Acordar naquela manhã tinha sido uma luta. Meu corpo inteiro doía, como se os sonhos da noite anterior tivessem sido tão intensos que se transformaram em pesos sobre meus músculos. Tive sonhos lúcidos, vívidos demais, onde imagens de portas douradas, florestas antigas e vozes distantes assombravam minha mente. Mesmo acordada, essas memórias pairavam no ar como uma névoa persistente, tornando difícil separar o que era real do que era ilusão. Suspirei fundo, tentando espantar o cansaço. Hoje seria um dia movimentado, o chamado “encontro amigável” organizado pela realeza — mas todos sabiam que, na prática, tratava-se mais de um grande baile de exibição, um evento para selar alianças, impressionar convidados e, claro, manter as aparências impecáveis. Fui até a janela do quarto, afastando suavemente as cortinas. De onde eu estava, podia ver uma parte do jardim do castelo. Era um cenário de constante movimento: jardineiros carregavam vasos pesados, posicionando-os com precisão matemátic
Passamos a manhã e boa parte da tarde nos preparando para a tão esperada “pequena conversa” — um nome modesto para algo que, nitidamente, era muito mais grandioso do que se queria fazer parecer. Meu quarto se transformou num verdadeiro camarim improvisado: vestidos dispostos sobre a cama, acessórios espalhados em cima da penteadeira, perfumes e maquiagens misturados como uma paleta viva de intenções. Sentei-me diante do espelho, concentrando-me em meu reflexo. Caprichei no cabelo, como nunca antes. Trancei cada mecha com cuidado, deixando-as se entrelaçarem com delicadeza até formar um coque alto e firme, preso por pequenos grampos dourados. O penteado conferia-me uma postura elegante, e a visão me surpreendeu: havia em mim um traço de nobreza que até então desconhecia. Escolhi uma calça de tecido leve e macio, ajustada ao corpo de maneira que realçava minhas curvas sem ser excessiva. Ela era de um azul profundo, como o céu noturno sem estrelas. Para a parte superior, optei por uma
Pela primeira vez desde que chegamos ao jardim, avistei o rei de Heits. Ele estava em um dos pontos centrais da festa, uma figura imponente que parecia dominar o espaço ao seu redor sem esforço. Seus trajes, de um azul profundo bordado com fios dourados, reluziam sob as luzes penduradas entre as árvores, e mesmo entre tantos líderes poderosos, era impossível não notar sua presença. Observei em silêncio, notando o porte firme, o olhar aguçado, o modo como as pessoas se inclinavam levemente ao se dirigir a ele. O príncipe Noctis, sem dúvida, herdara essa mesma presença marcante, embora a juventude ainda emprestasse a ele um ar mais maleável, quase encantador. Mesmo assim, algo me incomodava. Desde que descemos para os jardins, senti os olhares pesando sobre nós. Era como se estivéssemos sob constante escrutínio, avaliadas a cada gesto, cada palavra, cada sorriso. A maioria das pessoas ali eram humanos — incluindo, claro, os anfitriões —, mas também havia representantes de outras raças
Depois de uns longos minutos esperando pelo príncipe Noctis, sentada sozinha àquela mesa isolada, senti a inquietação crescer dentro de mim como uma erva daninha. Meus olhos percorriam o jardim, tentando disfarçar o incômodo. Já era o bastante. Levantei-me com um suspiro, alisando a calça de tecido leve que usava, e comecei a caminhar sem rumo definido. Talvez uma volta pelo jardim acalmasse minha mente. O sol, em seu lento declínio, lançava uma luz dourada e quente sobre o jardim, tingindo as flores e árvores de tons alaranjados e púrpura. O perfume doce das pétalas recém-desabrochadas se espalhava no ar, misturando-se com o aroma sutil da grama cortada e da terra úmida. O ambiente parecia tranquilo, quase onírico, como se fosse um recanto separado do resto do mundo. Caminhei por entre os canteiros decorados, sentindo a brisa suave brincar com as mechas soltas do meu cabelo. Pequenas fadas-luz — insectoides encantados, comuns nos jardins mais antigos — flutuavam entre os arbustos,
