A sacerdotisa

(Uma aventura pirata completa em 1 capítulo!)

Prelúdio

- Falando sobre o que falamos -

Toda verdade é mais flexível que toda mentira e é por isso que uma verdade é capaz de gerar muitas mentiras, enquanto é preciso muitas mentiras para se gerar uma verdade. A diferença é que as mentiras geradas pela verdade são fracas, enquanto a verdade gerada pelas mentiras, geralmente são fortes.

Por isso é importante valorizar o trabalho da psicologia e por isso estou aqui, no consultório da minha terapeuta. E mais uma vez estou admirado com sua elegância e a inteligência irradiando no olhar dela.

 – O livro do pirata Ônix foi o único que escreveu? – Ela pergunta, depois de folhear as anotações.

– Mais ou menos – respondo e explico: – Escrevi um livro sobre o pirata numa versão menor. Depois escrevi uma versão estendida com mais do dobro de páginas. E escrevi um segundo livro sobre o deus chamado Dáverus, mas também numa versão menor e com poucos exemplares liberados. Quero escrever uma versão mais completa desse segundo livro também, antes de continuar o terceiro, que em verdade já comecei, chamado Leela, mas é segredo... então não conte pra ninguém.

Ela não ri da minha piada, mas não parece ter se irritado. Claro que sabe que eu sei que nossas conversas são confidenciais e que ela não pode me expor de forma alguma,

– Por que escrever versões menores e depois escrever versos estendidas?

– Pra testar a aceitabilidade das propostas. Ver se eu consegui passar a essência de cada ambientação. E parece que sim. São atmosferas completamente diferentes.

 – Mas o pirata é seu personagem favorito. Estou correta em afirmar isso?

– Difícil dizer.

– Não parece.

Faz sentido ela pensar assim. Além do livro eu tenho narrado aventuras extras para a psicóloga. Episódios curtos, que continuo a escrever dentro do universo do pirata e sobre ele que dariam um livro maior que o livro Ônix. Ainda assim, respondo:

– O livro Dáverus é sobre um deus que é mencionado algumas vezes nas aventuras do pirata, mesmo que ele tenha vivido mais de duzentos anos antes de Ônix. Fiquei tão fascinado sobre o tal deus quanto fiquei com o pirata Pedra-Negra, embora o teor de cada aventura seja bem distinto. O livro Ônix é divertido com pitadas de drama. O livro Dáverus é um drama com pitadas de humor. Só estou me obrigando a concluir a minissérie com os contos que tenho narrado aqui, antes de voltar ao livro do deus.   

– Vai publicar os episódios que narra aqui?

– Não apenas – respondo, sorrindo. – Porque antes de cada aventura sempre escrevo algo sobre mim.

– Você escreve sobre o que conversamos aqui?

– Sim. Sobre o quanto minha psicóloga tem interesse na minha escrita.

– Talvez por ser algo de significativa importância para a sua vida.

–Talvez.

– E quão fiel você está sendo ao que realmente acontece em nossas sessões?

– O suficiente para dizer o que quero dizer para que entendam como eu entendo o trabalho ao qual me entreguei de corpo e alma.

– Então você muda a realidade, se precisar, e a nossa conversa aqui hoje pode virar outra?

– Com certeza – respondo com honestidade. – As únicas partes extremamente verídicas, são as que não acontecem neste consultório. Às vezes escrevo sobre acontecimentos na minha vida lá fora e aí sim, sou extremamente fiel. Mas sobre aqui, não.

– E qual capítulo da aventura do pirata você vai publicar junto com esta nossa conversa ou uma versão alterada dela?

– humm... vejamos... já que mencionei o Dáverus, contarei um importante acontecimento no qual, mais uma vez, a história do pirata se entrelaça com a do deus. Pode ser?

 – Se eu disser que não, você pode escrever que eu disse sim, seja como for, e publicar o episódio como planejou, não é?

– Pode ser – Respondo, sorrindo. E ela diz que quer escutar sim, seja como for, e eu início a narrativa.

Lúdio

- A sacerdotisa -

A porta foi fechada.

O pirata Pedra-Negra estava no maior templo de Dáverus, a Igreja da praça principal do reino de Valdrick, na qual enforcavam os condenados mais famosos. Enforcavam na praça e não na igreja. A falta de empatia parecia ter limite, mas era só uma questão de aparências mesmo. Separar o ato de violência do lugar de reza, em algumas dezenas de metros já bastava. Mas, verdade seja dita, a sacerdotisa do templo seria uma que, com certeza, se oporia a algo extremo assim.

O próprio Ônix quase foi morto, meses atrás, naquela mesma praça. Foi salvo por Rola-Pança, no entanto, que passou a fazer parte de sua tripulação.

O pirata se lembrava disso ao se direcionar até o altar do lugar iluminado por tochas que provavelmente já estavam acesas mesmo antes do Sol baixar tanto. Logo seria noite.

Perante o altar, uma moça, de aparentes vinte e poucos anos, orava. Era linda. Ônix a admirava e sorria quando ela se levantou; não por ter terminado, e sim por ter percebido sua presença. Quase sorrindo, perguntou ao pirata:

 – Veio em busca de uma conexão com Dáverus?

