Acordou sobressaltada. O despertador piscava inutilmente no criado-mudo, mudo como sua própria voz, quando percebeu que já passava das oito. O coração acelerou como se fosse sair do peito, e o primeiro pensamento foi uma enxurrada de palavrões abafados. O tempo estava contra ela.
Pulou da cama, vestiu a primeira roupa que encontrou no cabide — uma camisa amassada e uma saia que não combinava com nada — e desceu as escadas do prédio tropeçando nos próprios sapatos. O céu estava fechado, carregado de nuvens densas como chumbo. Nem teve tempo de pegar o guarda-chuva. Quando colocou os pés na calçada, a tempestade caiu com uma fúria quase pessoal. As gotas batiam no rosto como pequenos t***s. O ônibus atrasou, o trânsito estava um caos e, a cada minuto, seu estômago reclamava pela ausência de café da manhã. Chegou à empresa encharcada dos cabelos às meias, sentindo a roupa colada ao corpo, a maquiagem derretida e os olhares curiosos dos colegas de trabalho que disfarçavam mal os sorrisos debochados. — Que espetáculo — murmurou para si mesma, passando direto pela recepção, ignorando o espelho no hall de entrada. Na sua mesa, tentou respirar fundo e encontrar um momento de lucidez. Antes que pudesse sequer ligar o computador, ouviu a voz familiar — e nada amigável — do chefe ecoar pelo corredor. — Marina! Na minha sala. Agora! A voz de Augusto tinha o tom ríspido de quem se orgulhava da própria autoridade. Era o tipo de homem que se alimentava do controle, e fazia questão de lembrar a todos, todos os dias, quem mandava ali. Marina fechou os olhos por um segundo, como se pudesse invocar um campo de força invisível. Levantou-se e caminhou até a sala dele. — Bom dia, senhor Augusto — disse, com um sorriso tenso no rosto. Ele nem respondeu o cumprimento. Já estava de pé, com uma pasta na mão e o cenho franzido. — Você pode me explicar por que a nova escala de funcionários ainda não foi distribuída? — Escala? — Ela piscou, confusa. — Com todo respeito, senhor, essa tarefa geralmente é feita pela supervisão de RH. Eu sou secretária. A senhora Cláudia é que sempre lidou com… — Cláudia pediu afastamento esta semana. E eu achei que você tivesse capacidade de assumir responsabilidades maiores. Me enganei? Marina sentiu o estômago revirar. Não era a primeira vez que ele delegava tarefas além de suas funções formais, e não seria a última. Mas naquele dia, cansada, faminta e ainda molhada, sentiu que algo dentro dela estava prestes a se romper. — Não, senhor, você não se enganou. Mas eu não fui informada de que teria que assumir funções do RH, tampouco recebi instruções. Tenho tentado manter tudo em ordem, mas… — Mas? — ele a interrompeu, avançando um passo. — Está me dizendo que não consegue dar conta? Que se limita a bater ponto e passar café? Ela sentiu o sangue subir ao rosto. Não era só cansaço. Era humilhação. Era a pressão acumulada de meses de tarefas extras, plantões não pagos, reuniões que invadiam suas noites e fins de semana. Era a ausência de reconhecimento, o esforço invisível, o silêncio diante das agressões sutis. — O que estou tentando dizer, senhor Augusto — respondeu com a voz embargada —, é que estou sobrecarregada. E que não é razoável esperar que eu absorva o trabalho de outros setores sem suporte. Ele bufou, caminhando até a mesa e batendo com a palma aberta sobre ela. — Sabe o que eu vejo? Uma funcionária que se recusa a crescer, que se esconde atrás do crachá de “secretária” como se fosse uma proteção contra qualquer desafio. Se não está satisfeita, a porta é logo ali. O silêncio que se seguiu parecia ter peso físico. Marina sentiu como se não houvesse ar suficiente na sala. Suas mãos tremiam. — Estou cansada, senhor. Apenas cansada — disse por fim, antes de sair. Voltou para a própria mesa como uma sombra de si mesma. Os olhos dos colegas a seguiram em silêncio, mas ninguém ousou dizer nada. Não havia espaço para empatia naquele ambiente. Sentou-se. Olhou para a tela preta do computador. Os dedos pairaram sobre o teclado, sem tocá-lo. Foi então que veio a dor. Uma fisgada no peito. Súbita. A respiração encurtou, o mundo pareceu girar, mas sem pressa — como se tudo estivesse desacelerando. O som dos colegas se dissolvia. As luzes da sala perdiam nitidez. Era como se o tempo estivesse derretendo. Ela fechou os olhos, e quando os abriu de novo… não estava mais ali. ⸻ A luz era diferente. Era clara, mas não feria os olhos. Suave, cálida, como se viesse de dentro das coisas, e não do céu. Marina flutuava. Ou talvez estivesse apenas leve demais para sentir o chão sob os pés. Não