Casa de vidro

A rua parecia ter sido abandonada por todos os sons do mundo. Nem o vento ousava soprar entre as árvores secas que ladeavam a calçada. Helena parou o carro diante da casa, desligou o motor e escutou o próprio coração — um tambor ansioso dentro do peito. Aquela era a primeira vez que visitava Luck Valley fora dos palcos, longe do caos dos bastidores. Ali, o silêncio gritava mais alto.

A casa era antiga. A fachada estava parcialmente encoberta por trepadeiras mortas e janelas cobertas por cortinas opacas. A porta da frente — entreaberta — a fez hesitar.

Ela sentiu o pressentimento como um estalo na espinha. O tipo de alerta que antecede revelações perigosas.

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Bateu levemente com os nós dos dedos na madeira. Nenhuma resposta. Com um passo contido, empurrou a porta.

— Olá...? — sua voz se dissolveu no ar abafado.

A sala estava mergulhada numa penumbra amarelada. Um cheiro de incenso impregnava tudo, misturado ao aroma doce e doentio de frutas esquecidas. A madeira do piso rangia sob seus pés. Era como andar por dentro de um sussurro.

No andar de cima, passos. Lentos. Precisos.

Ela recuou instintivamente. A casa respirava — não como uma estrutura inerte, mas como um bicho adormecido. E ainda assim, ela permaneceu.

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— Você chegou cedo — disse uma voz atrás dela.

Ela se virou sobressaltada. Luck estava no alto da escada, descalço, vestindo uma camisa preta, o cabelo caindo como sombra sobre os olhos. E os olhos... claros, fixos, como se enxergassem além.

— A porta estava aberta — disse ela, tentando manter o tom neutro.

Ele sorriu, enigmático.

— Essa casa nunca foi boa em guardar segredos.

Guiou-a até a sala principal. Havia uma poltrona solitária próxima ao piano. Ele, desconcertantemente, sentou-se no chão, encostado na parede, como se aquele fosse seu trono. Ela notou que ele não precisava da casa — ela é que parecia depender dele.

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— Nervosa? — ele perguntou.

— Talvez. Teu andar de cima tem um jeito peculiar de receber visitas.

Ele arqueou uma sobrancelha, com leveza quase teatral.

— Moro sozinho. Mas a casa... ela gosta de brincar com memórias.

Helena sorriu com os lábios, mas não com os olhos. Ligou o gravador.

— Podemos começar?

— Só se for de verdade — respondeu ele.

— E o que seria verdade pra você?

— Aquilo que dói — disse, com simplicidade devastadora.

Naquele momento, Helena percebeu algo raro: ela não estava no controle. Ele a estudava com mais precisão do que qualquer entrevistado que já conhecera.

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— Por que você nunca lançou Casa de Vidro?

Luck não respondeu de imediato. Deitou a cabeça nos joelhos e fechou os olhos por segundos longos demais.

— Porque é a única música que me rasga. Não posso cantar isso e depois sorrir pra câmera. É... é uma confissão.

— Então confesse agora — ela pediu, surpreendendo a si mesma com a suavidade da voz.

Ele se ergueu e foi até o piano. Puxou um caderno velho, de capa desbotada. Voltou e se sentou ao lado dela, entregando-o sem dizer nada.

A letra parecia ter sido arrancada da carne. Rasuras, frases riscadas, pedaços quase ilegíveis.

Helena leu em silêncio, sentindo cada palavra como um soco manso.

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— Ela se foi? — perguntou, por fim.

— Não sei. Talvez só tenha se transformado em silêncio — disse ele, apontando para o teto. — Às vezes acho que ouço os passos dela... descendo as escadas.

Helena o observou por segundos demorados. Havia ali mais do que dor — havia saudade com raízes, enterrada em camadas.

— Por que me deixou entrar aqui?

— Porque você perguntou “por que dói?”, Helena. Ninguém pergunta isso. Todo mundo quer saber quem sou. Você quis saber onde sangro.

Ela sentiu uma fissura se abrindo dentro de si. Havia algo de cruelmente belo naquele homem. Algo que atraía e assustava.

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Pela janela, ela pensou ver uma silhueta. Uma mulher? Não. Apenas reflexo.

Quando voltou os olhos para ele, Luck estava mais perto.

— Posso te contar um segredo?

Ela assentiu.

— Quando eu era criança, minha mãe dizia que eu era “grande demais pro mundo”. Achei que ela me admirava. Hoje, acho que ela só queria dizer que eu nunca caberia em ninguém.

Helena sentiu vontade de tocá-lo. Mas não ousou. Havia algo sagrado naquele momento — e profaná-lo seria como espantar um fantasma.

Ele sorriu, como se adivinhasse.

— Ainda está entrevistando?

— Acho que não.

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— Então por que ainda está aqui?

Helena hesitou.

— Talvez porque quero entender você. Ou me entender.

Luck inclinou a cabeça. Havia uma serenidade estranha no olhar dele. Quase melancólica.

— Todos que entram nessa casa acham que estão entrevistando um homem. Saem descobrindo que se tornaram parte da história dele.

Ela não soube o que responder. Levantou-se devagar, ciente de que o momento se desfazia como névoa ao sol. Mas algo nela permanecia.

— Vai voltar? — ele perguntou.

— Sim — disse, já na porta.

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Ao sair, sentiu o peso dos olhos dele observando da janela.

Havia deixado algo ali. Ou talvez tivesse trazido algo de volta consigo.

Na rua, a claridade parecia artificial. Como se tudo fora da casa fosse apenas cenário.

Ela entrou no carro e olhou para o espelho. Não se reconheceu de imediato. Era ela — mas algo havia mudado.

A fita do gravador ainda girava.

Ela desligou.

A entrevista havia acabado.

Mas a história... estava só começando.

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A casa continuava ali, imóvel, como um segredo prestes a romper o lacre.

E, no fundo, Helena sabia:

Algumas portas, quando abertas, não se fecham mais — e há verdades que, uma vez ouvidas, moram para sempre dentro da gente.

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