– Se tal conexão for através de você, pode ter certeza de que eu adoraria.

A garota não se abalou. Parecia estar acostumada e respondeu, com muita paciência:

– Se não puder me respeitar, tente ao menos respeitar esta casa sagrada. – Ela abriu os braços e seus movimentos eram tão graciosos que o pirata quase ficou constrangido.

– Ofender? – Ele riu. – Pelo contrário. Se soubesse o quanto tenho aversão à crença em Dáverus, saberia a profundidade do meu elogio, por considerar a possibilidade dessa tal conexão. Mas, para ser sincero, não tenho tempo, hoje, para cortejá-la. Quero falar com a sacerdotisa de Dáverus. Embora acredite que ela não seja bela como você, pois, se ela se refugiou nessa crença, se guardando para o deus, como dizem, só pode ser por falta de pretendentes... ou de intelecto, por aceitar uma fé tão besta.

A moça não se moveu e nada disse, avaliava o pirata. Mirava seus olhos claros nos olhos escuros dele. O pirata sentiu um calafrio, mas culpou alguma brisa leve, furtiva, naquele fim de tarde. No instante seguinte se sentiu aquecido, porém. Tanta tocha fazia do lugar um espaço deveras aconchegante. Mas o pirata resolveu não cair na armadilha, feita para os incautos que pagariam o que fosse por salvação, e continuou:

– Seja como for, deve faltar o mínimo de beleza ou de inteligência à tal sacerdotisa. Só espero que não as duas, devido à natureza de minha missão aqui. Pode me levar até ela?

Mais uma vez a moça não respondeu. O pirata a avaliou melhor. Usava um longo vestido claro que cobria todo o corpo, exceto as mãos e o rosto. Usava ainda uma tiara na qual havia o símbolo de Dáverus. Uma maçã em formato de coração atravessada de cima para baixo por um punhal. Uma roupa comum para as servas do deus. O olhar daquela moça linda, porém, não era comum e o pirata estreitou os olhos para dizer:

 – Hummm... você á a sacerdotisa, não é?

– Sim.

– Talvez, agora, eu tenha lhe ofendido – o pirata sorriu.

– Você acha?

– Não pode me culpar. Não me parece sinal de inteligência acreditar na ínfima possibilidade remota, se é que existe, de que um deus despertará, em breve, para salvar a humanidade; principalmente quando a profecia nos conta que tal deus está reencarnado no corpo do filho daquele que oprime a humanidade mais do que qualquer outro, o rei Valdrick.

A sacerdotisa juntou as mãos sobre o ventre e falou:

– Dizem que os piratas são dados a apostas. Já fez alguma aposta?

– Sim; muitas.

– E nunca fez alguma aposta na qual a chance de estar certo era uma ínfima possibilidade remota?

      Ônix quase juntou as sobrancelhas sob a bandana e torceu a boca emoldurada pelo cavanhaque. Pigarreou e respondeu:

– Sim; Muitas.

– E venceu alguma delas?

– Isso não vem ao caso – ele quis desconversar. Era óbvio que tinha vencido muitas apostas assim e era óbvio que a subestimou a inteligência da moça.

– O que vem ao caso é que Dáverus pode ou não ter renascido – a sacerdotisa falou, de forma muito branda e talvez por isso tão poderosa: – Pode ou não despertar no novo corpo. É uma aposta. A humanidade se divide entre aqueles que apostam numa coisa ou na outra. E, entre os que apostam no regresso de Dáverus, há aqueles que apostam alto e outros nem tanto.

– E você apostaria tudo?

– E muito mais – ela respondeu.

Ônix bufou um riso de desdém e falou:

– Tornando-se, assim, a sacerdotisa de Dáverus! Um conveniente papel de destaque. Um prêmio alto pela alta aposta.

– Um papel necessário. – A garota não se importou com a insinuação e continuou falando: – Há mais de uma profecia, além da mais famosa, e elas se completam. Sabemos que, quanto mais próximo do despertar de Dáverus no corpo humano que o abriga, mais a fé das pessoas será testada. Será papel da sacerdotisa manter a chama acesa no momento mais escuro. Por isso me guardo, sim, para aquele que carrega a alma de Dáverus.

– Não se guarda tanto, pelo que vejo. Imaginei que ficaria no alto da torre desta igreja e que seria difícil chegar até você.

– Do alto de uma torre eu não poderia ajudar a abrandar o lamento do mundo.

– Já que está disposta a abrandar o lamento do mundo, pode começar comigo. Na comunhão de nossos corpos, quem sabe? – O pirata falou, se sentando num amplo banco destinado aos fiéis. E o fez sem o menor dos bons modos, colocando um dos pés sobre a madeira limpa. 

– Os corpos são as menores partes de quem realmente somos – a sacerdotisa falou.

– Bem, o meu não é tão menor assim. – O pirata riu. – É de bom tamanho, pelo que dizem. Serve muito bem ao propósito. Permita-me demonstrar e conduzi-la por uma senda de prazeres e fará alguém neste mundo significativamente... grato. Duvido muito, aliás, que não sentirá o mesmo.

– Você se esforça para profanar esta casa sagrada e vou descobrir a razão – ela se limitou a dizer.