havia mais chuva. Nem frio. Nem Augusto. O ar tinha cheiro de lavanda e terra molhada. Em sua frente, uma colina verde se estendia até o horizonte. E, acima, um céu dourado, como se o sol estivesse em todos os lugares ao mesmo tempo. Ela respirou fundo, pela primeira vez em muito tempo sem pressa, sem dor, sem urgência. — Onde estou? — perguntou em voz baixa. Uma mulher apareceu à sua frente, como surgida do próprio vento. Tinha olhos serenos e um sorriso acolhedor. Não parecia surpresa com a presença de Marina. — Você está em transição — disse. — Às vezes, o corpo cansa antes da alma. Às vezes, é preciso parar para entender o que realmente importa. Marina sentiu lágrimas escorrerem sem esforço. — Eu estava… exausta. Perdida. Sozinha. — Nós sabemos. E você não precisa mais carregar tudo sozinha. Aquela frase, tão simples, pareceu dissolver as últimas barreiras que ela mantinha dentro de si. Marina caiu de joelhos. Não de fraqueza, mas de alívio. — O que acontece agora? — Agora, você descansa. E depois escolhe. Você pode voltar, se quiser. Ou seguir. Mas o que quer que escolha, que seja por você. Ela fechou os olhos novamente. — Eu escolho seguir…A escuridão foi se afastando aos poucos, dissolvendo-se em ondas suaves de calor e luz tênue. Marina sentiu-se flutuar num espaço sem forma, como se estivesse sendo embalada por braços invisíveis. Não havia dor. Nem memória. Apenas um estranho vazio sendo preenchido por sensações novas: o toque de algo macio, um som agudo como o assobio do vento… e depois, o som mais intenso que já ouvira: o próprio choro. Era o seu primeiro respiro. Era o início. O mundo explodiu ao seu redor em cores suaves e sons abafados. As pálpebras minúsculas se abriram com esforço, revelando olhos ainda úmidos, perdidos em um brilho difuso. Tudo parecia tremular, como se o mundo estivesse sendo visto através de uma fina camada d’água. A claridade machucava, mas logo se tornava familiar. Sentia o corpo pequeno, frágil e molhado, os pulmões lutando por ar, as mãos se movendo involuntariamente. Foi quando sentiu algo a envolvendo com firmeza, mas também com carinho. Um par de mãos fortes, porém delicadas, a
Três anos haviam se passado desde o dia em que abri os olhos neste novo mundo — um mundo de céu aberto, ventos cantantes e criaturas magníficas de asas resplandecentes. Já não era uma recém-nascida confusa envolta em mantos e cantos estranhos. Agora, com três anos, eu havia me adaptado à vida entre as harpias. Aprender a falar a língua delas foi um desafio no começo. Suas palavras tinham sons sibilantes, agudos e notas guturais que pareciam imitar o próprio vento. Mas, como tudo que uma criança determinada deseja entender, aos poucos, cada som se tornava familiar, cada sílaba era domada com o tempo e a repetição. Muitas noites, eu adormecia com a boca ensaiando palavras novas, e nas manhãs seguintes, corria para testá-las com minha mãe. O nome dela era Jenevive Norton. Só de ouvi-lo, meu peito se aquecia. Jenevive era tudo o que eu admirava: forte como as raízes que sustentavam as plataformas da nossa cidade, e doce como o néctar das flores que pendiam dos galhos mais altos. Ela me
A dualidade entre as minhas memórias humanas e esta nova existência como harpia é um sussurro constante, às vezes doce, outras vezes brutal. É uma batalha silenciosa travada em mim desde os primeiros suspiros da infância, quando eu deveria apenas descobrir o mundo com a inocência de quem nunca viu além do presente. Mas eu me lembrava. Não com clareza, mas com a profundidade do que é sentido no peito. Recordações surgiam como relâmpagos em dias calmos — uma risada ao longe, um cheiro que não existia naquele mundo, o nome de alguém que eu nunca conhecera aqui. Fragmentos de uma vida anterior, humana, complexa. Fragmentos de mim mesma. Essas memórias humanas, tão intrusas e familiares ao mesmo tempo, me acompanharam enquanto eu crescia entre penhascos e nuvens. Eram como sombras projetadas na parede do novo mundo ao meu redor: um toque de saudade quando tudo parecia novo demais. Eu me via dividida, como se metade da minha alma pertencesse ao céu e a outra metade ao chão de uma terra q
