POV: LUANA
Há muitos ex-moradores que hoje trabalham como voluntários aqui, ensinando o que aprenderam, ajudando outros a se reerguerem. É um grande trabalho em equipe, cheio de esperança e amor.
Passei a tarde inteira na ONG, ajudando como sempre. Mas, mesmo ocupada, meus pensamentos voltavam para João. Eu não entendia o porquê. Talvez porque nunca tivesse sido abordada daquela forma, ou por compaixão… Mas havia algo nele que mexia comigo. Não era beleza física — ele estava sujo, descuidado, maltratado pela vida, sua barba e cabelo escondiam qualquer traço bonito que pudesse ter. Mas seus olhos… aqueles olhos azuis pareciam transmitir a pureza da sua alma, mesmo com toda tristeza e vazio que carregavam.
Ao chegar em casa, subi correndo para o quarto. Precisava de um banho urgente, pois ainda estava com o cheiro dele impregnado na pele.
Depois do banho, liguei para Cecília para saber se ela havia melhorado. Conversamos um pouco, e então voltei para os estudos até a hora do jantar.
(...)
— Boa noite, família. — disse, ao me sentar à mesa.
— Boa noite, querida. Como foi a aula hoje? — minha mãe perguntou enquanto se servia.
— Foi boa, mãe. E vocês, como foi o dia? — respondi, tomando um gole do suco.
— Corrido, como sempre. — respondeu ela, séria.
Jantamos conversando sobre o dia a dia. Era um dos poucos momentos em que podíamos interagir como família. Depois, fui para meu quarto. Troquei de roupa e me joguei na cama. Ao fechar os olhos, me lembrei do olhar triste e profundo de João.
— Tira esse homem da cabeça, Luana… — disse para mim mesma antes de, finalmente, adormecer.
Após assistir à primeira aula do dia, fui com Cecília até a lanchonete da faculdade. Enquanto lanchávamos, conversávamos sobre coisas aleatórias, até que ela mudou o assunto de repente.
— Mudando de assunto, dona Luana… minha mãe me falou sobre o João. — disse, me olhando fixamente enquanto mordia seu sanduíche.
— Qual João? — perguntei, arqueando a sobrancelha.
— O morador de rua que você levou para a ONG ontem. — respondeu, como se fosse óbvio.
— Ah, sim… agora lembrei. — falei, tomando um gole do meu suco. — Mas o que tem ele?
— Não tem nada, mas… você é maluca, Luana! Como pode sair andando com um morador de rua? E se ele fizesse algo com você? — disse séria, quase brava.
— Eu sei… mas eu não pensei muito, agi no impulso. Eu só queria ajudá-lo, fiquei com pena. Mas sim, foi arriscado… — admiti, olhando para ela.
— Mesmo assim, Lua. Você vai acabar arrumando problemas com essa mania de querer ajudar todo mundo. Ele poderia ser um psicopata ou um tarado. Não se arrisque assim de novo, por favor! — disse, com preocupação genuína.
— Você tem razão. Eu prometo que não farei mais isso. — falei séria.
Depois disso, mudamos de assunto e voltamos para a aula. Assim que terminou, fomos para a ONG. Ao chegarmos, Cecília foi falar com tia Vera, e eu fui ver as crianças. Foi quando o vi.
João estava sentado na grama, brincando com uma das crianças. Meu coração deu um salto.
— Oi… — falei sorrindo, colocando uma mecha de cabelo atrás da orelha. — Está gostando daqui? — perguntei, fazendo carinho na criança ao seu lado.
— Sim… aqui é legal. — respondeu, forçando um sorriso.
— Que bom. Espero que dê tudo certo para você aqui. Agora eu preciso ir… — falei, me virando para sair.
— Espere… — ele disse, me fazendo parar. Virei-me, e vi que ele havia se levantado. — Você não me disse seu nome… — disse, me olhando nos olhos, e eu desviei o olhar rapidamente.
— Luana… mas pode me chamar de Lua. — respondi sorrindo antes de sair.
(...)
As semanas foram passando e João estava cada vez mais adaptado à ONG. Ele era prestativo, ajudava em tudo e era querido por todos. Mas continuava um mistério. Diferente dos outros, não falava sobre sua vida, sua família ou de onde veio.
Mas era educado, sabia ler e escrever perfeitamente, se comportava bem à mesa e tinha uma inteligência fora do comum. Certa vez, o vi ensinando as crianças a falar inglês; outra, espanhol. Era óbvio que teve educação e estudo, mas mesmo assim, estava ali, sem nada. Eu não conseguia entender.
Os dias passavam, e eu estava cada vez mais encantada por ele. Pode parecer loucura, mas eu estava apaixonada. Era estranho, pois nunca havia sentido isso antes.
Pouco a pouco, fui percebendo sua beleza física, que aparecia mais à medida que ele cuidava de si. Mesmo com a barba e o cabelo grandes, ele era lindo. E seus olhos… aqueles olhos azuis não transmitiam apenas tristeza, mas também a beleza de sua alma.
Era sábado à tarde e o vi sentado na grama, tomando sol. Criei coragem e me aproximei.
— Oi… posso sentar aqui? — perguntei em pé, olhando-o.
— Claro. — respondeu sorrindo, e me sentei ao seu lado.
— Na maioria das vezes que te encontro, você está aqui. — comentei, sorrindo.
— Esse lugar me traz paz… me lembra de um lugar onde vivi por muito tempo. — disse, pensativo, com tristeza no olhar.
Conversamos por um tempo sobre coisas simples, até que não aguentei mais minha curiosidade.
— Como você foi parar na rua? — perguntei, olhando-o.
— Eu perdi tudo. — respondeu de cabeça baixa.
— E sua família? — perguntei, suave.
— Não tenho mais ninguém. — disse seco, levantando-se rapidamente.
— João, espera… — falei, indo atrás dele.
Ele caminhou até um canto mais afastado, sob uma árvore. Me aproximei devagar.
— Desculpa… — falei, tocando seu rosto com delicadeza. — Eu não queria invadir sua privacidade, nem ser inconveniente.
Ele tirou minha mão do seu rosto, mas a segurou entre as dele, acariciando suavemente. Meu corpo inteiro arrepiou, meu coração disparou. Aos poucos, ele foi se aproximando, seus olhos dos meus...