O pirata deu de ombros e falou, como se revelasse de bom grado o motivo:

– Um deus que não aprova a celebração da vida, não deve ser respeitado.

– Não é esse o motivo – a sacerdotisa afirmou, olhando Ônix nos olhos, até ele desviá-los e ela continuar dizendo: – E nós, seguidores de Dáverus, não somos contras as relações humanas entre aqueles que se desejam. Simplesmente não é o caso. E aqui não seria lugar para isso. 

– Da minha parte é facilmente o caso e todo lugar no qual nossos corpos estão é um bom lugar para tocar nossas almas, mutuamente. – O pirata voltou a encarar a sacerdotisa. – Como sabe se não é capaz de me desejar também, caso se permita?

– Não é uma questão de não ser capaz. É uma questão de, antes de mais nada, já estar compromissada, como já mencionei.

– Ah! É! Está se guardando. E se Dáverus não regressar?

– Ele já regressou – ela afirmou. – Está neste reino e tenho provas disso.  Milagres.

– Já presenciei muita coisa, mas nunca um milagre. Isso não existe. Não pra mim – o pirata afirmou. – E acho que só existe pra quem quer acreditar que uma coisa é outra coisa.

–  Ou você nunca se abriu a para a possibilidade.

– De um babaquinha mimado ser um deus? 

– O deus ainda não despertou no corpo humano que usa. Ainda. Podemos, no entanto, sentir sua energia em nós. E é sublime. O que sinto em relação a Dáverus é maior do que tocar, ou ser tocada, por qualquer outro homem.

– Já tocou ou foi tocada por outro qualquer outro homem?

– Não.

– Então como sabe?

– Porque nada pode ser maior do que o que sinto por Dáverus.

– Tem certeza? Como eu disse, não é dos menores... – O pirata apontou para o próprio corpo.

Ela apenas ignorou o comentário dele e perguntou:

– Acredita em destino, pirata? Que tudo está escrito?

– Eu não apostaria nisso.

– Aí está nossa diferença. Eu aposto. Tive um sonho profético. Nesse sonho eu me entregava a Dáverus, ainda como um mero homem. Seu poder divino ainda não estaria desperto. A minha energia, pura, é uma importante chave necessária a ele para que seus portais espirituais sejam abertos e um dia sua real energia aflore. Sem isso, ele não conseguirá despertar. Para que entenda a importância de eu me guardar para ele.

– É; ouvi alguns sacerdotes de Dáverus falando sobre o quanto é importante que o príncipe Aleck de Valdrick venha a esta casa sagrada para ser... iniciado – ele enfiou o dedo indicador num círculo que fez com a outra mão, para ilustrar, e mesmo assim a pele clara do rosto da sacerdotisa manteve o mesmo tom. O pirata se surpreendeu e continuou: – Embora tal príncipe esteja comprometido a se casar com outra... que provavelmente não se importa com essa iniciação, já que será um casamento de interesses. Mas, vim aqui para fazê-la mudar de ideia. Perceber a loucura de sua fé. Me oferecendo, inclusive, para ser seu primeiro, de muitos, quem sabe?

A sacerdotisa o viu se colocar de pé e dar uma passo na direção dela e, sem recuar ou mudar sua postura, falou:

– E se ofereceria mesmo se eu não fosse bela?

– Presumir lhe faltar atributos físicos e intelectuais que, por sorte, não faltam, pode ter sido precipitado da minha parte. Mas, seja como for, sim, vim especialmente para isso. Fosse como fosse, eu me ofereceria.

– O por que se impôs essa profana e desagradável missão?

– Não mais desagradável, pela sorte que acabo de comentar – o pirata observou antes de responder: – Sobre meus motivos... bem; tenho um bastante nobre e o outro bastante egoísta. E como estamos num templo, vou confessar o segundo. Um amigo jura que a energia de Dáverus, ainda inconsciente neste mundo, nos ajudou a escapar de uma enrascada. Não consigo esquecer isso.

– Não entendi. Você foi salvo por Dáverus e quer me desviar de minha devoção a ele, em retribuição?

– Você não está escutando. Meu marujo acredita que fomos salvos pela energia invisível de Dáverus que a todos guia e blá blá blá. Um puta exagero. Não fomos salvos por deus algum. Eu arrisquei minha vida por meu marujo e passei duas semanas me recuperando de um ferimento merda. Seja como for, mesmo sendo uma farsa, a idéia da existência de Dáverus tirou algo de mim: um dos meus feitos. – E a expressão do pirata se tornou sombria quando ele afirmou: – E quando tiram algo importante de mim, eu equilibro a balança como posso.

– Me trata como algo; declara seu desejo de vingança descaradamente; e ainda quer me convencer a me entregar a você, esquecendo todos os anos aos quais me dediquei à minha fé?

A sacerdotisa tentava entender. Outras moças saíram de uma porta e se dirigiam em sua direção, mas ela ergueu a mão para não ser interrompida e elas giraram nos calcanhares e voltaram, desaparecendo pela porta.  O pirata admirou a confiança dela de ter tudo sob controle e respondeu:

– Bom... se eu disser que meu desejo por vingança, neste momento, parece bem menor do que meu desejo por você, ajudaria?