Treze anos se passaram desde que minhas asas cortaram o céu pela primeira vez, desde que o mundo mágico das harpias se tornou meu lar. Hoje, aos dezesseis, atingi um marco que não é apenas simbólico — é visceral. O baile de debutante não celebra apenas a juventude, mas o despertar da identidade, da coragem e do futuro. E pela primeira vez, senti que deixava de ser a menina que sonhava com um passado esquecido, para me tornar uma jovem harpia com sede de tudo o que está por vir. A noite caiu serena sobre a montanha ancestral. As estrelas refletiam-se nas rochas polidas como espelhos celestiais, e lanternas flutuantes enchiam o céu com um brilho cálido, como se os próprios ancestrais estivessem nos observando, silenciosos e orgulhosos. O perfume de flores raras se misturava ao som de risos, música e asas que cortavam o ar suavemente. Era como se a cidade cantasse em uníssono, uma sinfonia de tradição e promessa. Estávamos todas adornadas em trajes sagrados, cada detalhe refletindo nos
Após quatro anos de árdua dedicação, suor e persistência, me tornei uma jovem harpia não apenas sábia, mas também habilidosa nas artes mágicas e na guerra. Quando olho para trás, vejo o quanto mudei — não apenas nas técnicas que dominei ou nos feitiços que hoje moldo com facilidade, mas na forma como enxergo a mim mesma e ao mundo ao meu redor. A magia do vento, que um dia me parecia indomável e imprevisível, tornou-se uma extensão natural do meu ser. Era como se as correntes de ar respondessem aos meus pensamentos antes mesmo de eu conjurar uma palavra. Essa sincronia impressionava meus professores, deixava meus colegas boquiabertos e, acima de tudo, fazia meu pai, um líder respeitado e treinado na arte da guerra, erguer os olhos com orgulho. Com o tempo, minha habilidade de manipular o vento deixou de ser apenas uma ferramenta. Ela se tornou minha linguagem, minha dança, meu vínculo com a natureza viva. Com um gesto, podia dobrar a direção de uma rajada. Com uma palavra, domava te
A chegada da carta foi como um sussurro de destino, um fio invisível puxando-nos em direção ao desconhecido. Era uma manhã comum, o sol ainda lutava para se erguer por entre as nuvens pesadas do início da primavera. Mas a normalidade foi quebrada pelo bater de asas suaves — um som quase mágico, que fez com que todos ao redor levantassem os olhos em uníssono. O pássaro, de penas azuis iridescentes e olhos de um dourado vívido, pousou com uma graça quase ensaiada diante de meu pai, no parapeito da varanda. Carregava presa às patas uma carta selada com cera vermelha, marcada com o brasão real de Heits: um falcão envolto por espadas cruzadas e uma estrela prateada. O silêncio reinou enquanto meu pai cuidadosamente removia o lacre. Eu sentia meu coração acelerar, um misto de expectativa e reverência percorrendo meu corpo. O cheiro do papel envelhecido misturado ao perfume das penas do pássaro criava uma aura misteriosa ao redor daquele momento. Mesmo antes de ler, sabíamos: aquilo não er
A manhã se anunciava tranquila, com o cheiro da terra molhada ainda suspenso no ar após a fina garoa da madrugada. Depois de concluir as tarefas com os ajudantes da casa e verificar as anotações de nossos estudos mágicos, decidi aproveitar o sol que surgia entre as nuvens para ir ao jardim com Annya. Ela sempre preferia as primeiras horas do dia para cuidar das plantas. Dizia que era quando elas estavam mais receptivas à magia e às palavras. Caminhávamos entre os canteiros floridos, os pés tocando a relva macia enquanto o vento gentil balançava os galhos das amoreiras. – Esta flor amarela aqui… – disse ela, com aquele brilho nos olhos que surgia sempre que falava de ervas medicinais. – Chama-se Sulyia. Cresce apenas nas encostas voltadas para o norte e só floresce sob a luz da lua cheia. É ótima para tratar febres, e quando combinada com folha de Tenebril, pode até desacelerar venenos… Ela foi interrompida subitamente por um som. Não, não apenas um som — um grito agudo, metálico
Ele era negro como a noite, com linhas prateadas esculpidas em sua superfície, formando runas que pareciam dançar suavemente, pulsando com a mesma energia do feixe. Tinha pelo menos vinte metros de altura, cravado no chão como uma lança divina. – Parece a Bifrost… – murmurei, mais para mim mesma do que para os outros. Mas era diferente. A Bifrost era a ponte das divindades, um elo entre mundos. Aquilo parecia uma chave. Uma fenda. Um aviso Minha primeira reação foi me aproximar, quase em transe. Mas a mão de meu pai me deteve no ombro. – Espere – disse ele, com a voz baixa, mas firme. Ele desceu lentamente até o chão, os pés tocando a grama queimada ao redor do obelisco. Uma fumaça branca e tênue ainda se erguia das bordas da cratera onde a estrutura se fixara. As runas prateadas piscaram uma última vez… e se apagaram. Então algo aconteceu. Uma figura surgiu de dentro da névoa, emergindo do lado oposto do obelisco. Era uma mulher. Ou, ao menos, parecia ser. Seus ca