Quando Bellamina abriu os olhos ela andava por uma floresta escura e densa. Era uma noite escura e sem lua, e a jovem andava entre os arbustos espinhosos e galhos retorcidos, ela usava um manto preto que cobria todo seu corpo, e um aroma forte de uma mistura de cera queimada e sangue fresco misturado em terra úmida, pairava sobre o ar de forma quase sufocante.
Logo adiante Bellamina avistou uma clareira, que havia um círculo de pedras negras, todas cravadas com uma caveira e uma rosa. E na base de cada uma das pedras, havia uma vela vermelha queimando com chamas crepitantes e incandescentes, iluminando todo círculo. Uma brisa gélida, que intensificava mais o aroma forte das velas e do sangue, atingiu a clareira e então quando Bellamina parou no centro do círculo de pedras, seu manto foi arrebatado pelo vento e se transformou em vários corvos crocitando e voando em um único grupo em direção à imensidão obscura opressora que pintava o céu noturno. Bellamina ao olhar para seu corpo viu novamente as marcas de garras e mordidas, e todas as feridas sagravam com uma ardência incensante. O cheiro do sangue se misturando a terra ficava cada vez mais forte, deixando a menina com enjoo, seu corpo tremia com a brisa gélida e a tontura que lhe dava ânsia. E então diante dela surgiu a mesma mulher da noite anterior. Sua presença etérea era iluminda pelas chamas das velas faziam com que seu corpo pálido reluzisse em tons de vermelho, amarelo e laranja. Seus lábios vermelhos se curvaram com em um sorriso, e seus olhos da mesma tonalidade ardiam com um frenesi constante. — Eu sabia que viria me procurar, bela donzela. — A mulher murmurou de forma sedutora, fazendo um arrepio percorrer todo corpo de Bellamina. A criatura se aproximou dela e quando encostou seus lábios seus ouvidos e passou sua língua áspera por seu pescoço arrepiado, a jovem escutou uma voz familiar a chamando. — Bellamina? — Era uma voz feminina suave, coberta de uma preocupação genuína e acolhadora. Como se apenas com sua voz reconfortante poderia dispersar quaisquer males que a escutasse, então a jovem reconheceu, e uma lágrima salgada percorreu seu rosto. — Mamãe? — Sussurrou Bellamina com a voz trêmula. A menina piscou os olhos e olhou ao redor do círculo de pedras, e então uma luz cegante dominou todo o lugar, como uma presença divina banisse todas as trevas do mundo. Quando a visão de Bellamina se ajustou a claridade, ela percebeu que estava em seu quarto, deitada em sua cama macia e as curtinhas estavam totalmente abertas, assim como as janelas, deixando toda claridade do dia e a brisa suave do verão dominasse o quarto. A jovem olhou para o lado do espelho, e percebeu uma figura sentada na beira do colchão. Era sua mãe, que exalava uma beleza melancólica e acolhedora ao mesmo tempo. Sua pele em tom de alabastro quase etéreo reluzia com a luz do dia, que realçava uma certa fragilidade aparente, porém que escondia um espírito feroz. Seus olhos de um verde profundo, misteriosos e calculistas fitavam Bellamina deitada na cama, como se estivessem maquinando formas de entender o que havia acontecido com sua filha. Seus cabelos castanho-escuro quase negros, estavam arrumados com perfeição, ondulados e preso em um penteado formal, arnados com um pente antigo de prata, com o entalhe de um pardal. Sua mão macia segurava o braço da menina de forma acolhedora e o acariciava, enquanto a manga de renda branca provocava cócegas em Bellamina, seu vestido vitoriano era de um verde musgo profundo, com vários adornos complexos. — Filha, está tudo bem? — Ela perguntava tranquilamente, embora não deixasse de lado sua preocupação evidente em seu olhar. — O que aconteceu? Bellamina tremeu seu olhar e se sentou na cama, e percebeu que estava usando sua camisola rosa, como se nunca tivesse sido removida. A menina espreguiçou e então fitou seu corpo de forma desconfiada, buscando quaisquer vestígios das marcas deixadas pela mulher misteriosa. — Procurando alguma coisa? — A mãe continuava a encarar com seu olhar profundo. — Parece tensa, meu amor. Então Bellamina olhou fundo nos olhos de sua mãe, como se buscasse transmitir as palavras que temia pronunciar em voz alta. Depois de alguns breves minutos encarando sua mãe, seus lábios tremeram e por fim respondeu. — Eu tive um sonho estranho… — Sua voz saia abafada como um murmúrio. —, uma mulher misteriosa apareceu no quarto durante a noite, e deixava marcas de mordidas e arranhões em todo meu corpo e então as marcas desapareciam… – Seus lábios esquentaram em uma leve ardência. — Quando eu olhava meu reflexo no espelho eu via claramente que meu corpo estava com uma aparência diferente. — Como estava