Pouco depois de me deitar, senti dois braços fortes me envolverem pelas costas. Assustada, tentei me soltar. Mas o abraço só apertava mais.
Era Ícaro. Ele exalava cheiro de álcool e um perfume enjoativo, o mesmo que eu havia sentido em Ana. Só de lembrar, já me dava náusea.
Ele começou a gesticular, com um sorriso no rosto:
— Isadora, hoje foi sua festa de aniversário. Por que saiu sem cortar o bolo? Ficou chateada? Amanhã vou te levar pra ver a nossa nova casa. Comprei uma mansão pra você. Já está todo decorado. Assim que casarmos, nos mudamos pra lá.
Depois disso, tentou se aproximar para me beijar.
Virei o rosto, desviando.
— Você decide. Eu não quero ir. — Respondi, seca.
Ícaro, surpreso com minha frieza, fez sinal em libras:
— Isadora, você não quer mais se casar comigo?
Ali, diante daquele “presidente poderoso” que agora parecia um homem inseguro, quase frágil, por pouco eu não cedia. Se não fosse por tudo que eu ouvira. Se não fosse por saber que foi ele quem me condenou à cadeira de rodas.
A resposta estava presa na garganta.
“Sim, eu não quero mais me casar.”
Ele foi o primeiro me trair. Foi quem escolheu viver com a amante e me manter cega, surda e imóvel nessa mentira. Que direito tinha de me questionar agora?
Mas eu sabia que não era o momento de enfrentá-lo.
Com o poder que ele tinha em Cidade Luminaris, se eu revelasse tudo agora, talvez nem conseguisse sair viva da cidade.
Sob o olhar atento dele, suspirei fundo e fiz um gesto contido:
— Só estou com dor nas pernas. Podemos ir amanhã.
A mansão ficava ao lado do Parque Central, o metro quadrado mais caro da Cidade Luminaris.
Todo o projeto tinha sido assinado por um designer francês.
Cada canto da casa tinha acabamento arredondado, para evitar que eu me machucasse. As mesas, cadeiras e bancadas eram mais baixas do que o padrão, pensadas para facilitar o uso da cadeira de rodas.
Ícaro pensara em tudo para a minha “deficiência”. Menos em me ajudar a andar de novo.
Enquanto o designer me explicava cada detalhe, Ícaro traduzia tudo ao meu lado, com gestos suaves.
Sob os olhares cheios de inveja das pessoas ao redor, ele tocou meu ombro com carinho e disse sorrindo:
— Amor, gostou?
Olhei ao redor do cômodo à minha frente. Era inegável, aquele lugar correspondia exatamente ao que um dia eu havia sonhado como meu lar do futuro.
Na época em que namorávamos, eu disse a Ícaro que gostaria de ter uma casa com uma enorme janela de vidro. Sonhava em ficar ali, de frente para o jardim, vendo as tulipas florescerem.
E ele lembrava de cada detalhe. Fez questão de realizar tudo.
Mas Ícaro se esquecia de uma coisa essencial. Mesmo que fosse a casa perfeita, sem o amor dele, aquele lugar jamais seria um lar. Seria apenas um espaço vazio.
— Isadora, essa parede aqui eu deixei reservada pra ser nossa parede de fotos. Todo Natal, a gente vai tirar uma nova foto aqui, juntos, até ficarmos velhinhos. — Disse ele, cheio de ternura.
Olhei em seus olhos. E vi neles um amor que parecia real. Meu coração vacilou. Quase perguntei, em voz alta, por que ele me traiu.
Mas me contive. Respirei fundo e gesticulei:
— Esse amor vai mesmo durar pra sempre?
Ícaro respondeu num piscar de olhos, apressado, como se temesse que eu pudesse duvidar:
— Você é a mulher da minha vida. E eu vou te amar pra sempre.
Virei o rosto, sem querer ver a cara dele. A mesma que, sem pudor, tinha quebrado todas as promessas. A mesma que agora mentia com tanta facilidade.
Foi então que o celular dele tocou. Interrompeu a cena romântica. Ícaro atendeu sorrindo, mas nos olhos brilhou um desejo que eu conhecia bem.
— Calma. Vou satisfeitar minha querida agora. — Disse, num tom baixo e carregado de malícia.
Desligou, recompôs a postura e virou-se pra mim como se nada tivesse acontecido:
— Preciso ir ao escritório resolver uma urgência. Qualquer detalhe que quiser mudar, fala com o arquiteto. Tudo tem que ficar perfeito pra você.
Ele achava que eu não escutava. Por isso teve coragem de sussurrar palavras sujas pra Ana bem na minha frente.
Ri de mim mesma, sem humor. O designer perguntou se havia algo que eu gostaria de alterar. Neguei com um leve movimento de cabeça.
Pedi ao motorista que me levasse embora.
Não daria tempo de esperar pelas tulipas do jardim.
No dia do casamento, eu partiria. Quem estaria no altar seria apenas um corpo — idêntico ao meu.
E aquela casa, decorada com tanto esmero, nunca teria minha presença.