O avião pousou com um leve solavanco, como se a própria terra estivesse reagindo à chegada de algo inevitável. Bangkok se estendia além das janelas, vibrante e caótica como sempre — uma tapeçaria viva de concreto, fios elétricos e cores intensas, pulsando sob um calor úmido e opressivo. Para Pravat, era como voltar ao centro de um furacão que nunca parou de girar.Do lado de fora, o céu estava nublado, como se a cidade soubesse que algo se aproximava. Era início da tarde, mas uma estranha penumbra envolvia o horizonte. Kaipo, Mikhail, Takeshi, Kwame, Achille e Lobo saíram um a um, os rostos marcados pela viagem, os corpos tensos pelo que sabiam que teriam de enfrentar. O grupo estava unido, mas o peso do passado parecia ter embarcado junto com eles.— Bem-vindos ao inferno tropical — murmurou Pravat com um sorriso amargo, enquanto puxava a alça da mochila. — Lar doce lar.O calor os atingiu como uma parede ao deixarem o aeroporto. Um bafo quente, espesso, carregado de gasolina, especi
O céu de Bangkok parecia mais carregado do que o habitual naquela tarde abafada. O calor era sufocante, mas Pravat mal notava. Seus olhos estavam fixos na janela do táxi enquanto os prédios passavam como vultos borrados. A cidade fervilhava como sempre, mas algo dentro dele estava congelado, suspenso entre ansiedade e antecipação.Ao lado dele, Bela observava cada movimento, sentindo a tensão que irradiava do corpo do amigo. Ela sabia o que aquela viagem significava. Estavam prestes a encarar uma parte da história que Pravat sempre evitou: o passado da sua mãe, e o elo misterioso com Kaew, a mulher que surgia nos relatos como sombra e promessa.— Estamos quase lá — disse o motorista, apontando com a cabeça para o cruzamento que se aproximava. — A residência Kaew Ratanakosin fica depois daquela rua.Pravat assentiu sem falar. O nome soava pesado. Kaew. Sua mãe sempre mencionara essa mulher com um tom ambíguo — entre respeito, medo e ressentimento. E agora, finalmente, ele estava a minu
O silêncio após a revelação de Kaew pairava no ar como uma tempestade suspensa. Cada segundo era um fio tenso prestes a romper. A presença dela ali não apenas surpreendia — desafiava a lógica. O que ela ganharia ao ajudá-los? Ou seria só mais uma peça num tabuleiro de intenções ocultas?Ela deu um passo à frente, com a mesma serenidade calculada de quem já esteve várias vezes à beira do abismo. De dentro do casaco tirou um envelope de couro escurecido pelo tempo e pelas memórias que carregava. O som do couro se dobrando ecoou pelo quarto abafado, onde a luz fraca filtrava-se pelas cortinas pesadas do hotel.— Isto pertenceu ao seu pai — disse ela, entregando a Pravat o objeto com um olhar denso. — Ele me deu para guardar quando tudo começou a ruir.Pravat segurou o envelope como se ele pudesse queimar suas mãos. Dentro, encontrou uma chave metálica, fria como gelo e marcada com um número: 55-B. Sua garganta secou ao reconhecer o estilo. Cofre bancário de segurança máxima. Não era qual
O calor era diferente. Não o abafado que Bela conhecia no Brasil — era como se o ar na Tailândia, mais especificamente em Bangkok, fosse mais denso, mais úmido, quase líquido. Como se o mundo transpirasse junto com ela. Assim que cruzou as portas do aeroporto, um bafo quente e carregado a envolveu por completo, como se alguém tivesse aberto a porta de um forno tropical. O suor brotou quase instantaneamente em sua testa, escorrendo pelas têmporas mesmo sob o ar-condicionado que tentava sobreviver nos saguões.O mundo pareceu girar: motos cruzavam as ruas sem regra, letreiros coloridos piscavam em tailandês, e o cheiro de especiarias se misturava com o escapamento dos tuk-tuks. Era caos. Puro, desorganizado, quase agressivo. Mas também fascinante.Ela parou por um instante no meio do saguão externo, com a mochila pesando nas costas e a mala surrada na mão, tentando absorver tudo ao mesmo tempo. Um taxista gritou algo que ela não entendeu, acenando com uma placa improvisada; ao lado, uma
