirar daqui. Precisa ver o mundo como eu vejo.

– Acho que você está perdendo mais sangue do que eu, capitão.

– Se eu garantisse que funcionaria, você aceitaria?

– Eu lhe garanti que se acreditasse em Dáverus, no fundo de seu coração, ele nos tiraria daqui, porque você quer isso mais do que eu neste momento, que estou quase no fim das minhas forças. Mas você negou aceitar Dáverus, por que eu deveria aceitar negá-lo?

– Por que será apenas mentira – Ônix falou. – Na sua sugestão, a mentira não funcionaria e eu não poderia aceitar seu deus de verdade, mas você pode negá-lo de mentira.

Di-Boa conhecia aquele olhar. A mente veloz do capitão tinha traçado um plano e ele precisava explicar o mais breve possível. Por isso, Di-boa não contestou o argumento de Ônix.

– Se você for capaz de olhar para o mundo da forma que eu olho, por pouco tempo, quem sabe há esperança de um dia eu olhar para ele como você olha, mesmo que um pouco.

– Sabe que eu não sei mentir. – Di-Boa não estava relutando. Só não queria estragar o plano.

– Então não vai mentir. O Carrasco chegará aqui em breve. Eu estarei pendurado, onde ele viu que eu estaria. Como um velho acabado, sem forças. Você estará livre, no fundo da cela. Imponente. Sob o cadáver do general. Você dirá ao carrasco que eles estavam procurando pelo pirata Ônix Pedra-Negra, com tanta ânsia, que não puderam enxergá-lo quando ele já estava aqui, nesta cela.

Di-Boa acompanhava o raciocínio. Os passos ficando mais altos enquanto o capitão vestia a peruca e barba falsa, depois de jogar para o marujo o sobretudo e chapéu de capitão, com o qual chegou ali, além da espada do general.

E Ônix continuou explicando:

– Você fica calado. O soldado vai perguntar se você quer que ele credite que você é o famoso Pedra-Negra. Você não responderá, para não mentir. Apenas perguntará, para induzir: Quem mais seria capaz de se libertar, quando assim desejasse, e matar um general com tanta perícia em combate? E continuará: Quer ter sua vingança carrasco? Se entrar nesta sala novamente, estará novamente mais perto do pirata Ônix do que estará se chamar outros soldados. Ou prefere perder sua chance? Pois, como você mesmo disse, enforcamento é uma forma muito rápida de morrer. Aquele que fez o que fez com seu irmão, merece algo muito pior... Você vai, então, se desfazer da espada. Vai dizer que não precisa dela para derrubá-lo... alguma mentira até agora?

– Não, pois não serei capaz de derrubá-lo.

– Exato. Ele passará por mim e eu terei chance de atingi-lo na nuca com esta pistola e derrubá-lo sem precisar lutar com esta perna ferrada. Eu visto a roupa do general, você veste a roupa do carrasco, e saímos daqui felizes para sempre.

– E se eu precisar de mais, para convencer o carrasco de que sou você?

– Aí é que está – Ônix sussurrou. – Você me conhece bem e terá de defender meu ponto de vista. Concentre-se e dê o seu melhor... ou melhor... o meu melhor...

Não houve mais tempo para mais instruções. Os passos estavam próximos demais. Era a melhor chance deles. Era isso, ou ir para o corredor enfrentar o carrasco de frente. Pouco provável. Menos provável que o plano.

O carrasco chegou e Di-Boa seguiu o plano, falando mais ou menos o que o capitão tinha dito para ele dizer. O imenso homem encapuzado hesitou. E Di-Boa improvisou.

– Então o carrasco tem medo de entrar nesta cela, agora que sabe que o pirata Pedra-Negra, está aqui? Porque saiba que Ônix não tem medo. Ele está aqui, te esperando. Quieto e sereno, certo de que você cairá antes que perceba, assim como o reinado dos governantes inescrupulosos, quando o povo seguir o maior pirata de todos os tempos, que não é nada modesto, e que arrumará tempo para seduzir algumas garotas entre uma coisa e outra e, já que sua vingança é pelo seu irmão, e estamos falando de família, você não teria uma irmã precisando de consolo pela recente perda?...