De longe, o rei Lucius Castas de Heits observava a família Norton se afastando do jardim. Seus olhos, treinados e sagazes, captavam cada movimento, cada gesto tenso. Nada passava despercebido à sua percepção aguçada — o modo como Altair caminhava adiante das filhas, como sua mão direita, fechada em punho, vibrava discretamente de frustração. A maneira como Kaelara lançava olhares furtivos para trás, como se relutasse em partir. Lucius podia sentir a tempestade não dita que pairava sobre aquela família, mesmo sem ouvir uma única palavra. Ao seu lado, passos apressados soaram contra o solo de pedras lisas. O príncipe Noctis aproximava-se rapidamente, a expressão no rosto jovem uma mistura de confusão, irritação e, acima de tudo, incompreensão. — Pai — chamou ele, sua voz ansiosa quebrando o breve silêncio que pairava entre eles. Lucius não respondeu de imediato, preferindo manter os olhos fixos nas costas cada vez mais distantes dos Norton. O vento agitava as vestes cerimoniais do re
Do lado de fora, o vento fresco da noite começava a soprar pelos jardins do castelo de Heits, trazendo consigo o cheiro das flores e o murmúrio abafado da festa que ainda acontecia à distância. A claridade dourada do pôr do sol começava a desaparecer, dando lugar a tons azulados e violetas que pintavam o céu. Puxei minha capa mais para perto do corpo, sentindo o frio que não vinha apenas do clima, mas da confusão em meu coração. Olhei para minha irmã, sem conseguir mais suportar a incerteza que pairava no ar. — O que está acontecendo? — perguntei, minha voz carregada de preocupação e confusão. Annya suspirou profundamente, olhando para o portão por onde nosso pai havia desaparecido momentos antes. Seu rosto, normalmente tão calmo e sereno, estava tenso. — Irmãzinha — disse ela, num tom mais suave —, espere nosso pai voltar. Eu te conto tudo. Não quero falar sem ele aqui. Franzi o cenho, frustrada, mas assenti. Havia algo nos olhos de Annya que me dizia que o que estava por
Saí da sala particular sentindo que o peso do mundo havia sido jogado sobre meus ombros. As palavras do rei ainda ecoavam em minha mente como trovões distantes. Fergus Melius Drentis… Traidor. Não apenas um inimigo, mas alguém que havia destruído vidas através da traição mais desprezível. Cresci ouvindo histórias sobre os draconatos. Sempre os admirei — sua imponência, sua força, sua ancestralidade. Para mim, eram lendas vivas de honra e bravura. Agora, tudo isso parecia desmoronar como um castelo feito de areia. Segui atrás de meu pai e de Annya pelos corredores silenciosos do castelo. Meus passos eram mais lentos, como se eu carregasse correntes invisíveis amarradas aos pés. Não conseguia evitar: a admiração que um dia me encheu de orgulho agora pesava como desilusão em meu peito. O vento frio soprava através das janelas abertas, trazendo um cheiro de terra molhada e flores noturnas. Em outro momento, eu teria achado reconfortante. Agora, era apenas mais um lembrete de que o mu
Acordou sobressaltada. O despertador piscava inutilmente no criado-mudo, mudo como sua própria voz, quando percebeu que já passava das oito. O coração acelerou como se fosse sair do peito, e o primeiro pensamento foi uma enxurrada de palavrões abafados. O tempo estava contra ela.Pulou da cama, vestiu a primeira roupa que encontrou no cabide — uma camisa amassada e uma saia que não combinava com nada — e desceu as escadas do prédio tropeçando nos próprios sapatos. O céu estava fechado, carregado de nuvens densas como chumbo. Nem teve tempo de pegar o guarda-chuva. Quando colocou os pés na calçada, a tempestade caiu com uma fúria quase pessoal.As gotas batiam no rosto como pequenos tapas. O ônibus atrasou, o trânsito estava um caos e, a cada minuto, seu estômago reclamava pela ausência de café da manhã. Chegou à empresa encharcada dos cabelos às meias, sentindo a roupa colada ao corpo, a maquiagem derretida e os olhares curiosos dos colegas de trabalho que disfarçavam mal os sorrisos