Mundo ficciónIniciar sesiónJuliana Bezerra
Acordei com um cheiro maravilhoso de café invadindo o quarto. Por um momento, nem sabia onde estava… até ver a janela alta iluminada pela luz fria de Londres. Suspirei fundo. Era real. Eu estava mesmo ali. — Bom dia, dorminhoca. ouvi a voz da Karina, suave, divertida. Virei o rosto e ela já estava puxando as cortinas, deixando a claridade entrar. — Karina… você acorda cedo demais. murmurei, ainda enrolada no cobertor. — Aqui o dia começa cedo, amor. Vai se acostumando. Me levantei, espreguicei e segui o cheiro delicioso até a cozinha. Quase caí para trás quando vi a mesa: torradas, ovos mexidos cremosos, cogumelos salteados, tomate assado, linguiçinhas, geleias, chá… e até croissants. — Você fez tudo isso? perguntei, impressionada. — Claro. É seu primeiro dia aqui. Eu queria que fosse especial. Sentei, e nós duas começamos a comer enquanto ela me contava histórias do bairro, me olhando com aquele cuidado que só ela tem. Cada detalhe da mesa parecia pensado para me acolher. Quando terminamos, ela levantou animada, pegou a bolsa e abriu um sorriso. — Vamos? Quero te mostrar o bairro. — Agora? ri. — Eu mal terminei de comer. — Depois do café a gente caminha. É assim mesmo aqui. Ajuda a esquentar o corpo. Peguei meu casaco e saímos juntas. A brisa fria bateu no meu rosto, arrepiando meus braços. As ruas eram tão charmosas que parecia cenário de filme: casas de tijolinhos, portas coloridas, jardins recortados, flores mesmo no frio. Karina apontava tudo, sempre devagar, sempre no meu ritmo: — Ali tem uma livraria que você vai amar. Naquela padaria da esquina, tem o melhor bolo de limão da região. E lá na frente fica o parque onde eu corria quando cheguei. Eu absorvia tudo com os olhos brilhando. Era tanta coisa nova, tanta coisa linda… parecia que o mundo tinha aberto uma porta só para mim. — Karina, eu adorei isso aqui. confessei. Ela sorriu daquele jeito que me desmonta. — Calma. É só o começo, tá? Vamos devagar. Tudo vai se ajustar… você vai ver. E você não tá sozinha. Você tem a mim. Continuamos caminhando lado a lado, enquanto Londres despertava ao nosso redor Quando voltamos para casa, eu sentia as pernas até um pouco cansadas, mas o coração… leve. Londres parecia grande demais, mas eu me surpreendia por estar conseguindo respirar ali. Karina abriu a porta, tirou o casaco e jogou a bolsa no sofá. Eu fiquei parada no meio da sala, enrolando os dedos um no outro, até criar coragem. — Karina… chamei baixinho. Ela virou para mim, já percebendo meu tom. — O que foi, Ju? Respirei fundo. — Eu preciso começar a aprender o idioma. falei de uma vez. — Eu quero trabalhar. Não posso ficar dependendo de você pra tudo. Você já tem suas despesas… e eu não quero ser um encosto na sua vida. Ela franziu o cenho na hora. — Um encosto, Ju? repetiu, como se a palavra fosse absurda demais pra existir. — É o que eu sou agora. admiti, com a voz falhando. — Eu estou morando aqui, usando sua comida, sua casa… e não posso te ajudar com nada. Não falo a língua, não sei nem pedir um café sozinha. Eu preciso aprender. Preciso fazer alguma coisa… Karina se aproximou, segurou meu rosto entre as mãos e me obrigou a olhar dentro dos olhos dela. — Você não é um encosto. Nunca fale isso de novo. Engoli em seco. — Mas eu… — Você está recomeçando. ela me interrompeu, firme. — E recomeços são assim mesmo: frágeis, bagunçados, cheios de medo. Eu não te trouxe pra cá pra você se sentir um peso. Eu te trouxe porque eu te amo. Porque você é minha amiga. Porque eu não ia deixar você ficar naquele inferno. Uma lágrima escorreu antes que eu percebesse. Karina secou com o polegar. — E sobre aprender o idioma… relaxa. A gente vai cuidar disso. ela sorriu. — Eu vou te matricular num curso básico aqui perto. Você vai começar a pegar o jeito rápido, eu sei. Inteligente você é. Só precisa de tempo, Ju. E de carinho. — Eu prometo que vou trabalhar assim que puder. — sussurrei. — Eu sei. Mas até lá… deixa eu cuidar de você um pouquinho, tá? Abaixei a cabeça e assenti. No fundo, era tudo o que eu precisava ouvir. Karina me puxou para um abraço apertado. Seis meses. Nunca pensei que pudesse falar isso com orgulho… mas, sim, já se passaram seis meses desde que cheguei em Londres. Seis meses desde que acordei com medo todos os dias. Seis meses desde que aprendi a respirar de novo. E agora… minha rotina é outra. Acordo com o cheiro de café passando na cozinha. Não mais de terror. Não mais de sangue quente descendo pelo nariz. Agora é só… vida. Karina sempre levanta primeiro hábito de enfermeira. Eu levanto logo depois, visto meu uniforme preto do café e amarro meu cabelo em um coque apressado, prendendo as mechas rebeldes que insistem em cair no rosto. Saio de casa e caminho pelas ruas tranquilas de Greenwich, que agora parecem tão minhas quanto as calçadas da minha infância. As árvores, o vento frio, o Tâmisa lá ao fundo… tudo ganhou um novo significado. E eu também. Trabalho em um café pequenininho, charmoso, com cheiro constante de pão quente e música fraquinha tocando no fundo. Fica a apenas vinte minutos da casa da Karina. Caminho gostoso. Seguro. Meu refúgio. Quando empurro a porta de vidro, o sininho toca — um som que eu já aprendi a amar. — Good morning, Juliana! Henry sorri de trás do balcão. Ele é meu chefe. Cinquenta e poucos anos. Gentil. Paciente. Foi um anjo quando eu disse que ainda não sabia falar inglês perfeitamente. — Good morning! respondo com meu sotaque carregado, mas sem vergonha nenhuma. Aprendi muito nesses meses. Ainda erro um monte, claro. Mas já consigo conversar com os clientes, entender pedidos, fazer piada. E, acima de tudo: já não fico apavorada quando alguém fala rápido demais. As primeiras horas da manhã sempre são mais corridas. Trabalho com as mãos ágeis, preparando cafés, anotando pedidos, entregando bolos. E tudo isso enquanto observo as pessoas. Eu gosto disso: observar. Ver vidas diferentes se cruzando. Histórias que não são as minhas. Às vezes, penso no passado. No que deixei. Mas o barulho da máquina de café me traz de volta. Sempre traz. — Ju, break! Go eat something! Henry grita do fundo. Eu rio, pego meu sanduíche e vou para o cantinho dos funcionários. Sentada ali, olhando pela janelinha para a rua, percebo o quanto minha vida mudou. O quanto eu mudei. Eu não sou mais a mulher que chegou aqui tremendo, com medo até da própria sombra. Eu ainda tenho cicatrizes. Ainda tenho pesadelos às vezes. Mas… agora eu existo. Agora eu vivo. E enquanto bebo meu café com leite, penso que… talvez… já esteja pronta para o próximo passo. Seja lá qual for.