Nada mais precisou dizer. O carrasco urrou e avançou sobre Di-Boa e Ônix avançou sobre o carrasco.

*

Já fora da prisão, enquanto esperavam pelos outros, no ponto combinado, Di-Boa falou ao capitão:

– Você deixou de ser o pirata Ônix Pedra-Negra esta noite.

– A imagem de um velho fraco tem lá seu valor. Quanto mais tolo, menos capaz de enxergar além das aparências alguém é e maior é a surpresa ante a constatação da tolice.

– Concordo. A força de Ônix estava lá, sob a imagem de alguém fraco. Assim como Dáverus pode estar escondido no príncipe Aleck de Valdrick. Isso te surpreenderia, não é?

– Está me chamando de tolo?

– Está se vendo como tolo agora, capitão?

– Você devia estar me agradecendo. Eu nos tirei daquela prisão. Não vem com essa de que Dáverus guiou meus passos até lá. Eu levei um tiro na perna por você, seu ingrato miserável... não o tal deus.

Di-Boa riu e falou:

– Vamos considerar um trabalho de equipe.

– Eu e Dáverus nunca vamos trabalhar juntos. Esquece.

– Eu me referia a você eu, na verdade. Mesmo que você não considere a força da minha fé em Dáverus, precisa me considerar. Eu suportei a tortura e fiz minha parte direitinho. Viu as veias do carrasco pulsando de ódio nos braços? Os músculos latejando e os olhos esbugalhados no fundo dos buracos da máscara, antes de ele entrar novamente na cela, para você derrubá-lo?

– Vi nada disso não, mas, eu estava de cabeça baixa, pendurado feito o velho. Mas sei que você não é dado a mentiras. Por isso não podia deixar você morrer. Um dia vai ver que eu estava certo sobre esta besteira de Aleck ser a reencarnação de Dáverus e não poderá mentir pra mim e terá de admitir que eu estava certo. Vai ser um bom dia, este.

– E o que tem de bom, num mundo sem esperança, meu amigo?

Ônix não respondeu. Foram encontrados e auxiliados pelos camaradas. A vitória da fuga, porém, tinha um sabor estranho para Ônix. Além de uma puta dor na perna. Ela sempre achou que estava certo sobre o príncipe não ser a reencarnação do deus lendário, mas pela primeira vez considerou que talvez estivesse errado em querer tirar a fé dos outros em tal deus. Di-Boa só se manteve firme por causa disso. Era algo no qual o pirata pensaria, com certeza. Mas não admitiria isso ninguém, porque tinha uma imagem a zelar.        

*

Epílogo

O infinito como limite

– Interessante – a psicóloga fala.

Gosto do fato de ela ter falado isso e digo:

– Tal episódio me fez pensar sobre o valor das amizades. Uma mesma situação pode ter razões muito diferentes para diferentes observadores. E, no fim das contas, se prender à convicções, cegamente, é a verdadeira prisão. A chave pode estar além do que acreditamos naquele momento e amigos nos ajudam a ir um pouco mais além de nós mesmos. Às vezes nos irritam ou os irritamos por isso, mas, é parte da diversão.

– Você sempre tenta rever suas convicções? – a psicóloga pergunta.

– Sempre. De tempos em tempos. Principalmente quando sou lembrado disso. – E como meu tempo com ela está terminando por hoje; concluo: – Com minhas vindas aqui, tenho tentando um tanto mais. Tem valido a pena porque nossas convicções nos definem. E isso é perigoso. A palavra definir, fala por si mesma. Ela põe um fim. Nos limita. Precisamos sempre refletir sobre o que está além de nossa compreensão, na tentativa de abrangê-la, porque a compreensão amplia nossos limites e a definição de nós, pode um dia vir a ser o infinito.

