Cinco anos se passaram.
O tempo não apagou as cicatrizes, apenas as escondeu sob a maquiagem e a força que Amara aprendeu a carregar no olhar.
No bar Eton, no último andar de um prédio luxuoso, ela tentava se recompor. A cabeça latejava depois de horas acompanhando investidores entediantes em sorrisos forçados e taças cheias. Procurava um canto calmo onde pudesse respirar. Encontrou um corredor isolado, e ali, recostada na parede, deixou os ombros afrouxarem pela primeira vez naquela noite.
Mas a trégua não durou muito.
Os passos determinados de Pillar, sua empresária, ecoaram pelo chão de mármore até alcançá-la. O salto fino parecia anunciar conflito.
— O que você quer, Pillar? — Amara perguntou, sem esconder o cansaço na voz.
— Vou ser direta — começou Pillar, os braços cruzados como de costume. — Você se inscreveu para o teste do papel principal em Se Amar nas Estrelas?
Amara arqueou uma sobrancelha.
— Sim. E daí?
— Você não tem permissão para ir amanhã! — disparou Pillar.
Amara soltou um sorriso pequeno, sem surpresa.
— E por qual motivo?
— Você agiu pelas minhas costas! Como sua empresária, eu já havia providenciado para que Melissa fizesse esse teste.
— Isso não me impede de tentar. — Ela se endireitou, apoiando-se casualmente na parede. — Ou Melissa está com medo que uma atriz de menor expressão como eu roube o papel dela?
Pillar bufou com desprezo.
— Você acha mesmo que pode roubar esse papel da Melissa? Acorda, Amara! A família dela investiu trinta milhões nesse filme. O papel já é dela!
— Então por que tanto alarde? — rebateu, os olhos afiados como navalha.
— Porque você é minha artista! E tem que seguir meus arranjos!
— Engraçado... você ainda lembra que sou sua artista?
O sarcasmo na voz de Amara cortou o ar como um tapa.
Pillar respirou fundo, irritada.
— Já que você insiste em desobedecer, não me culpe se eu precisar tomar medidas mais drásticas...
Antes que Amara pudesse reagir, Pillar a empurrou com força para dentro de uma porta lateral. Com um estrondo metálico, ela se viu trancada num depósito escuro. O celular foi arrancado de sua mão antes que tivesse qualquer chance de socorro.
Trancada. Sozinha. Mais uma vez.
Ela escorregou até o chão, tentando controlar a respiração. Não valia a pena gritar. Aquele era o tipo de humilhação que já começava a se tornar comum. Desde que assinara com a Stellar Entertainment, Melissa fazia de tudo para sabotar sua carreira. No início, eram papéis apagados. Agora, era sabotagem descarada.
“Se eu perder esse teste... é o fim da linha”, pensou, com os punhos cerrados.
Foi então que um som suave chamou sua atenção. Um ruído insistente, como algo se movendo entre as caixas.
— Um rato? — murmurou, franzindo o cenho.
Mas ao se virar na direção do som, seu coração deu um salto.
Entre pilhas de caixas e sombras, havia uma criança.
Um garotinho de uns quatro, talvez cinco anos. A pele clara, quase translúcida, lembrava jade polida. Mas o que mais chamava atenção eram os olhos — grandes, atentos, assustados.
— O que...?
Ela piscou várias vezes, sem acreditar. Que tipo de adulto deixaria uma criança trancada num lugar como aquele?
— Ei, pequeno... quem é você? Como veio parar aqui?
Nenhuma resposta.
— Entrou escondido? Ou também foi preso aqui?
O menino recuou, como se esperasse um castigo.
— Você gosta de doces?
Nada. Apenas os ombros tremendo, como uma folha ao vento.
Amara suspirou. Sentou-se no canto oposto do depósito, observando a criança de longe. Estava exausta. Seu corpo pedia por descanso, e a cabeça latejava com as lembranças e a tensão daquela noite.
A lâmpada acima piscou, ameaçando apagar — e então, com um estalo, mergulhou tudo em escuridão.
Ela ouviu o som nítido de dentes batendo.
— Está com medo do escuro?
O barulho cessou por um instante... e depois voltou, mais intenso.
Amara se levantou devagar, sem fazer movimentos bruscos.
— Você é mesmo um garotinho assustado, hein?
Aos poucos, foi se aproximando. Algo naquele menino a inquietava — não era só pena, era algo mais profundo. Como se o destino tivesse jogado aquela criança no seu caminho com um propósito.
Ela se sentou ao lado dele, sem dizer mais nada.
Silêncio.
Cansada, encostou a cabeça na parede. A noite havia sido um inferno. Depois de aguentar horas de bajulação a investidores e, agora, ser trancada num depósito por sua própria empresária... tudo o que ela queria era cinco minutos de paz.
Fechou os olhos.
Quando despertou, a lâmpada ainda apagada e o silêncio absoluto.
