O corredor era estreito demais para conter a tensão. Pravat sentia o ar pesado, como se cada passo que dava pelas escadas da mansão não o levasse apenas a um encontro, mas a um confronto inevitável com tudo que vinha evitando até ali. À sua frente, Bela andava decidida, os olhos atentos a cada detalhe. Desde que chegaram a Bangkok, havia algo pairando sobre eles — um tipo de alerta invisível que parecia pulsar nas paredes, nas palavras e, principalmente, nos silêncios.A porta do segundo andar se abriu devagar, revelando um salão decorado com o mesmo cuidado ancestral da mansão. Móveis antigos, quadros de família e porcelanas cuidadosamente posicionadas pareciam assistir silenciosamente os dramas daquela linhagem. Pravat conhecia bem aquele ambiente, mas não o visitava havia anos. Não desde que seu pai fora sepultado sem maiores honras, em um funeral que mais parecia um expediente empresarial.A família estava reunida. Tios, primos, cunhados. Todos eles com olhares que mesclavam surpr
A mansão da família Silken, silenciosa como um túmulo, parecia agora mais viva do que nunca. Não por boas razões — mas porque cada parede, cada quadro antigo, cada corredor abafado parecia sussurrar segredos que há muito tempo imploravam para vir à tona.Arun caminhava pela sala de estar como se pertencesse àquele lugar desde sempre. Apesar de ter sido apresentado como um “aliado de confiança” do tio de Pravat, sua postura era de alguém com um vínculo mais profundo. Seu olhar avaliava cada canto com uma atenção quase reverente, como se reconhecesse fragmentos de um passado enterrado.Bela, ao lado de Pravat, não conseguia tirar os olhos dele. Havia algo de estranho em Arun — não apenas em sua aparência impecável ou no sotaque suavemente moldado, mas na forma como ele parecia saber demais, como se cada nova informação fosse apenas uma peça de um quebra-cabeça que ele já conhecia há muito tempo.Pravat, ainda abalada pela tensão da noite anterior, foi direto:— Quem é você realmente, Ar
O calor era diferente. Não o abafado que Bela conhecia no Brasil — era como se o ar na Tailândia, mais especificamente em Bangkok, fosse mais denso, mais úmido, quase líquido. Como se o mundo transpirasse junto com ela. Assim que cruzou as portas do aeroporto, um bafo quente e carregado a envolveu por completo, como se alguém tivesse aberto a porta de um forno tropical. O suor brotou quase instantaneamente em sua testa, escorrendo pelas têmporas mesmo sob o ar-condicionado que tentava sobreviver nos saguões.O mundo pareceu girar: motos cruzavam as ruas sem regra, letreiros coloridos piscavam em tailandês, e o cheiro de especiarias se misturava com o escapamento dos tuk-tuks. Era caos. Puro, desorganizado, quase agressivo. Mas também fascinante.Ela parou por um instante no meio do saguão externo, com a mochila pesando nas costas e a mala surrada na mão, tentando absorver tudo ao mesmo tempo. Um taxista gritou algo que ela não entendeu, acenando com uma placa improvisada; ao lado, uma
O primeiro dia na Universidade de Artes de Bangkok parecia uma montagem de filme: jardins meticulosamente cuidados, esculturas modernas ao lado de templos tradicionais, e estudantes vestindo uniformes impecáveis misturados a outros com estilo ousado, quase rebelde. Bella sentia como se estivesse em dois mundos ao mesmo tempo — o antigo e o novo, a tradição e a ousadia, em um contraste que a deixava ao mesmo tempo fascinada e um pouco perdida.Ela prendeu o cabelo em um coque alto, tentando domar os fios rebeldes que insistiam em escapar, vestiu sua camisa branca do uniforme com um jeans de cintura alta — uma pequena rebeldia permitida — e colocou sua melhor tentativa de confiança no rosto. Por dentro, sentia o coração disparado. Tudo era novo. O idioma, o clima, os rostos, os sons. Mas ela estava ali, de corpo e alma. Era o começo de uma nova vida.Ao entrar na sala, todos a encararam por alguns segundos. Um daqueles momentos de silêncio desconfortável, onde até o ranger das cadeiras
