3. Demônio

~ Summer ~

O cheiro de feno velho e ferrugem me invade antes mesmo de abrir os olhos. Minha cabeça lateja, meus pulsos doem. Estou deitada de lado, o corpo encolhido como se tentasse desaparecer.

Por um instante, acho que foi só um pesadelo. Mas aí sinto o frio do chão de madeira e o tecido molhado grudado à minha pele. Não foi um pesadelo. Ele matou meu pai e eu estou presa aqui.

Empurro o corpo até me sentar, mas tudo gira. O celeiro está quase escuro, iluminado apenas por uma lâmpada fraca pendurada em um fio exposto. O som da chuva diminuiu. Agora é só um gotejar distante, como o tique-taque de um relógio sem pressa.

Respiro fundo, tentando organizar os pensamentos. Quem é aquele homem?

Por que matou meu pai? E o que fará comigo?

Minha mente corre, mas nada faz sentido. Só lembro da presença dele e do olhar. Meu corpo treme de medo e raiva. Quero gritar, esmurrar a porta, correr dali, mas sei que não vai adiantar, ninguém vai vir me procurar.

Fecho os olhos por um instante. Tento respirar fundo. "Foco, força e fé", as três palavras que minha mãe repetia sempre que eu entrava em crise. Mas é difícil acreditar que Deus ainda esteja olhando por mim quando tudo ao meu redor desmorona.

Meu pai, não era o mesmo homem de antes, mas ainda assim era meu pai. E mesmo bêbado, ausente e quebrado, era tudo que me restava.

Levanto, trêmula, e ando pelo espaço apertado. Há fardos de palha empilhados contra uma das paredes, ferramentas jogadas em um canto, cordas e correntes enferrujadas.

Nada que possa usar. Nada que me dê vantagem.

Caminho até o canto mais afastado e me sento. Encolho os joelhos, fecho os olhos e junto as mãos sobre a cruz no peito.

— Deus... — minha voz sai como um sussurro. — Sei que faz tempo, muito tempo, mas se ainda estiver aí... se ainda me escuta... me dá um sinal.

Fico em silêncio alguns minutos.

— Não peço que me tire daqui... — continuo, sentindo a garganta apertar — ...só me ajuda a não perder o pouco que ainda acredito.

Silêncio, não há resposta. Nenhuma voz divina, nem milagre. Apenas o farfalhar do feno. E o eco do próprio coração batendo apressado.

Mas mesmo assim... continuo de olhos fechados e ajoelhada, tentando puxar para dentro de mim a força que um dia tive.

A garota que lia Salmos aos domingos. Que sorria cantando hinos com o grupo de jovens. A garota da varanda, com os pés no chão e o coração limpo.

A porta range ao longe em um som grave, metálico, acompanhado de passos. Não de botas comuns. Passos firmes e precisos, sei que ele está vindo.

♡♡♡♡♡

~ Hades ~

Ela está sentada, no chão frio, sobre o feno sujo, com as mãos entrelaçadas e a cabeça baixa como se alguém — ou algo — pudesse salvá-la daqui.

É patético e fascinante.

Observo da porta entreaberta, em silêncio, os olhos fixos naquela pequena cruz pendurada em seu pescoço. Ela murmura coisas que não consigo ouvir. Mas reconheço o tom de súplica, a velha tentativa humana de negociar com o céu quando o inferno já chegou.

A luz fraca da lâmpada acima dela forma um halo ridículo em volta de sua cabeça. Como se ela fosse santa, e como se alguém eu pudesse ser tocado pela fé de uma menina que não sabe onde está pisando.

Ela não implorou ou gritou. Ainda não, e talvez por isso eu esteja aqui, observando-a, tentando entender o que a mantém de pé, quandi deveria estar quebrada, amaldiçoando o mundo, o pai, a sorte, a mim. Mas está orando.

Orando.

Dou um passo para dentro, deixando que minhas botas façam barulho contra o piso de madeira. Quero que ela saiba que estou aqui e ver o momento exato em que o terror se sobrepõe à fé.

Ela ergue a cabeça devagar, como se estivesse acordando de um transe. Os olhos ainda estão vermelhos, mas agora há algo neles que não vi antes.

Resistência. Tão inútil quanto interessante.

— Reza pra quem, docinho? — pergunto, encostando na parede. Minha voz sai baixa, mas firme, carregada de deboche.

Ela me encara em silêncio. Ainda segura a cruz, como se fosse uma arma.

— Vai pedir salvação? Um milagre? — continuo. — Posso te poupar o esforço. Aqui, ninguém escuta e nem lá em cima.

Ela engole em seco. Dá pra ver que está com medo e tenta não demonstrar. Seus olhos passeiam pelo meu rosto, tentando entender quem — ou o quê — eu sou.

— Se está tentando me intimidar com frases vazias, vai perder seu tempo — ela finalmente diz. A voz não é alta, mas estável. — Já ouvi promessas piores vindas de homens bem menos perigosos que você.

Arqueio uma sobrancelha, surpreso. Não com a coragem — isso sempre aparece no começo —, mas com o tom. Ela não está tentando me enfrentar e se manter inteira.

— Não são promessas, Summer — digo, deixando o nome dela escorregar entre os dentes. — É a realidade.

Me aproximo, passos lentos. Ela se levanta com dificuldade, mas não recua.

O rosto ainda está machucado, o canto da boca, levemente inchado. Paro diante dela, um passo entre nós.

— Você tem fé, eu vejo. — Inclino a cabeça, observando a cruz. — Isso vai ser um problema, sabia?

Ela não responde. Mas os dedos apertam o pingente como se ele pudesse queimá-la viva.

— Porque eu vou fazer você perder isso.

— Isso o quê? — ela sussurra.

— Sua fé.

— Por quê?

Dou um leve sorriso. "Porque é o que faço, quebrar alguém por dentro é mais interessante do que torturar por fora". Mas não digo isso.

— Porque ninguém sobrevive nesse mundo acreditando na luz. — Minha voz baixa, próxima, quase íntima. — E porque eu gosto de ver quando ela se apaga.

Ela não desvia o olhar. Os olhos dela estão marejados, mas ainda fixos nos meus.

— Então você vai ter trabalho — diz ela, com um fio de voz. — Porque minha luz... não se apaga tão fácil.

Ela não sabe onde se meteu. E ainda assim, tem a ousadia de se manter em pé diante do demônio. Ando para mais perto, a poucos centímetros do rosto dela. — Vamos descobrir isso juntos, docinho.

Toco a cruz pendurada em seu pescoço com a ponta dos dedos. Ela fecha os olhos, como se aquilo fosse o verdadeiro golpe.

E talvez seja.

Me afasto antes que ela perceba que me prendeu ali por um segundo.

— Ei! Qual é o seu nome? — ela grita antes que eu saia.

Paro na porta, olhando por cima do ombro. — Para você .... Demônio.

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