Mundo de ficçãoIniciar sessãoA vida às vezes muda de lugar sem pedir permissão.
Num dia você está fugindo às pressas, com a mala pesando mais nas memórias do que nas roupas… E no outro, está sentada num quarto emprestado em Londres, tentando aprender a respirar de novo. Eu ainda estava nesse processo. Respirar. Viver. Entender quem eu era sem medo. Karina insistia que eu estava indo bem, mas eu não acreditava muito. O inglês tropeçava na minha boca, minhas mãos suavam cada vez que alguém falava rápido demais, e o café onde eu trabalhava era… bom. Apenas isso. Bom. O problema é que “bom” não paga aluguel em Londres. E meu salário, por melhor que fosse para um começo, era quase simbólico. Naquela tarde, eu estava lavando algumas xícaras quando Karina entrou pela porta dos fundos, ofegante, como se tivesse corrido uma maratona. Os olhos dela brilhavam daquele jeito que só brilhavam quando ela tinha uma notícia bombástica. — Ju, você precisa sentar. Agora. — Meu Deus… aconteceu alguma coisa? — coloquei as xícaras de lado. — Aconteceu sim. Mas é coisa boa. Melhor do que boa. É perfeita. Eu pisquei, confusa. — Karina, eu não tô pronta para coisas perfeitas. Ela riu. — Vai ter que estar. Porque eu acabei de conseguir uma indicação para uma vaga de babá. E não é qualquer vaga. É a vaga. Meu coração deu um salto esquisito. — Babá? Aqui em Londres? — Sim. — Ela segurou meus braços, vibrando de animação. — É para cuidar de um menino de cinco anos. Bem pago. Muito bem pago. E o melhor: você vai morar na casa. Não vai precisar se preocupar com aluguel, transporte, nada disso. É a sua chance de começar de verdade, Ju. Eu senti o peito apertar. Morar na casa. Dormir no trabalho. Cuidar de uma criança numa língua que eu ainda não dominava. — Eu… não sei se consigo, Ká. Eu mal entendo o que falam no balcão do café. Como vou cuidar de uma criança inglesa? — engoli seco. — E se eu errar? E se eu falar tudo errado? — Ei. — Ela segurou meu rosto com carinho. — Você é professora, pedagoga, tem coração enorme. E, Ju… você precisa disso. Você sabe que não vai conseguir trabalho em escola nem tão cedo. Suas validações ainda vão demorar meses. O café te paga pouco, você sai exausta e ainda volta pra casa tarde. Isso aqui é a chance que o universo tá te dando. Ela me abraçou, forte. Eu senti, por alguns instantes, aquele mesmo conforto que sentia quando minha mãe arrumava meus cabelos antes da escola. — E tem mais — Karina continuou, ajeitando meu casaco. — O amigo da Miranda é sério. Ele precisa urgente de alguém. A babá anterior desistiu hoje de manhã. Parece que o menino é… difícil. Meu estômago virou um nó. — Difícil como? — Só… difícil. — Ela deu um sorriso que não me convenceu. — Mas nada que você não aguente. Você já passou por coisa pior. Eu ri baixinho, sem humor. Sim. Já tinha passado mesmo. Karina respirou fundo, medindo minhas reações. — A entrevista é amanhã cedo. Você só precisa ir. Se eles gostarem de você… Ju, sua vida muda. Minha vida. Mudar. De novo. Mas dessa vez, talvez para melhor. Ajeitei minha bolsa, limpando as mãos no avental. O café barulhava atrás de mim — pratos, conversas, o cheiro de pão assando — tudo muito real, muito presente. Mas nada disso era um futuro. Era apenas sobrevivência. E eu queria… viver. — Tá. — sussurrei, antes que o medo me impedisse. — Eu vou. Karina sorriu tão grande que quase chorou. — Sabia! Você não faz ideia do quanto isso é perfeito pra você. Eu também não fazia. Mas enquanto caminhava para casa naquele frio cortante de Londres, com meu inglês inseguro e meu passado ainda doendo… senti uma coisa que fazia tempo que eu não sentia. Esperança. Uma esperança tímida. Medrosa. Mas viva. E às vezes, isso já é o suficiente para começar de novo. O despertador tocou às seis da manhã, mesmo que eu quase não tivesse dormido. A cada vez que fechava os olhos, imaginava a entrevista. Imaginava a casa. A criança. E o chefe — o tal pai — que, segundo Karina, “não era muito simpático”. Respirei fundo. — Só uma entrevista, Juliana. Só uma entrevista — murmurei para mim mesma. Levantei devagar, tentando não acordar Karina, que ainda dormia no outro quarto. O flat era pequeno, mas aconchegante; ela fazia de tudo para que eu me sentisse segura ali. E hoje, mais do que nunca, eu precisava dessa segurança. Vesti a calça preta mais arrumadinha que eu tinha, uma blusa clara e um casaco simples. Prendi o cabelo num rabo de cavalo baixo — discreto, certinho, do jeito que sempre me ensinaram a parecer “menos chamativa”. Olhei meu reflexo no espelho. Eu parecia nervosa. Assustada. Mas… determinada. Desci para a cozinha em silêncio, preparei um café forte e uma torrada. Minhas mãos tremiam levemente enquanto seguravam a xícara. — Tudo vai dar certo — sussurrei, como se meu coração fosse acreditar. Peguei minha mochila, coloquei a carta de recomendação que Karina tinha impresso para mim, e respirei fundo uma última vez antes de sair. O ar frio de Londres bateu no meu rosto como um alerta. Despertei de verdade. Meu celular vibrou. Karina: “Boa sorte, Ju! Você vai arrasar. Me avisa quando chegar.” Sorri — pequena, mas sincera — e comecei a caminhar até o ponto de ônibus. As ruas estavam acordando aos poucos. Céu cinza. Som de pneus molhados no asfalto. Luzes refletindo nas poças de chuva. Tudo tão diferente do interior do Rio… tão distante do mundo que deixei para trás. Enquanto o ônibus balançava, meu inglês mental tentava se organizar: Good morning. I’m Juliana. Nice to meet you. I… take care… of the child… Meu Deus. Eu ia travar. Com certeza eu ia travar. Apertei a alça da bolsa e respirei fundo. Era só uma entrevista. Mas, ao mesmo tempo, era mais do que isso. Era a chance que eu precisava para finalmente recomeçar — de verdade. Quando desci perto do endereço que Karina mandou, minhas pernas ficaram bambas.