O convite para a festa veio de surpresa. Sinn apareceu no quarto de Bela sem bater, empurrando a porta com o ombro e um sorriso malicioso nos lábios. Nas mãos, segurava duas camisetas customizadas com glitter, recortes ousados e frases escritas em tailandês que Bela não conseguia entender.— Hoje tem festa de boas-vindas pros intercambistas. É meio que... não-oficial — disse, agitando uma das blusas como se fosse um troféu. — Vai ser no terraço de um prédio velho perto do rio Chao Phraya. A vista é linda e os problemas são garantidos.Bela arqueou uma sobrancelha. Estava sentada na cama, cercada de livros e anotações, tentando se convencer de que ficar em casa era o melhor caminho para se adaptar. Mas a proposta parecia arrancá-la exatamente do que ela mais temia: a inércia.— Não sei se quero confusão… — disse, com um tom mais defensivo do que pretendia.Sinn revirou os olhos e jogou uma das camisetas no colo dela.— É por isso mesmo que você tem que ir — rebateu. — Você veio pra Ban
Na manhã seguinte à festa, Bela acordou com os pés doendo, o rosto ainda aquecido e a cabeça cheia de perguntas.Por que aquele homem a perturbava tanto?Por que aquele olhar parecia carregar mais do que arrogância?E, principalmente: por que ela queria vê-lo de novo?Tentou espantar as perguntas no banho gelado e com goles de chá de jasmim, mas nenhuma das duas coisas foi suficiente. Na aula de Estética Oriental, sentou na primeira fileira, determinada a focar. A professora falava sobre wabi-sabi, a beleza das coisas imperfeitas, incompletas, passageiras. Falava de harmonia, de equilíbrio, de aceitação.Tudo o que Bela não sentia.Sua mente vagava entre lembranças desconexas da noite anterior: o terraço iluminado, o calor da dança, o cheiro de citronela no ar… e o olhar de Pravat, que parecia atravessá-la como uma lâmina afiada.Ao sair da aula, decidiu buscar alívio nos jardins do campus, perto do lago onde flores de lótus flutuavam como promessas de paz. Sentou-se à sombra de uma c
Naquela noite, Bela não conseguia dormir.As imagens da Casa Silken dançavam em sua mente como sombras em seda: os vestidos suspensos como corpos etéreos, o cheiro denso de jasmim que parecia se agarrar aos seus cabelos, os corredores que pareciam mais longos à medida que o silêncio se aprofundava. Mas o que a mantinha acordada era o olhar do pai de Niran — frio como mármore antigo — e, acima de tudo, o toque amargo na voz de Pravat ao falar da mãe.“Isso tudo pode parecer belo por fora, mas está apodrecendo por dentro.”Essas palavras ecoavam como uma oração corrompida, repetindo-se em um ciclo de lembrança e inquietação. Ela se virava na cama, os lençóis embolados ao redor do corpo, tentando afastar aquela sensação sufocante de que havia tocado, sem querer, em uma ferida aberta. Pravat não era só mistério. Ele era dor e raiva cuidadosamente guardadas sob camadas de silêncio.E, paradoxalmente, era isso que mais a atraía nele.Não os olhos escuros ou a postura quase militar. Mas o qu
Bela seguiu sua rotina, como se tudo fosse normal. As aulas, as conversas casuais com amigos, as tardes gastas entre experimentos no laboratório de tingimento, as noites solitárias, e os sorrisos automáticos. Ela estava ali, fisicamente presente, mas sua mente era uma tempestade constante. Cada pensamento parecia girar em torno de uma imagem: Pravat. Seu rosto, seus olhos, sua voz. A maneira como ele olhou para ela naquela noite, como se soubesse algo que ela mesma ainda não conseguia compreender.Mas não era apenas ele. Era tudo o que ele representava. O que ela sentia quando estava perto dele, a tensão no ar, como se o tempo se esticasse e os momentos entre eles se transformassem em algo mais, algo irreversível. E o pior: ela não sabia mais se queria fugir disso.A visita à Casa Silken estava gravada em sua mente, um filme repetido em sua cabeça. O luxo da mansão, os corredores vazios e frios, os segredos que o pai de Niran carregava como se fossem medalhas de honra, mas que, no fun