Ela não respondeu e ele continuou:

– Mas não se preocupe. Acho que já entendeu que não estou aqui para forçá-la a nada. Comigo, inclusive, você seria livre, como jamais foi.

– Eu sou livre e... 

Ela parou de falar ao ver um soldado vindo da mesma porta na qual as moças entraram. Pela primeira vez a sacerdotisa expressou preocupação. Previa o que poderia acontecer e queria ter evitado. O soldado se colocou ao lado dela e falou:

– Está sendo importunada, Ísis?

– Agora ela está – Ônix respondeu.

– Estou bem, Kalú. – Ísis barrou a passagem do soldado, com um leve gesto da mão direita.

Ônix esticou um riso na boca e falou:

– Vai me dizer que não se sente um pouco prisioneira agora?

E foi o soldado quem respondeu, visivelmente irritado:

– Não há prisioneiros aqui... ainda.

– Não há necessidade de violência – Ísis falou.

– Minha missão é garantir que a sua missão seja cumprida – o soldado afirmou.

O pirata não se intimidou e falou ao soldado:

– Só estou oferecendo a ela a chance de ter um momento agradável com alguém realmente interessado em tocá-la. Ouvi dizer que o príncipe Aleck é daqueles que se entregaria apenas a um único amor e, como está comprometido a se casar com uma princesa, vai decepcionar a Sacerdotisa. De várias formas. Pois duvido muito que ele seja mesmo a reencarnação de Dáverus, que nunca mais deve renascer neste mundo, no fim das contas.

– Como se atreve?

O saldado não especificou a quê exatamente e o pirata o ajudou:

– A manifestar meu deslumbre por esta linda garota, que acabo de conhecer, quando você, que está ao lado dela provavelmente há bastante tempo, precisa se esforçar para manter seus pensamentos depravados em relação a ela apenas no mundo de suas fantasias diárias?

O soldado sacou a espada e irritou Ônix pela maneira como a segurou. Era o que chamavam de espada invertida. A ponta da espada não ficava apontada para cima e sim para baixo e podia ser facilmente apoiada no antebraço, feito um escudo. Era uma postura boa para defesa, não para ataque.  Era preciso se achar muito superior para usar uma postura que diminuía em muito o alcance para o ataque.  O soldado era confiante e o que falou em seguida reforçava isso:

– Já chega! Você está preso.

– Não, não estou. Não há prisioneiros aqui, ainda. E não haverá, pois não vai me vencer.

Passando pela mão erguida de Ísis, o soldado falou:

– Vou mostrar o quanto está errado em relação a isso.

E Ônix sacou sua espada da forma tradicional e falou:

– Em relação a isso, foi o que ele disse, perceba bem minha querida. Já em relação aos pensamentos depravados dele a seu respeito, pelo visto, eu estava certo e ele não ousou contestar.

O soldado deu um passo na direção do pirata e Ônix deu dois na direção do oponente, atacando antes. Atacou uma vez o lado esquerdo do soldado para forçá-lo a quase se virar para conseguir se defender com a lâmina da espada rente ao braço direito. Mas o pirata só fez isso para conseguir expor parte das costas do soldado.

O segundo ataque de Pedra-Negra veio da mão que passou atrás das próprias costas, feito um guerreiro contornando uma montanha para surpreender o adversário do outro lado. O soldado se defendeu fácil, porém, demonstrando que previa isso e Ônix voltou a mão por onde veio, atacando novamente o lado esquerdo do soldado, por ser o local menos provável, por ter sido testado recentemente. E mesmo assim o homem da lei se defendeu fácil e girou de imediato, enfiando o cotovelo esquerdo no estômago do pirata, antes de passar por ele.

Ônix se curvou por dois segundos contra sua vontade. Tempo demais, Pedra-Negra se censurou e se ergueu apenas para sentir uma nova cotovelada, agora nas costas, que o lançou para frente em desequilíbrio vergonhoso.

O soldado poderia tê-lo matado, mas queria humilhá-lo antes, o pirata entendeu. Se virou e viu a expressão superior do adversário, suavizada apenas por ele ter mudado a forma de segurar a espada. E Pedra-Negra inverteu a posição da espada em sua mão. Agora era ele que a tinha rente ao braço.

O Soldado avançou girando, por ter vantagem de alcance, e atacou o lado direito do corpo de Ônix, que se defendeu facilmente. O soldado girou atacando o outro lado e o pirata não apenas se defendeu como, com a mão esquerda livre, segurou o braço direito do soldado antes de enfiar o cabo da espada no estômago do homem da lei, que também se dobrou involuntariamente. Ônix deixou claro, com isso, que poderia tê-lo matado também, uma vez que o soldado não usava armadura ali. Ela se limitava ao peitoral e braceletes. A túnica brilhante, abaixo do peitoral, estava marrada à cintura por uma corda fina e dourada.

 O pirata, no entanto, não parou ali. Girou enquanto passava pelo soldado e enfiou um soco em suas costas. O soldado foi obrigado a se ajoelhar.

Ônix não esperou o oponente se levantar, porém, e avançou atacando, ainda com a espada invertida, de baixo para cima, embora o soldado estivesse de costas e ajoelhado, pois certamente ele defenderia o alto da cabeça, o ponto mais vulnerável e vital.

