Mundo ficciónIniciar sesión~ Gael Martinez (Hades) ~
 O submundo não espera. Ele te engole e eu tinha dez anos quando provei disso pela primeira vez. Meu pai colocou uma arma em minhas mãos e me encarou como se eu já fosse homem. — Puxa o gatilho, garoto. Ou morre como um inútil. O disparo ecoa até hoje na inha mente, mas não sinto remorso. Ali não morri como vítima: nasci como predador. Minha mãe não presenciou, por ter fugido cedo, e nunca a culpei. Talvez tenha sido a única a escapar verdadeiramente dele. Foi nessa época que meu pai começou a me chamar de Hades, no inicio achei que fosse insulto, veneno cuspido na minha cara. Mas quando cresci e descobri o peso do nome, percebi que era mais do que ofensa. Era profecia. Hades, deus do submundo condenado às trevas, mas que transformou o que era prisão em reino. Temido, respeitado, juiz do destino, era exatamente isso que eu estava destinado a ser e assim me moldei. Não para viver à sombra de ninguém, mas para governar nas sombras. Hoje, a chuva me acompanha até a fazenda de Luís, ele acreditou que poderia brincar com minha paciência. A porta se abre ao meu chute, revelando uma sala pobre e um homem ainda mais miserável. — Hades... o que está fazendo aqui? — ele balbucia, trêmulo. Meu nome em sua boca soa como súplica e maldição. — Vim pegar o que é meu. Não há negociação. O mundo não tem piedade para quem deve. O tiro é rápido, limpo, e ele cai, sem direito a última palavra. Silêncio. Até que um movimento no canto quebra a cena. Uma garota. Loira, frágil, mas os olhos me fitam como se me reconhecessem. Não como homem, mas como entidade. E, por um instante, é como se eu fosse mesmo o Hades que governa o destino das almas. — Ora, ora que segredo seu pai escondia — murmuro, me aproximando. Ela recua, implora, mas não desvia o olhar, tremor e coragem se misturam nela. Seguro seu rosto e sinto o contraste: a delicadeza da pele contra a dureza da minha mão. Há medo, sim, mas também uma chama, insolente, insistindo em viver. E isso me fascina. — Tudo o que está nesta terra me pertence — sussurro. — Inclusive você. Sirvo-me de whisky. O gosto é amargo, mas menos do que a sensação que me percorre. Ela não deveria significar nada além de ma garota comum, deslocada neste mundo. E ainda assim, aquela chama... A mesma que um dia me fizeram apagar, perigosa e inconveniente. E, talvez por isso, impossível de ignorar. Quando finalmente me afasto, vejo o misto de ódio e terror em seus olhos. Isso deveria me incomodar, mas não. Na verdade, há algo perversamente satisfatório nessa reação que faz meu sangue correr mais rápido. — Levem-na para o celeiro — ordeno, sem desviar o olhar dela. Minha voz ecoa como um trovão na sala. — Quero que fiquem de olho e certifiquem-se de que não vá a lugar algum. Ela grita, esperneia, mas é inútil. Meus homens a seguram pelos braços e a arrastam para fora da casa. Fico parado, observando-a até que sua figura desapareça na escuridão da noite. Há algo nessa garota que me intriga, algo que não consigo ignorar. Mas o quê? "Merda", penso comigo mesmo, esfregando o queixo. Isso vai ser uma dor de cabeça monumental, não sabia que aquele miserável tinha uma filha, e agora essa responsabilidade caiu no meu colo. Uma garota magra, vulnerável, que não duraria dois dias em um dos meus bordéis. Olho para a garrafa de whisky sobre a mesa e a pego, virando um gole generoso enquanto me permito alguns segundos para pensar. O que fazer com ela? Ela não parece ter utilidade prática, não é forte, nem treinada. Uma mulher comum, frágil demais para o mundo em que vivo. Mas há algo nos olhos dela, uma chama que tenta resistir mesmo enquanto ela está apavorada. Isso é interessante, e talvez perigoso. Fecho a garrafa e deixo o copo vazio sobre a mesa. A chuva insiste em tamborilar no telhado, cada gota um lembrete de que a noite ainda não acabou. Ela deveria ser apenas mais um detalhe, um obstáculo, uma moeda de troca, mas a imagem da garota sendo arrastada não me sai da cabeça. Olhos claros. Assustados. Teimosos. Não era só medo. Eu sei reconhecer o olhar de quem já aceitou a morte e o dela não era esse. Havia uma chama pequena e isso me incomoda e pior me atrai. Por que, diabos, um homem que controla cartéis, armas, fronteiras inteiras, estaria pensando em uma menina magra e inútil que não deveria sobreviver nem dois dias no meu mundo? — Don Hades. — A voz de um dos meus homens corta o silêncio. — O que fazemos com ela? Minha primeira resposta está na ponta da língua: eliminação. Simples, rápido, sem rastros. É o que sempre fiz, mas as palavras não saem. Me levanto devagar, sentindo o peso do título que carrego. Ser Hades não é apenas matar, é julgar e decidir quem desce às sombras e quem continua respirando. — Trancada. — minha voz sai firme, inquestionável. — Ninguém toca nela. O soldado assente e desaparece pela porta, obediente. Fico sozinho outra vez. A garrafa me encara como um velho cúmplice. Tomo outro gole, mas nem o fogo do whisky consegue calar o que ecoa dentro de mim, sei que não deveria ter hesitado. E, no entanto, algo naquela garota abriu uma pequenanfissura, quase invisível. Mas perigosas são as rachaduras que ninguém percebe até que destruam uma muralha inteira. Encosto as mãos no parapeito da janela. A noite é espessa, como um véu sobre o mundo. E por um instante, sinto que o próprio submundo me observa, testando-me. Será que errei ao deixá-la viva? E se ela for uma fraqueza ou uma maldição?






