JÚLIA MONTENEGRO NARRANDO.
Meus olhos ainda ardiam. O vinho pesava no estômago e a dor latejava como um machucado recente que não para de sangrar. Estava sentada no chão da sala, encostada no sofá, com a garrafa quase vazia ao meu lado. A nova chave da porta descansava sobre a mesa de centro, como um símbolo silencioso de um novo começo que eu ainda não sabia por onde começar. Foi então que o celular vibrou ao meu lado, interrompendo meu mergulho silencioso na dor. A tela iluminada piscava com um nome que me apertou o peito na mesma hora: Mãe. Engoli seco. A lembrança da manhã invadiu minha mente como um soco. Ela tinha consulta com o cardiologista. Um exame que vinha adiando há semanas, talvez meses. É só uma consulta, filha, ela disse quando me ligou mais cedo, com aquele tom tranquilo que ela sempre usava para esconder qualquer coisa que pudesse me preocupar. Limpei o rosto rapidamente com a manga da blusa. Tentei limpar os traços de choro, endireitei a voz, como se isso fosse suficiente para enganar a mulher que me conhece melhor do que eu mesma. Atendi. — Alô? — minha voz saiu rouca, mas firme. Do outro lado, silêncio. E então, um som que me gelou o sangue: choro. Baixo, contido, mas devastador. — Mãe? — me endireitei no mesmo instante. — Mãe, o que foi? Por que você tá chorando? Ela tentou responder, mas a voz falhou. Eu conhecia minha mãe como ninguém. Amélia Montenegro não era de chorar. Ela era feita de aço, criada na marra, uma mulher que encarava a vida como uma guerra e vencia as batalhas no peito. — Fala comigo, pelo amor de Deus — insisti, o coração disparado. — O que aconteceu? — Júlia… — ela disse, entre soluços. — Era hoje… o médico… aquele que eu falei de manhã. Eu já sabia. Era sobre os exames. — Mãe, fala logo. Você tá me matando de susto. — Deu ruim, filha… — a voz dela quebrou de vez. — O exame… apareceu um sarcoma. De alto grau. No coração. — O quê? — minha voz saiu num sussurro, como se meu cérebro tivesse travado. — Sarcoma, Júlia. É câncer, minha filha. Eu tô morrendo. O mundo girou. Literalmente. Me apoiei no sofá, senti a taça escorregar da minha mão e se espatifar no chão. Mil pedaços. Como meu coração. — Não, não, mãe. Isso deve estar errado. Esses exames… eles erram. Vamos procurar outro médico, um segundo diagnóstico, alguma coisa! Isso não pode estar acontecendo! — Eu confio no doutor Hélio — ela disse, com aquela calma que me cortava ainda mais. — Amanhã ele vai me encaminhar pra um oncologista. A gente vai conversar melhor. Entender o que dá pra fazer… — Eu vou com você. Óbvio que vou. Me diz a hora. Onde é. — Você tem sua vida, filha. Eu sei que não é fácil, você já tem seus problemas… — Para! — gritei, sentindo as lágrimas voltarem com força. — Nada, nada nesse mundo é mais importante que você. Entendeu? Me diz o lugar. E a hora. — O consultório é no Centro Médico Hudson, às oito da manhã. Eu espero você lá. — Eu vou estar, mãe. Prometo. Antes das oito, eu tô lá. Ela respirou fundo do outro lado. — Te amo, minha filha. — Eu também, mãe. Muito. Mais do que tudo. Vai dar certo. Vai dar certo, tá? Desliguei antes que ela ouvisse o soluço engasgado que me escapou. O celular caiu da minha mão. De novo, sentei no chão. E dessa vez, não havia mais força nem para chorar. Como isso estava acontecendo? Tudo de uma vez. O Fernando. A Carolina. Agora minha mãe. O mundo parecia ter entrado em colapso e jogado todo o entulho em cima de mim. Olhei ao redor da sala. Os cacos da taça. A garrafa vazia. A nova fechadura. A dor latejando no peito. Peguei o celular e, com os dedos trêmulos, abri a conversa com Kristen, minha chefe. Escrevi a mensagem devagar, mas com firmeza: Kristen, desculpa avisar em cima da hora, mas amanhã não vou conseguir ir trabalhar pela manhã. Preciso acompanhar minha mãe ao médico. É importante. Li três vezes antes de enviar. Não importava se ela ia gostar ou não. Não importava mais nada. Levantei com esforço. O corpo já estava mole. Peguei um calmante na farmacinha do banheiro e engoli com o resto de vinho que sobrou na garrafa. Queria dormir. Fugir da realidade, pelo menos por algumas horas. Deitei na cama sem trocar de roupa, sem escovar os dentes, sem apagar as luzes. Enfiei o rosto no travesseiro e deixei a mente vagar num turbilhão de pensamentos. Meus olhos pesaram. O calmante fez efeito rápido. Tudo escureceu. Mas a paz não durou. O celular começou a tocar, insistente, às cinco da manhã. Abri os olhos num sobressalto. O quarto ainda estava escuro, o céu do lado de fora num azul profundo de madrugada. Peguei o celular com a mão trêmula. Número desconhecido. O coração acelerou. Atendi. — Alô? Continua…