O soldado, no entanto, se levantou girando e posicionando a lâmina na horizontal, entre as pernas, bem onde foi atacado. Pedra-Negra se espantou e subiu o cabo da espada na fuça do soldado, feito uma alavanca. 

A cabeça do soldado foi projetada para trás, mas ele ignorou a dor e a falta de visão. Redirecionou a lâmina do pirata para o lado, dando abertura para voltar para frente e atingir, da direita pra esquerda, a ponta do cabo da sua espada no maxilar de Ônix, que teve a cabeça chacoalhada.

Pedra-Negra também não gastou sua atenção com a dor que sentiu e girou um ataque que cortou o ar. O soldado girou junto com ele e atacou as cotas do pirata. Ônix mal teve tempo de bloquear a investida. O soldado, neste ínterim, segurou o cabo da espada do pirata e girou, torcendo a mão do oponente e roubando sua espada.

Ônix recuou um passo. Fez uma careta e se posicionou para continuar, sem medo algum do soldado com duas espadas. Com uma das mãos, ele chamou o soldado para a luta, feito um antigo mestre das artes marciais do passado esquecido do velho tempo; como tinha visto, certa vez, num pequeno portal mágico, que na verdade era uma tela de um raro dispositivo alimentado por energia solar.  

O soldado entendeu o recado. O pirata dizia que não precisava de espada para acabar com ele. E o homem da lei não fez por menos. Jogou as espadas longe e se posicionou também.

O soldado deu um passo na direção de Ônix e o pirata chutou alto, buscando atingir a cabeça do oponente que bloqueou o ataque e se abaixou para escapar o segundo pé de Pedra-Negra, que se apoiou com a mão no chão para subir o segundo chute alto.

Ambos se colocaram, de pé e Ônix aproveitou o embalo do giro que completou no processo para socar forte a cara do soldado que segurou sua mão direita com a mão esquerda dele.  Ônix foi atingido por um soco direto.

O soldado aproveitou o desequilíbrio do pirata e girou no ar, chutando alto. Mas, mesmo sem enxergar, Ônix visualizou aquilo e se abaixou, enquanto girava uma rasteira rente ao chão, da qual o soldado escapou girando para trás e depois avançando um soco potente de cima para baixo. Mas o pirata já enxergava e foi a vez de ele segurar a mão do adversário e atingir com um vigoroso soco o estômago do soldado, para fazê-lo se dobrar mais uma vez, enquanto mais uma vez o pirata girava, passando pelo oponente, para socá-lo nas costas e colocá-lo de joelhos mais novamente. Desta vez, no entanto, o golpe final viria antes do soldado se levantar.

O soco desferido por Ônix desceu na direção do maxilar do soldado que se virava para olhar o oponente. O punho feito um relâmpago vindo de um céu escuro e tempestuoso. Em vão. Feito uma muralha, uma das mãos do soldado segurou o ataque do pirata que foi atingido pela outra mão do adversário que socou a parte de trás do cotovelo esticado do pirata, forçando uma dobra que a anatomia não aconselhava. E não foi o único contra-ataque. Feito uma avalanche, golpes e mais golpes desceram sobre o pirata que, com o braço ferido, não conseguia se defender. Foi espancado violentamente e o último soco, vindo de baixo pra cima, direto no maxilar, o tirou do chão e o fez cair nele.

Ônix via tudo triplicado e esbranquiçado. E esse tudo era o soldado recuperando uma espada e desferindo um golpe que Ônix não teve condições de se defender. E não precisou. O soldado parou. E o pirata entendeu o som de metal batendo em algo maciço. O soldado desabou diante do pirata e atrás dele a sacerdotisa segurava uma ânfora dourada, amassada.   

– Obrigado – o pirata balbuciou, feito um bêbado. O mundo voltando ao foco. – ... Sabia que estávamos nos entendendo.

– Fiz isso para salvá-lo – A sacerdotisa apontou para o soldado e o pirata entendeu que, para a moça, o soldado estava prestes a cometer um sacrilégio ou algo assim. E, enquanto levantava e colocava o braço dolorido no lugar, o pirata a escutou dizer: – E, como uma boa fiel às doutrinas Daverianas, não desisti de salvar, também, a ti. Que precisa muito mais de salvação. 

– Se você realmente se importa em apaziguar meu ser – o pirata falou, ao se sentar no banco outra vez. Desta vez menos presunçoso. –; aceite meu corpo e minha mente, encontrará alguma paz.

– Por que, ao invés de esperar que eu venha apaziguar sua mente, irritada pela nossa fé em Dáverus, e seu corpo, desejoso do meu, não me permite apaziguar de fato a sua alma? Por que se fazer de tão cretino? Ao olhar em seus olhos eu vejo alguém diferente do que demonstra. Não a imagem insolente que faz questão manter.

– Todos temos que assumir algum papel...

– Não o tempo todo. Não aqui. Não diante de mim. – A brandura da voz dela quase convenceu o pirata a ceder e, ciente disso, a sacerdotisa continuou: – Talvez eu pudesse respeitar e me afeiçoar a este alguém além da máscara, como amiga, se puder olhar para mim e me enxergar além de corpo e até mesmo intelecto. Pura e simplesmente como alguém com quem possa estar sem manter esta encenação sem sentido.