Prelúdio

- Diferenças -

Saber quando entrar em cena é tão importante quanto saber quando não entrar, porque há momentos nos quais estamos mais presentes quando não estamos.

Estou no consultório da minha psicóloga e antes que ela faça a recapitulação dela, pra retomar alguma linha de raciocínio, eu falo:

– Em nosso último encontro você me perguntou o que eu responderia se, naquele momento, me perguntasse quem eu era. E respondi. A resposta para essa pergunta, no entanto, é uma que realmente muda a todo momento. Estamos em constante mudança, e a constatação disso, aliás, disso, faz parte do autoconhecimento que é meu objetivo constante. Reavaliei bastante as minhas convicções depois de ter saído daqui na última vez.

– Ótimo, porque isso é tão importante quanto vir aqui.

– Concordo. E daquela vez falei, também, sobre respeito e acredito ter ficado sintonizado nessa frequência porque escrevi uma cena sobre um marujo de Ônix Pedra-Negra que não se parece nada com o capitão. Discordam tanto sobre tantos aspectos que me admirei do fato de conseguir enxergá-los como amigos. Mas, por fim, consegui entender que suas diferenças que fortaleciam tal amizade, em verdade.

– Fale mais sobre isso.

Seguro o riso ante a frase mais clichê da psicologia e respondo:

– As diferenças de suas crenças faziam com que, constantemente, reavaliassem suas convicções.

– Isso mudou sua opinião sobre as pessoas que não enxergam a mundo como você enxerga?

– Significativamente. E, por gratidão, acho, escrevi um capítulo focado em tal marujo, chamado Di-Boa, que enxergava o lado bom das pessoas, nas mais variadas situações graças à sua fé. Algo que o pirata Ônix não era capaz de fazer facilmente.

  – Eu gostaria de ouvir sobre isso.  

  Eu nem respondo. Me acomodo e inicio minha narrativa.

Lúdio

- A prisão –

Ser forte, de verdade, é enxergar o melhor dentro do pior, na pior situação.

Di-boa estava acorrentado e esticado numa cela iluminada por duas lamparinas pequenas. Um carrasco muito musculoso estava visivelmente cansado do trabalho feito até ali, em vão. O marujo ferido sorria para ele entre o cabelo claro que caía desgrenhado sobre seu rosto suado. Estava sem camisa feito o carrasco, mas não era tão musculoso quanto o homem que trabalhava para a lei. Di-Boa era rechonchudo.

O carrasco estava prestes a retomar o trabalho. Foi interrompido, no entanto, pela chegada do general e um soldado que trazia um magricelo homem de cabeleira branca e barbas fartas que foi pendurado em correntes do lado oposto a Di-Boa.

            A um sinal do superior, o soldado e o carrasco deixaram o General e os prisioneiros. O recém chegado perguntou ao marujo que, apesar de bastante ferido, mantinha um sorriso no rosto:

– Qual seu nome?

– Acredita que nunca tive um nome certo? Atualmente meus amigos me chamam de Di-boa. 

– Mas não somos seus amigos – o General avisou.

– Como não? – Di-boa soluçou um riso. – Me hospedaram aqui sem cobrar nada por isso.

– Você está preso aqui e não vai embora.

– Ó, que bonito. – O marujo atenuou o riso. – Gostam tanto de mim que não querem que eu me vá! Muito obrigado pelo carinho.

– Você pode brincar, mas, sabemos que já foi torturado o suficiente para nos dizer onde encontrar o pirata Ônix Pedra-Negra. – A voz do general era inflexível. – Aquele que tem um crânio alado como bandeira e que destruiu a fortaleza do velho Agures...

Di-Boa suspirou fundo e falou:

– Me sinto importante em ter a honra da sua visita, general. Sobre Ônix Pedra-Negra, não posso contar onde ele pode estar, porque eu não sei. O código diz que após a prisão de um marujo, a tripulação abandona todos os locais que tinham como esconderijos. Mesmo assim, como não sou um mentiroso, prefiro não dizer nada mais sobre isso. E nada é o que eu diria; fosse como fosse, pra ser bem honesto.

