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4. Ainda há memórias.

A dualidade entre as minhas memórias humanas e esta nova existência como harpia é um sussurro constante, às vezes doce, outras vezes brutal. É uma batalha silenciosa travada em mim desde os primeiros suspiros da infância, quando eu deveria apenas descobrir o mundo com a inocência de quem nunca viu além do presente.

Mas eu me lembrava.

Não com clareza, mas com a profundidade do que é sentido no peito. Recordações surgiam como relâmpagos em dias calmos — uma risada ao longe, um cheiro que não existia naquele mundo, o nome de alguém que eu nunca conhecera aqui. Fragmentos de uma vida anterior, humana, complexa. Fragmentos de mim mesma.

Essas memórias humanas, tão intrusas e familiares ao mesmo tempo, me acompanharam enquanto eu crescia entre penhascos e nuvens. Eram como sombras projetadas na parede do novo mundo ao meu redor: um toque de saudade quando tudo parecia novo demais. Eu me via dividida, como se metade da minha alma pertencesse ao céu e a outra metade ao chão de uma terra que não existia mais.

Ser harpia era sublime. Sentir o vento cortar entre as penas das asas, ouvir os cantos ancestrais ecoando entre os picos, viver em harmonia com os ciclos da natureza… havia beleza, liberdade e propósito. Mas mesmo essa liberdade podia se tornar uma prisão quando o coração se recusava a esquecer.

Enquanto outras crianças aladas aprendiam a planar rindo com a confiança de quem só conheceu o agora, eu hesitava. Meus pés tocavam a borda dos abismos, minhas asas se abriam com cautela, mas meus olhos se voltavam para dentro. Para rostos que eu ainda podia amar, mesmo sem lembrar seus nomes.

E me perguntava: por que eu? Por que ainda me lembro?

Essas perguntas ecoavam como trovões abafados. O que essas lembranças querem de mim? São vestígios de algo que fui ou sementes do que ainda posso ser?

Havia dias em que me sentia completamente deslocada — como uma intrusa na pele de uma criatura mágica. As outras harpias sorriam com naturalidade, viviam com propósito. Já eu… observava, imitava, aprendia… mas sempre havia uma lacuna, um silêncio profundo dentro de mim.

Minha mãe, Jenevive, notava. Seus olhos me viam de verdade, mesmo quando eu tentava esconder. Às vezes, ela me encontrava sentada sozinha nos galhos mais altos, com o olhar perdido entre as estrelas. Aproximava-se em silêncio, sem exigir explicações.

— Algumas almas carregam mais do que lembranças — ela sussurrou uma vez, deitando suas asas sobre as minhas como um manto quente. — Elas carregam histórias. E isso, minha pequena, é um dom. Mesmo quando parece uma maldição.

Abracei aquelas palavras como se fossem cordas segurando meu coração despedaçado.

Talvez, com o tempo, essa dor deixe de ser uma divisão. Talvez as memórias humanas me ensinem a ver este mundo com outros olhos — olhos que sabem o valor da paz porque já conheceram a guerra. Talvez eu esteja aqui justamente para unir o que antes era separado.

Ainda não encontrei todas as respostas. Mas sei que esta travessia — entre o que fui e o que sou — está me moldando. Não como uma ruptura, mas como uma ponte.

Uma ponte entre mundos.

Entre o céu e a terra.

Entre a memória e o agora.

Entre o que eu era… e o que ainda posso me tornar.

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