– Sem sentido já eu acho um puto exagero – o pirata afirmou. – Ambos assumimos uma responsabilidade, por vontades próprias, e estamos fazendo o nosso melhor. Você tem razão, porém, sobre meus gracejos. Não acredito ser irresistível e nem que merece, de verdade, ser tratada assim. Mas, quanto a acreditar no regresso de Dáverus, pode olhar profundamente em meus olhos e vai ver que não acredito, terminantemente.

– O que eu poderia fazer para que você acreditar?

– Nada.

– O que eu poderia fazer para que você acredite que eu acredito nisso e respeitar minha fé?

– Acredito na sua fé. Assim como na fé do povo. E este é o outro motivo, o nobre motivo, pelo qual estou aqui. O motivo sério.

– E pelo qual você ainda está de pé, e não ele – Ísis falou. Ainda não tinha escutado essa argumentação do pirata e estava curiosa; esperançosa, até, por sentir nele uma determinação além do comum. – Talvez um nobre motivo seja uma ponte para sua salvação e, por isso, estou disposta a ouvir.

– A fé em Dáverus é um dos problemas do mundo. Quem acredita no retorno dele, aceita as injustiças, esperando que tal deus venha para salvá-los. Aceitam que os sofrimentos são necessários, como provações. Acredito, no entanto, no caminho da felicidade. E somos responsáveis por isso. Devemos escrever nossa própria história.

A expressão de Ísis denunciou sua surpresa e o pirata se encheu de confiança para concluir:

– Temos de tomar as rédeas de nossas vidas, por nós mesmos.

O semblante da sacerdotisa tinha mudado, embora o pirata não tenha decifrado exatamente a razão, mas, de alguma forma, o que disse havia afetado Ísis e ela falou, em novo tom:

– Às vezes a escuridão é grande demais e precisamos de uma grande fogueira onde acender as nossas próprias tochas. Mas, lhe parece impossível que Dáverus desperte, não é?

– Exato. Não creio em milagres. Por isso planejo um grande feito. A minha grande fogueira. E preciso do apoio do povo. Se a sacerdotisa de Dáverus recusar o príncipe Aleck, muita gente se questionará sobre as razões disso e o questionamento é o primeiro passo para a autolibertação. O velho rei Ulysses de Valdrick oprime o povo, se escondendo atrás da fé das pessoas no jovem príncipe. Quero derrubar o pai, algo que o filho jamais fará, sendo Dáverus ou não... e não é. Quero ajudar o povo. Eles precisam começar a enxergar que as profecias não vão se cumprir. Esta é a força final para um grande feito que venho preparando há meses, financiado pelas minhas... atividades no mar.

– Você quer promover uma revolução?

– Em breve. É o que o povo precisa, de verdade. Se quer mesmo ajudar o máximo de pessoas possível, deve ponderar bem. A era dos deuses se foi. Só restou nossa humanidade. E faz parte de nossa natureza acertar e errar em busca de felicidade. Ficaria muito satisfeito se concordasse em não se entregar a um homem que não lhe deseja, que apenas cumpre os desígnios de um pai tirano. Ou você defende o rei Valdrick?

– Não é ele quem tem minha lealdade.

– Ótimo, porque se ele colocou um guarda aqui para te vigiar, saiba que, depois de minha visita, você será mantida prisioneira até cumprir sua parte no teatrinhho dele para promover a divindade do filho. Por isso, a única forma de se livrar disso é, aceitando me aceitar, enquanto pode. Esta é a verdade sem os gracejos que suavizavam e divertiam a coisa toda.

– Por qual razão se impõe a tarefa de ajudar o povo? É muita responsabilidade para quem assumiu o papel de um pirata.

– Como você mesma disse, o pirata é apenas uma máscara. A ele reservo a parte de mim que precisa de levezas... leviandades... para manter a parte pesada, responsável, compensada. Esta parte pirata sim, se oferece a você para uma troca mútua de belas sensações. Não tenho problemas em relação a isso. Sou devoto da vida. Posso lhe mostrar a minha fé nas sensações. Quem sabe através de um breve relacionamento descompromissado, você aprende a se divertir. Encarar as durezas da vida com diversão é uma forma muito elevada de espiritualidade.

Ísis olhava diretamente nos olhos do pirata e ele não sabia se ela considerava a possibilidade ou se estava apenas investigando as convicções do pirata que, naquele momento, se abria para ela. Fosse como fosse, ele continuou:

– Não estou aqui para forçá-la a nada, no entanto, como já falei. Se eu fosse lhe raptar, já teria feito. Oferecer meu corpo a você é apenas uma demonstração da minha fé na falta da minha fé em Dáverus. Minha fé é em nós mesmos. Estou sim, disposto a me entregar a você, como você estava, espero que não esteja mais, em se entregar ao príncipe Aleck. Minha convicção é tão forte quanto a sua, embora contrária. Mas, são dois lados de uma mesma moeda. Uma moeda usada para uma aposta. Apostamos um contra o outro, mas com a mesma finalidade.

– Uma vida mais digna para o povo – Ísis falou, para deixar claro que entendeu a argumentação.