– Um ladrão honesto... – Foi o único momento que o general quase esticou um riso na cara, enquanto pegava dois itens ao lado. – Sabemos que você fazia parte da tripulação dele. Ele te entregou este chapéu e sobretudo para que fôssemos atrás de você, enquanto ele fugia com o resto dos marujos.

O general jogou os itens mencionados num dos cantos da sala, com desprezo por terem sido enganados. Di-boa olhou para eles e lamentou. Não pelo motivo que o general tentava apontar e sim por entender que não veria mais os amigos.

– Ônix te usou. Te deixou para trás – o general sussurrou como se pudesse seduzir o prisioneiro. – Posso te libertar se me der alguma pista que leve à prisão dele. Um nome de alguém importante para ele... se é que isso existe. Sabe que estou falando a verdade, porque acreditando que você era ele, deixamos todos os outros escaparem.  

– Aprecio sua visita, mas, sobre isso nada tenho a dizer.

  – Então me diga o que achou das chicotadas de ontem...

– Chicotadas?! Ah! Teve um amável senhor que foi colocado aqui para espantar as moscas que poderiam pousar em mim. Muita gentileza.  

– E a visita do Quebra-Ossos? Vai me dizer que não foi espancado durante todo o dia?

– Espancado? Não. Teve um massagista gente fina...

– E durante a madrugada? Não foi torturado com óleo quente?

– O banho delícia de relaxante que me deram? Me esquentou durante a noite fria e tirou umas cracas que estavam fazendo aniversário. A galera aqui faz o serviço completo...

O general perdeu a paciência e falou num tom mais alto:

– Ah! Fazemos sim. E vamos te colocar para dormir, para sempre, se não me contar algo que me leve ao pirata Ônix.

– Para sempre, você quer dizer todas as noites?

– De uma vez por todas.

– Entendi. Di-Boa balançou a cabeça alguns milímetros, pois tudo doía. – Querem me proteger do mundo cruel, né? Porque viver é muito perigoso. Tem muita gente cruel, né? Manda ver.

– É o que farei, a menos que nosso último recurso funcione. – O general finalmente sorriu.

– Você é perseverante, general, e isso é admirável. Sei que está fazendo seu trabalho, mas não vou poder colaborar. Digo isso pra evitar frustrações.

– Você pode não se importar com o que fazemos com você, mas, veja só... tenho aqui um velhinho que impediu que uma criança fosse morta por furto e, se não me disser o que quero ouvir, mataremos ele, lentamente, em sua frente. Se me disser o que quer saber, porém, o libertamos junto com você.

– Então é isso? – Di-Boa ficou sério.

– É como você disser que vai ser – o general afirmou.

– Bom, nesta circunstância, acredito que Ônix me desculparia em dizer exatamente onde você pode encontrá-lo.

– Ótimo – o general animou-se. – Onde ele está?

– Atrás de você.

O general se virou e o tal velhinho não estava mais pendurado e já não parecia um velhinho. Uma cabeleira e barba brancas estavam no chão e diante dele havia um homem com roupas rasgadas, mas com uma bandana negra e um sorriso emoldurado por um cavanhaque. As mãos seguravam um grilhão aberto.

O general sacou a espada e atacou o alto da cabeça do pirata que usou a corrente para bloquear o ataque, num primeiro instante, e para laçar a lâmina, num segundo; e lançar a arma para o canto da cela. O general merecia uma surra e Ônix estava disposto a fazer justiça.

O general, no entanto, era versado em um bom tanto das artes de combate do passado esquecido do velho tempo. O homem da lei se defendeu de um soco alto do pirata, usando o bracelete da armadura, assim como bloqueou alguns chutes alternados de Ônix. Os golpes do pirata eram intensos e se ficasse apenas se defendendo, o general seria atingido em algum momento, por isso ousou contra-atacar e enfiou um soco direto na fuça do pirata. O braço do general, porém, foi agarrado e torcido para um lado que a natureza não permitia. Isso tirou a atenção e postura dele. O pirata chutou atrás a perna do general e o forçou a se ajoelhar, ante de receber um violento chute na cara que quase o fez perder a consciência.