Mas algo quente tocava sua perna.
Ao olhar para baixo, viu o garotinho aninhado ao seu lado, dormindo, com a mãozinha segurando um pedaço de sua blusa, como se agarrasse segurança.
Amara sentiu o coração apertar de leve. Um sorriso brotou sem que ela percebesse.
Havia ternura ali. E também um segredo.
Por um instante, Amara foi levada de volta aos campos tranquilos da infância. Lembrou-se de um coelhinho que criara. Era arisco, fugia ao menor movimento, mas quando se sentia seguro, vinha de mansinho, deitava-se ao lado dela... e dormia no seu colo.
Aquele garotinho à sua frente era igual.
Quando percebeu que Amara o observava, ele ficou vermelho como um tomate. Mas o medo que antes tomava seus olhos deu lugar a uma tímida curiosidade.
— Você é mesmo como um coelho assustado — disse ela em voz baixa, com um sorriso doce nos lábios.
Com delicadeza, estendeu a mão e passou os dedos pela cabeça do menino. Seus cabelos eram macios, desajeitados. Mas o que realmente a preocupou foi o calor que sentiu ao tocá-lo.
A testa dele estava em brasa.
— Você está com febre!
O choque percorreu seu corpo como um raio. Pillar queria mantê-la ali até o fim do dia seguinte, tempo suficiente para ela perder o teste de elenco. Mas se aquele garotinho ficasse preso ali, febril, por tanto tempo... poderia ser perigoso. Mortal, até.
Amara olhou ao redor, procurando uma saída. E então viu: um feixe fraco de luz atravessava o teto, vindo de uma pequena claraboia. Era estreita, mas talvez... fosse sua única chance.
Determinada, arrastou uma escada velha até o centro da sala.
— Coelhinho — chamou, tentando ser gentil — venha cá. Eu vou te ajudar a sair.
O menino hesitou. Balançou a cabeça, recusando. Seu olhar era firme, apesar da idade.
Amara sorriu. Entendeu.
— Você é leal, não é? Quer ficar aqui comigo, mesmo doente?
Ela se agachou e beliscou levemente as bochechas dele.
— Mas escute... essa janela é pequena demais pra mim. Se você sair primeiro, pode buscar ajuda. Pode me salvar.
O garotinho olhou para a escada como se ela fosse um monstro de aço. Tremia dos pés à cabeça. Mas não disse nada.
Sem dar mais tempo para hesitações, Amara o ergueu e o colocou no primeiro degrau.
— Seja corajoso agora, coelhinho. Suba. Eu estarei aqui, te protegendo.
Com passos lentos e incertos, ele começou a subir. Quando finalmente desapareceu pela abertura da claraboia, Amara sentiu um alívio rasgar o peito.
Mas seu corpo já não obedecia. Ao tentar se manter de pé, as pernas fraquejaram. Caiu da escada com um baque seco, os ombros batendo forte no chão frio.
O menino olhou para trás, os olhinhos agora cheios de lágrimas.
— Vá... — sussurrou Amara, sua voz fraca como o vento.
A claridade da noite escorria pelo teto, tocando seu rosto pálido. Era uma luz suave, quase sagrada, que iluminava seus traços com uma beleza melancólica. Seus olhos — mesmo à beira da inconsciência — pareciam guardar um oceano de segredos.
Ela sorriu. Um sorriso amargo, mas verdadeiro.
— Se eu morrer aqui... pelo menos fiz algo bom...
E então vieram as memórias.
Cinco anos atrás, depois do acidente de carro, a família Baki a descartou como quem se livra de um fardo. Mandaram-na para uma universidade nos Estados Unidos, um lugar que recebia os jovens problemáticos da elite.
Mas ninguém a sustentou.
Sozinha, Amara precisou abandonar os estudos. E mesmo assim, não desistiu.
Matriculou-se novamente, dessa vez na Universidade do Sul da Califórnia. Estudou com garra. Dormia pouco, trabalhava muito. Alimentava-se de uma única coisa: a sede de recomeçar. De se vingar. De retomar o que era seu.
Atuar não era só uma profissão. Era o que a fazia respirar. Era sua alma gritando por reconhecimento.
Mas desde que voltou para casa, tudo parecia um campo minado. Melissa estava por toda parte. E o golpe mais cruel foi descobrir que Pillar, sua empresária — sua aliada — agora era apenas mais um peão comprado.
Mesmo assim, Amara lutava.
A Stellar Entertainment havia descoberto nela um brilho promissor, mas a cada passo adiante, vinham dois empurrões para trás.
Agora, trancada num depósito, fraca, traída, tudo parecia incerto.
Mas uma única esperança brilhava em meio à escuridão: o menino.
Se ele conseguisse ajuda, talvez... ainda houvesse tempo. Não apenas para salvá-la daquela sala, mas para reacender tudo o que estava morrendo dentro dela.