– Que terá que fazer a sua parte, em breve; mas, como você mesma disse: precisam de uma grande fogueira. Eles precisam perder o medo. Estou aqui porque não tenho medo da vida. Um dia vou me fundir a ela.  Quando o fim deste corpo chegar. E me entrego sem medo à certas alegrias, sim, afinal: um dia meus pecados morrerão com minha humanidade.

Mais uma vez a expressão de Ísis deixou claro que ela estava surpresa. Provavelmente por escutá-lo falar com tanta paixão, o pirata pensou. E ela perguntou:

O que conhece da palavra de Dáverus?

– Tudo que tive saco pra escutar. Ou seja: nada. E não interesse o que o deus disse quando estava aqui neste mundo porque ele não está mais. Faz séculos. Nós estamos e é isso que importa. Consegue sentir uma fagulha de anseio por se libertar de preceitos e dogmas em formas de muralhas que prometem lhe proteger do mundo, quando, na verdade, deveriam te preparar para ele?

 Ísis continuou olhando para o pirata com a expressão alterada desde a mudança da argumentação de Ônix. E o pirata continuou:

– Consegue ver além da minha descarada cretinice, meramente encenada, e enxergar que não sou eu quem quer usá-la e sim que já está sendo usada pelos governantes para manter o povo submisso?

Consegue entender que precisa fazer realmente uma escolha para estar realmente no controle de sua vida e que vim lhe oferecer uma alternativa, sem a qual não há, realmente, uma escolha? Porque somente escolhendo, de verdade, estará realmente tomando a frente de uma situação, como uma líder espiritual deve fazer.

Ísis olhou para a imensa maçã atravessada por um punhal, esculpidos no metal e pendurados no alto da igreja e Ônix sussurrou, como se pudesse ter mais acesso à mente dela assim:

– Consegue sentir o meu convite ao prazer de estar viva? Porque, se por um instante que seja, sentiu vontade de sentir algo através de mim, não necessariamente por mim... entenda bem a diferença; sua pureza já foi maculada, devo dizer. E não há problema algum nisso. Faz parte da vida. Esteja viva e seja sincera consigo mesma. Leia seu corpo, com bastante atenção.

– Não pode ser assim... Depois de tantos anos, esperando pelo príncipe Aleck...

– Não se sinta tola pelo tempo perdido e sim grata por todo o tempo que pode ganhar.

Ísis voltou a encarar o pirata e falou, com brandura:

– Não me sinto tola, nunca me senti e dificilmente sentirei.  Pode pensar o que quiser, mas, sempre segui meu coração. Ele me guiou até este momento.

– E o que ele lhe diz agora? – o pirata se aproximou, ficando a um passo apenas dela. – Se é fiel ao seu coração, acima de tudo, de verdade, serei capaz de respeitar sua escolha. Seja ela qual for. Mesmo que siga o que, para mim, é uma mentira. Se o seu coração, porém, lhe diz que você pode viver um magnífico momento, agora, se entregando a mim, como sou capaz de me entregar a você... seria um pecado negá-lo.

O pirata sustentou o olhar de Ísis. Ela vasculhava a alma dele através dos olhos. Alguns segundos depois, a sacerdotisa pegou a mão dele e o pirata não esperava por aquilo. Ela se antecipou. Ele estava prestes a segurar a mão dela, bem de leve, pra deixá-la experimentar a sensação de toque, mas foi ela quem o fez. E, com muita serenidade, ela falou:

– Talvez eu tenha lido errado os sinais. Talvez nossos caminhos estejam mesmo cruzados.

– Talvez. Você quer ajudar o povo a enfrentar a escuridão e a escuridão vem do mesmo trono reservado ao príncipe Aleck. Talvez a fé que está destinada a manter acesa seja das pessoas em si mesmas. Apenas siga seu coração, Ísis, é tudo que peço. Aonde sente que ele deve te levar?

Ísis segurava a mão do pirata, mas não deixava de mirar seus olhos. Respondeu a pergunta do pirata, ao colocar sua mão sobre o peito dele. Ambos prestaram atenção ao batimento do coração que agora podia ser sentido.

Ônix suspirou lentamente, com visível reconforto, e sussurrou:

– Eu esperava um pouco mais embaixo, mas, é um bom começo.

E foi aí que Ísis o surpreendeu, ao dizer:

– Se você permitir que eu toque sua alma, permitirei que toque meu corpo.

– Não crie muita expectativa quanto à primeira coisa, mas quanto à segunda, fique à vontade – ele sorriu. – Seja como for, credito que uma coisa não é possível sem a outra, em menor ou maior intensidade. No fim das contas, um tantinho de minha atenção você certamente terá. É o que posso, sinceramente, lhe responder.

E Ísis surpreendeu o pirata ainda mais, ao dizer:

– Então, estou pronta para você.

– Essa é uma boa resposta. – Mesmo surpreso, ele não ia recuar. – Pra ser sincero, a probabilidade de você aceitar ponderar sobre não se entregar a Aleck, me pareceu pequena.  Mesmo considerando sua boa intenção de realmente ajudar o povo. Me aceitar como garantia de que não lhe forçassem a seguir com iniciação de Aleck, me pareceu ainda mais pouco provável...