No chão, o general escutou o pirata dizer:

– Muitos dos nossos caíram em suas mãos, general Mansur, e não tiveram clemência. Você também não terá.  

O homem da lei fez menção de se levantar para uma segunda rodada de combate, mas Ônix enfiou um coice no estômago do oponente que caiu aos pés de Di-Boa, imobilizado pela dor. Quando conseguiu se mover novamente, Pedra-Negra já havia recuperado a espada e vinha em sua direção.

Mansur agarrou uma perna do marujo acorrentado e o desespero se mostrou visível em sua cara. Tremendo, ele balbuciou, olhando Di-Boa de baixo para cima:

– Somos amigos, lembra? Hospedamos você aqui. Massagem... espantar moscas... banho quente... peça para ele me poupar... só estou fazendo meu trabalho... 

– Ô, meu querido, pode ter certeza que eu o impediria, mas, estou de mão atadas em relação a isso, como pode ver – o marujo falou, balançando os braços nas correntes. – Se serve de consolo, não importa o que ele faça com você e o quanto isso me deixe incomodado. No fim das contas, sempre acabo entendendo que faz parte da vida e eu vou ficar Di-Boa...

O General, em verdade, estava apenas interpretando e ganhando tempo. Sabia que Ônix cederia tal tempo para implorar perdão. Pedra-Negra não ia matar o general, mas queria assustá-lo. O deixaria preso e humilhado. Mansur, porém, conseguiu tempo de retirar uma pistola que estava escondida e a apontou para o pirata.

Pedra-Negra avaliou as chances, um tanto surpreso. Era uma pistola de dois tiros. Fez um movimento para um lado e um tiro foi disparado. Se moveu para outro lado e outro tiro foi disparado. O som ainda ecoava quando a lâmina foi retirada do peito do General morto. Ônix tentou evitar o segundo disparo de ser feito, mas não conseguiu.

Pedra-Negra recuou um passo e sentiu dor na perna esquerda. A calça clara ficava cada vez mais vermelha. Tinha sido atingido. Rasgou um pedaço do trapo que era a calça e amarrou firme sobre a ferida. Só então falou ao amigo:

– Por essa eu não esperava.

– E eu não esperava por você.

– E quem ia te salvar se eu não viesse? É melhor nem responder, porque sua fé me irrita.

– É minha fé em Dáverus que me mantém enxergando além do que há de ruim neste mundo.

– E isso te impede de lutar contra tudo o que está errado, com todas as suas forças, ou você acha que merecia tudo o que lhe fizeram passar aqui? – Ônix estava bravo. Vasculhava entre a roupa do general e só parou quando encontrou as chaves que poderiam libertar Di-Boa. 

– Não concordo com o que aconteceu aqui. Mas, cada um tinha suas razões. O carrasco tinha um irmão, chamado Navalha, e, por isso, queria tanto encontrar você. Ele quer se vingar com as próprias mãos pelo que você fez ao irmão dele. Chegou a dizer que enforcamento é uma forma muito rápida de morrer. Você merece algo muito pior, ele disse. – Ônix escutava enquanto libertava o amigo e, neste aspecto, sim, fazia sentido. E Di-Boa continuou: – Entendo as razões dele. Mas, o que me impediu de lutar contra o que fizeram aqui, não foi isso e sim as correntes. E quando algo está além das nossas capacidades, só os deuses podem nos ajudar.

Ônix fechou a cara e falou:

– Mas eu vim te salvar. Não foi um deus.

– Talvez ele tenha tocado seu coração. Te guiado até aqui.

