Ethan
Ela chegou às 6h58.Dois minutos antes do horário. Claro.
Mas eu já a tinha visto duas vezes antes disso.
Primeiro, no parque.
Domingo de manhã. Eu tentando correr e por o estresse pra fora do corpo e da cabeça. Dobrei a curva e lá estava ela: discreta, decidida, com aquele andar que parece ignorar o mundo.
Ela fingiu que não me viu.
Mas o corpo vacilou. E o corpo nunca mente.
Depois, hoje cedo, no corredor do nosso andar.
Elevador, silêncio. Um jogo de olhares disfarçado de rotina.
Ela ainda acha que tem o controle.
Quase, sinto pena.
Agora, ali está ela — recém-chegada à UpperConstruction — como se estivesse entrando numa reunião, não no primeiro dia de trabalho.
Serena. Racional.
Mas o que ela não sabe é que eu gosto de observar o que as pessoas tentam esconder.
Desci para recebê-la pessoalmente. A conduzi pelo andar como quem mostra um novo campo de guerra para a aliada que ainda não sabe que está sendo testada.
— Essa será sua estação. Mas antes, revise isso — entrego a pasta. — Projeto em Itupeva. Veja se algo te chama atenção.
Ela leu. Três páginas depois, levantou os olhos.
— Linha 42. Estimativa otimista demais para o tipo de solo. O reforço estrutural foi subestimado.
Pontual. Precisa.
Deliciosamente irritante.
— Vai trabalhar comigo nesse projeto — informei. — Diretamente.
— Entendido.
— Vai conseguir lidar com isso?
Ela me fuzilou com o olhar mais frio que já vi em alguém que ainda está em período de experiência.
— Projetos não me intimidam, senhor. E tampouco o senhor.
Sorriso contido. Vontade de rir? Imensa.
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Mais tarde, na minha sala, Dex apareceu. Sem bater, como sempre.
Camisa amarrotada, café na mão, cara de quem dormiu pouco e vive muito.
— Ouvi falar que a nova funcionária veio com pedigree — disse, se jogando na poltrona da frente.
— Quem está espalhando isso?
— Natália. E metade do andar. Você sabe que quando você aparece com alguém novo, o povo surta. Acham que é sua nova protegida. Ou seu novo passatempo.
— Eles sempre acham — respiro fundo. — Mas essa é diferente.
— Ah. É mesmo? — Dex arqueia uma sobrancelha. — Você falou isso da arquiteta de Milão. E da estagiária da comunicação. E da consultora ambiental…
— Elas eram interessantes. Por motivos diferentes.
— E essa?
— Essa me desafia. Não tenta me agradar. Não tropeça na própria língua. E, o mais curioso… tem um olhar que diz “não estou nem aí pra você”, mas o corpo inteiro grita o contrário.
Dex riu, curto.
— Então você está obcecado por uma mulher que finge não estar obcecada por você. Que saudável.
— Eu não estou obcecado.
— Claro. Só desceu até a recepção pra recebê-la pessoalmente. Só observou cada reação dela como quem estuda um mapa. Só tá aí com esse sorrisinho idiota…
— Vai trabalhar comigo. Quero saber como ela funciona.
Dex se levantou, dando dois tapinhas na mesa.
— Só cuidado pra não desmontar o brinquedo antes de entender o mecanismo. Às vezes, a peça mais interessante é a que não veio pra jogar.
Fiquei em silêncio.
Ele foi embora, e eu me vi olhando pela janela de novo.
Melo ainda estava na estação dela. Atenta, concentrada.
Inacessível.
Mas até o código mais fechado tem uma brecha.
E eu sou muito bom em encontrar brechas.