– E aí está o seu milagre – ela falou e insinuou um sorriso. O pirata a esperava se afastar e deixar claro que era apenas uma forma de provar seu argumento, mas só seria se ela fosse até o fim. E ela o segurou pela mão e o puxou, levando em direção a uma porta oposta à que o soldado tinha vindo.

Subiram escadas e mais escadas, passando por muitas pessoas que se chocaram com o que viam. A sacerdotisa levando um visitante cada vez mais para espaços reservados apenas aos mais dedicados. E não paravam de subir em direção aos seus aposentos pessoais.

O pirata sorria e a seguia e quando entram no quarto, a iluminação era apenas das lamparinas ao redor. Não havia janelas. Estava para acontecer ou ela tentava intimidá-lo. O que não seria possível. E por isso ele se despiu muito devagar.

A cada peça que ele tirava, ela tirava uma dela. Parecia um desafio para ver quem sustentava mais aquela encenação, mas não era encenação para nenhum dos dois.

Ela estava completamente nua e ele ainda tinha muitas peças de roupas para tirar e foi quando acelerou o processo. Àquela altura ele já não duvidava e em poucos segundos estava pronto para esquecer todo o tempo.

*

Horas depois, o pirata se vestia para ir embora. Ísis estava na cama coberta por um tecido leve. O silêncio passou a incomodar Ônix e ele falou, enquanto calçava uma bota:

– Me sinto bem realizado. E você?

– Mais do que pode imaginar.

– Será? – Ele riu. – Acredito ter uma boa ideia.

– Não; não tem – ela afirmou e ainda o encarava de uma forma muito estranha. A sensação no peito do pirata é que não tinha tido êxito; pelo contrário. E gaguejou ao dizer:

– Isso é bom... Não é?

– Muito.

– Ótimo, então... porque passamos por muitos sacerdotes até chegar a este seu quarto e duvido que vão te perdoar e que isso não chegará aos ouvidos do velho e do jovem Valdrick. Espero que a sua verdade te fortaleça nos desafios que enfrentará.

– Sempre o fez, e não será diferente agora – ela falou e isso ressoou no pirata como um desconforto indefinido, reforçando a sensação de fracasso, apesar de tudo o que aconteceu naquele quarto, e era um bastante tudo. Mas não teve muito tempo para pensar. Ísis comentou: – Espero que sua frustração em relação a Dáverus, pelo feito que seu marujo credita a ele, tenha sido abrandada.

– Tinha até me esquecido dela.

– Isso é bom. De várias formas.

– Desculpe por corromper sua fé em Dáverus.

– Não corrompeu, na verdade.

– Não? – O pirata precisava entender o que se passava ali.

– Não. Ainda creio que ele vai despertar. Mas creio que você precisa mesmo realizar o grande feito que planeja. Estava escrito que a fé do povo estará abalada. Demorei para aceitar que, assim como caberá a mim, reforçar tal fé, caberia a mim, um bom tanto, enfraquecê-la antes. É o que tornará o milagre ainda mais fantástico. Precisei te usar para isso.  Devo lhe pedir desculpas?

Ônix fez uma careta. Não tinha visto sobre tal perspectiva e cofiou o cavanhaque antes de rir e falar:          

– Você aumentou a aposta. Que já lhe era, do meu ponto de vista, bastante desfavorável a você. Devo admitir que você tem coragem. Sobre pedir desculpas: Não precisa. É sempre bom quando a ajuda é mútua.

– Que sua cruzada o leve aonde precisa levar até você aceitar Dáverus. Mesmo que, aparentemente, seja para lutar contra ele.

Aquela afirmação assustou o pirata como ele jamais admitiria. E pra evitar que ela pudesse ler isso em seus olhos ele os desviou e falou:

– Não se iluda. Eu jamais poderia aceitar Dáverus, principalmente como você aceitou em sua vida.

– Tenho certeza de que não. Cada um tem seu próprio destino. Uns o aceitam pouco, outros um tanto, outros aceitam muito e há quem vai além disso, muito além. Mas, seja como for, para mim, não é uma questão de aceitar algo novo. No fundo, são verdades que já temos. De outra vida. É uma questão de lembranças.

– Bom, agora devo ir além é das paredes deste lugar e com lembranças danadas de boa. Infelizmente foi só desta vez. Acho que não vamos nos ver mais. Espero que isso não estilhasse seu coração.

Ela riu e falou:

– Com certeza isso aqui não vai se repetir.

O pirata parou de rir e perguntou:

– Ahmm... por que não, se foi tão bom?

– Porque foi como tinha de ser e é só. Espero que isso não parta seu coração.

– De forma alguma – o pirata falou, nada convicto. Mas se recompôs e completou, fazendo uma reverência exagerada para dizer algo que foi minimizado para se encaixar numa piada, pois o singular não era exato: – Foi um prazer.

– Não apenas para você – ela admitiu, sorrindo. Uma mecha de cabelo claro caindo sobre o rosto tão bem desenhado.  

– Isso sim é divino – o pirata falou. – Que você tenha uma boa sorte.

– E que a sua continue. –  Ela desejou e ele saiu, sem muita pressa. Não sem olhar para trás algumas vezes.

A porta foi aberta.

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