– Se for, ele não fez um bom trabalho. Você não consegue se manter em pé e agora eu também não. O carrasco deve ter escutado o tiro e logo estará aqui. Derrubá-lo, feridos como estamos, não vai ser fácil. 

– Se está além de nossas capacidades, podemos orar.

– Ônix sequer cogitou tal possibilidade. Vasculhava sua mente buscando uma alternativa e falou:

Não sou capaz de acreditar que não sou capaz de fazer algo por mim mesmo.

Não era uma solução e Di-Boa continuou:

– Há certas situações sobre as quais não temos controle e isso nos traz sofrimento, mas, este mundo é um lugar de provações. Enxergar além de todo o sofrimento, abre portas inimagináveis.

– Ótimo. Então vai lá. Abra uma porta que nos permita evitar dezenas de soldados com a porra da sua fé num deus que nem deve saber que existimos e que, se as profecias estiverem certas, renasceu como o príncipe Aleck, que, neste momento, deve estar cercado de mulheres nuas, frutas e vinho. E, pensando assim... se pudesse, eu trocava de lugar com ele.

Di-Boa se encostou na parede e fez uma careta antes de voltar a sorrir e falar:

– Até o deus despertar nele, ele pode fazer o que quiser. Mas, seu poder vai além do que ele sabe que está fazendo. Num estado profundo, que talvez nem ele perceba, ele sabe de todos que acreditam nele e sua energia nos ampara.

– Puta merda! Deve ser muito fácil ser um deus – Ônix estava muito irritado. – Se algo dá certo, foi o deus quem ajudou. Se algo deu errado, foi uma provação pela qual os infelizes deveriam passar. Pois eu digo uma coisa: Se sairmos daqui, não terá sido pela graça de Dáverus. E, se não sairmos, terá sido apenas um fim, dos muitos que já podíamos ter tido, e dos muitos que ainda podemos ter.

Di-Boa bufou um riso ao sentir a mão do capitão em seu ombro e falou ao amigo:

– Pra ser honesto, capitão. Eu senti que ia morrer aqui. A maldade que vi e sofri aqui, minaram minhas forças, além do que quero admitir. Além do meu corpo. Feriu minha alma, essa que é a verdade. Meu esforço não era para não dizer onde você estava e sim de manter minha fé na fé dos outros. De que um dia poderiam vir a compreender. Me esforcei para manter uma única prece em minha mente e ela se realizou.

Ônix abrandou a raiva e falou:

– Não dê crédito a sua prece, meu tolo amigo, ainda não te salvei de verdade.

– Minha prece não era por salvação. Tudo o que eu não queria, era acabar como comecei nesta vida...  sozinho... e agora você está aqui.

– Pois tenho muito a fazer ainda – Ônix afirmou. Não estou disposto a morrer agora.

– E os nossos camaradas?

Ônix fez uma careta e revelou:

– Falei para eles liberaram nossa saída na parte superior. Aqui embaixo eu lidaria com o general e o carrasco. Não vão perceber que algo saiu errado em tempo.

– Então faça uma prece sincera a Dáverus para sair daqui... se ele te ouvir, ambos ficaremos satisfeitos. Eu, por você ter aberto seu coração para Dáverus, e você por continuar vivo. Se você for convertido, minha fé na fé das pessoas seria reforçada, juntamente com minha vontade de viver, no momento bastante quebrada. Porque se houver esperanças para você, se você aceitar Dáverus em seu coração, não duvidarei que todos possam ser convertidos. Talvez assim, no fim, eu terei salvado você e não contrário.

– Então nossas perspectivas não são boas, pois, antes de aceitar Dáverus, eu morro – Ônix falou, sorrindo.

– Talvez tenha de ser assim – Di-Boa falou. – Se isso acontecer.  Obrigado por estar comigo.

– Não vamos morrer aqui – o capitão afirmou, embora escutasse sons de passos ecoando pelos corredores. – Não aceito isso.

– E o que você pode fazer?

– Você vai ter de renegar Dáverus.

– Que maluquice é essa?