O primeiro dia na Universidade de Artes de Bangkok parecia uma montagem de filme: jardins meticulosamente cuidados, esculturas modernas ao lado de templos tradicionais, e estudantes vestindo uniformes impecáveis misturados a outros com estilo ousado, quase rebelde. Bella sentia como se estivesse em dois mundos ao mesmo tempo — o antigo e o novo, a tradição e a ousadia, em um contraste que a deixava ao mesmo tempo fascinada e um pouco perdida.Ela prendeu o cabelo em um coque alto, tentando domar os fios rebeldes que insistiam em escapar, vestiu sua camisa branca do uniforme com um jeans de cintura alta — uma pequena rebeldia permitida — e colocou sua melhor tentativa de confiança no rosto. Por dentro, sentia o coração disparado. Tudo era novo. O idioma, o clima, os rostos, os sons. Mas ela estava ali, de corpo e alma. Era o começo de uma nova vida.Ao entrar na sala, todos a encararam por alguns segundos. Um daqueles momentos de silêncio desconfortável, onde até o ranger das cadeiras
O convite para a festa veio de surpresa. Sinn apareceu no quarto de Bela sem bater, empurrando a porta com o ombro e um sorriso malicioso nos lábios. Nas mãos, segurava duas camisetas customizadas com glitter, recortes ousados e frases escritas em tailandês que Bela não conseguia entender.— Hoje tem festa de boas-vindas pros intercambistas. É meio que... não-oficial — disse, agitando uma das blusas como se fosse um troféu. — Vai ser no terraço de um prédio velho perto do rio Chao Phraya. A vista é linda e os problemas são garantidos.Bela arqueou uma sobrancelha. Estava sentada na cama, cercada de livros e anotações, tentando se convencer de que ficar em casa era o melhor caminho para se adaptar. Mas a proposta parecia arrancá-la exatamente do que ela mais temia: a inércia.— Não sei se quero confusão… — disse, com um tom mais defensivo do que pretendia.Sinn revirou os olhos e jogou uma das camisetas no colo dela.— É por isso mesmo que você tem que ir — rebateu. — Você veio pra Ban
Na manhã seguinte à festa, Bela acordou com os pés doendo, o rosto ainda aquecido e a cabeça cheia de perguntas.Por que aquele homem a perturbava tanto?Por que aquele olhar parecia carregar mais do que arrogância?E, principalmente: por que ela queria vê-lo de novo?Tentou espantar as perguntas no banho gelado e com goles de chá de jasmim, mas nenhuma das duas coisas foi suficiente. Na aula de Estética Oriental, sentou na primeira fileira, determinada a focar. A professora falava sobre wabi-sabi, a beleza das coisas imperfeitas, incompletas, passageiras. Falava de harmonia, de equilíbrio, de aceitação.Tudo o que Bela não sentia.Sua mente vagava entre lembranças desconexas da noite anterior: o terraço iluminado, o calor da dança, o cheiro de citronela no ar… e o olhar de Pravat, que parecia atravessá-la como uma lâmina afiada.Ao sair da aula, decidiu buscar alívio nos jardins do campus, perto do lago onde flores de lótus flutuavam como promessas de paz. Sentou-se à sombra de uma c
Naquela noite, Bela não conseguia dormir.As imagens da Casa Silken dançavam em sua mente como sombras em seda: os vestidos suspensos como corpos etéreos, o cheiro denso de jasmim que parecia se agarrar aos seus cabelos, os corredores que pareciam mais longos à medida que o silêncio se aprofundava. Mas o que a mantinha acordada era o olhar do pai de Niran — frio como mármore antigo — e, acima de tudo, o toque amargo na voz de Pravat ao falar da mãe.“Isso tudo pode parecer belo por fora, mas está apodrecendo por dentro.”Essas palavras ecoavam como uma oração corrompida, repetindo-se em um ciclo de lembrança e inquietação. Ela se virava na cama, os lençóis embolados ao redor do corpo, tentando afastar aquela sensação sufocante de que havia tocado, sem querer, em uma ferida aberta. Pravat não era só mistério. Ele era dor e raiva cuidadosamente guardadas sob camadas de silêncio.E, paradoxalmente, era isso que mais a atraía nele.Não os olhos escuros ou a postura quase militar. Mas o qu