– A única que pode nos tirar daqui. Precisa ver o mundo como eu vejo.

– Acho que você está perdendo mais sangue do que eu, capitão.

– Se eu garantisse que funcionaria, você aceitaria?

– Eu lhe garanti que se acreditasse em Dáverus, no fundo de seu coração, ele nos tiraria daqui, porque você quer isso mais do que eu neste momento, que estou quase no fim das minhas forças. Mas você negou aceitar Dáverus, por que eu deveria aceitar negá-lo?

– Por que será apenas mentira – Ônix falou. – Na sua sugestão, a mentira não funcionaria e eu não poderia aceitar seu deus de verdade, mas você pode negá-lo de mentira.

Di-Boa conhecia aquele olhar. A mente veloz do capitão tinha traçado um plano e ele precisava explicar o mais breve possível. Por isso, Di-boa não contestou o argumento de Ônix.

– Se você for capaz de olhar para o mundo da forma que eu olho, por pouco tempo, quem sabe há esperança de um dia eu olhar para ele como você olha, mesmo que um pouco.

– Sabe que eu não sei mentir. – Di-Boa não estava relutando. Só não queria estragar o plano.

– Então não vai mentir. O Carrasco chegará aqui em breve. Eu estarei pendurado, onde ele viu que eu estaria. Como um velho acabado, sem forças. Você estará livre, no fundo da cela. Imponente. Sob o cadáver do general. Você dirá ao carrasco que eles estavam procurando pelo pirata Ônix Pedra-Negra, com tanta ânsia, que não puderam enxergá-lo quando ele já estava aqui, nesta cela.

Di-Boa acompanhava o raciocínio. Os passos ficando mais altos enquanto o capitão vestia a peruca e barba falsa, depois de jogar para o marujo o sobretudo e chapéu de capitão, com o qual chegou ali, além da espada do general.

E Ônix continuou explicando:

– Você fica calado. O soldado vai perguntar se você quer que ele credite que você é o famoso Pedra-Negra. Você não responderá, para não mentir. Apenas perguntará, para induzir: Quem mais seria capaz de se libertar, quando assim desejasse, e matar um general com tanta perícia em combate? E continuará: Quer ter sua vingança carrasco? Se entrar nesta sala novamente, estará novamente mais perto do pirata Ônix do que estará se chamar outros soldados. Ou prefere perder sua chance? Pois, como você mesmo disse, enforcamento é uma forma muito rápida de morrer. Aquele que fez o que fez com seu irmão, merece algo muito pior... Você vai, então, se desfazer da espada. Vai dizer que não precisa dela para derrubá-lo... alguma mentira até agora?

– Não, pois não serei capaz de derrubá-lo.

– Exato. Ele passará por mim e eu terei chance de atingi-lo na nuca com esta pistola e derrubá-lo sem precisar lutar com esta perna ferrada. Eu visto a roupa do general, você veste a roupa do carrasco, e saímos daqui felizes para sempre.

– E se eu precisar de mais, para convencer o carrasco de que sou você?

– Aí é que está – Ônix sussurrou. – Você me conhece bem e terá de defender meu ponto de vista. Concentre-se e dê o seu melhor... ou melhor... o meu melhor...

Não houve mais tempo para mais instruções. Os passos estavam próximos demais. Era a melhor chance deles. Era isso, ou ir para o corredor enfrentar o carrasco de frente. Pouco provável. Menos provável que o plano.

O carrasco chegou e Di-Boa seguiu o plano, falando mais ou menos o que o capitão tinha dito para ele dizer. O imenso homem encapuzado hesitou. E Di-Boa improvisou.

– Então o carrasco tem medo de entrar nesta cela, agora que sabe que o pirata Pedra-Negra, está aqui? Porque saiba que Ônix não tem medo. Ele está aqui, te esperando. Quieto e sereno, certo de que você cairá antes que perceba, assim como o reinado dos governantes inescrupulosos, quando o povo seguir o maior pirata de todos os tempos, que não é nada modesto, e que arrumará tempo para seduzir algumas garotas entre uma coisa e outra e, já que sua vingança é pelo seu irmão, e estamos falando de família, você não teria uma irmã precisando de consolo pela recente perda?...

Nada mais precisou dizer. O carrasco urrou e avançou sobre Di-Boa e Ônix avançou sobre o carrasco.

*

Já fora da prisão, enquanto esperavam pelos outros, no ponto combinado, Di-Boa falou ao capitão:

– Você deixou de ser o pirata Ônix Pedra-Negra esta noite.

– A imagem de um velho fraco tem lá seu valor. Quanto mais tolo, menos capaz de enxergar além das aparências alguém é e maior é a surpresa ante a constatação da tolice.

– Concordo. A força de Ônix estava lá, sob a imagem de alguém fraco. Assim como Dáverus pode estar escondido no príncipe Aleck de Valdrick. Isso te surpreenderia, não é?

– Está me chamando de tolo?

– Está se vendo como tolo agora, capitão?

– Você devia estar me agradecendo. Eu nos tirei daquela prisão. Não vem com essa de que Dáverus guiou meus passos até lá. Eu levei um tiro na perna por você, seu ingrato miserável... não o tal deus.

Di-Boa riu e falou:

– Vamos considerar um trabalho de equipe.

– Eu e Dáverus nunca vamos trabalhar juntos. Esquece.

– Eu me referia a você eu, na verdade. Mesmo que você não considere a força da minha fé em Dáverus, precisa me considerar. Eu suportei a tortura e fiz minha parte direitinho. Viu as veias do carrasco pulsando de ódio nos braços? Os músculos latejando e os olhos esbugalhados no fundo dos buracos da máscara, antes de ele entrar novamente na cela, para você derrubá-lo?

– Vi nada disso não, mas, eu estava de cabeça baixa, pendurado feito o velho. Mas sei que você não é dado a mentiras. Por isso não podia deixar você morrer. Um dia vai ver que eu estava certo sobre esta besteira de Aleck ser a reencarnação de Dáverus e não poderá mentir pra mim e terá de admitir que eu estava certo. Vai ser um bom dia, este.

– E o que tem de bom, num mundo sem esperança, meu amigo?

Ônix não respondeu. Foram encontrados e auxiliados pelos camaradas. A vitória da fuga, porém, tinha um sabor estranho para Ônix. Além de uma puta dor na perna. Ela sempre achou que estava certo sobre o príncipe não ser a reencarnação do deus lendário, mas pela primeira vez considerou que talvez estivesse errado em querer tirar a fé dos outros em tal deus. Di-Boa só se manteve firme por causa disso. Era algo no qual o pirata pensaria, com certeza. Mas não admitiria isso ninguém, porque tinha uma imagem a zelar.        

*

Epílogo

O infinito como limite

– Interessante – a psicóloga fala.

Gosto do fato de ela ter falado isso e digo:

– Tal episódio me fez pensar sobre o valor das amizades. Uma mesma situação pode ter razões muito diferentes para diferentes observadores. E, no fim das contas, se prender à convicções, cegamente, é a verdadeira prisão. A chave pode estar além do que acreditamos naquele momento e amigos nos ajudam a ir um pouco mais além de nós mesmos. Às vezes nos irritam ou os irritamos por isso, mas, é parte da diversão.

– Você sempre tenta rever suas convicções? – a psicóloga pergunta.

– Sempre. De tempos em tempos. Principalmente quando sou lembrado disso. – E como meu tempo com ela está terminando por hoje; concluo: – Com minhas vindas aqui, tenho tentando um tanto mais. Tem valido a pena porque nossas convicções nos definem. E isso é perigoso. A palavra definir, fala por si mesma. Ela põe um fim. Nos limita. Precisamos sempre refletir sobre o que está além de nossa compreensão, na tentativa de abrangê-la, porque a compreensão amplia nossos limites e a definição de nós, pode um dia vir a ser o infinito.

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