sua aparência? — A mãe a fitava com curiosidade. — Minha pele estava mais pálida, lábios mais vermelhos e meus cabelos eram tão escuros que pareciam absorver a luz ao redor. — Enquanto Bellamina falava com sua voz trêmula, lágrimas desciam pelo seu rosto. A mãe incapaz de conter o riso acariciou seu rosto, limpando assim as lágrimas da jovem. — Minha filha, você sempre teve essa aparência, não se lembra? — A mãe então ajudou Bellamina a se levantar e a colocou diante do espelho da penteadeira. — Vê? — Ela perguntou com a voz serena enquanto acariciava seus longos cabelos ondulados. — Você sempre teve essa aparência. Bellamina fitava seu reflexo, e suas mãos tremiam, sentia como se estivesse afogando no meio de uma tempestade oceânica, em que não tivesse qualquer chance de encontrar abrigo para se proteger. Ela olhava seus olhos cinza-azulado carregados de melancolia. — Meus olhos estavam diferentes… — Ela murmurou. — Estavam transbordando com frenesi ardente… A mãe então virou a filha para si, fazendo ela ficar de costas para o espelho. Suas mãos macias estavam sobre os ombros de Bellamina. — Foi apenas um sonho ruim, e não irá acontecer novamente, tudo bem? Bellamina com o olhar enevoado, fez um gesto breve com a cabeça, assim concordando. — Vou pedir para a sra. Gilles vir lhe ajudar a se trocar. — Disse a mãe tirando as mexas de cabelo que caiam cobrindo metade do rosto da jovem. — Não fale mais sobre esse assunto. O sonho já terminou e não há necessidade de prolongar essa conversa, está certo? — E então ela se curvou brevemente sobre a filha, que era alguns centímetros mais baixa, e deu um beijo leve e suave entre as sobrancelhas negras e perfeitamente alinhadas da menina, e lançou um sorriso acolhedor. — Venha tomar café da manhã quando estiver pronta. Você precisa se alimentar um pouco. — E então deixou o quarto fechando a porta atrás de si. Deixando Bellamina sozinha em seu quarto, imersa em seus pensamentos dos acontecimentos da noite passada, e do sonho com a floresta escura e a mulher misteriosa no círculo de pedras negras. Alaric Montenegro estava sentado, com uma postura rígido e aristocrática, sobre a cadeira de ferro fundido branco, com uma mesa redonda do mesmo material, estava posta com uma toalha azul clara, com um bule de chá e suas xícaras com pires branco de louça, havia uma bandeja de prata com torradas, um prato pequeno com manteiga e um pote semi aberto com geleia de morango. O Homem segurava uma xícara de café enquanto fitava seu jardim, as flores de cores vibrantes, e alguns arbustos baixos de cerca viva e alguns ciprestes que serpenteavam um caminho de paralelepípedos. A brisa suave balançava levemente alguns fios de seu cabelo escuro e bem penteado, levemente ondulado, com mechas grisalhas nas têmporas. Ele usava um traje elegante, porém leve devido ao verão, uma camisa de linho branco com um colete preto bem abotuado na frente, calças da mesma cor, além de sapatos pretos de couro, da mesma tonalidade, bem lustratos. Seu rosto era marcado por linhas finas de expressão, um reflexo das escolhas difíceis e dos segredos que carrega. Alaric sentia o ar ao seu redor pesado, mesmo com a brisa suave. Era como se o vento sussurrasse segredos de sua juventude, memórias que ele preferia deixar enterradas. — Enterradas... — Ele murmurou com sua voz grossa, que assumia uma certa fragilidade. Então com seus olhos de um âmbar profundo, quase dourado, fitavam além do jardim de sua propriedade, indo até o antigo cemitério da família Montenegro se encontravam tão enterradas quanto suas memórias de seus dias joviais, quando seus desejos e curiosidades estavam sempre à flor da pele. Por um breve momento antes de se conter e afastar o pensamento, Alaric pensou ter visto a sombra daquele homem. Então seu devaneio foi interrompido por Isadora, sua esposa, que sentou na cadeira ao lado da sua e se serviu com uma xícara de café, e tomou um gole rápido. Alaric lançou um olhar para sua mulher, e também tomou um gole rápido de café. — O que aconteceu com Bellamina? — Ele perguntou com a voz firme e imponente, deixando de lado qualquer traço de fragilidade que havia antes. — Descobriu o motivo do grito? — Ela teve um pesadelo. — Respondeu Isadora tranquilamente, enquanto pegava uma torrada e passava geleia com uma faquinha de prata. — Ela disse que havia uma mulher estranha e misteriosa em seu quarto na última noite, que deixava marcas de mordidas e arranhões em todo corpo e então desapareciam sem explicação no reflexo do espelho. Ao escutar as palavras da esposa Alaric quase engasgou, e seus olhos fitaram o cemitério novamente. Foi invadido por visões breves das visitas noturnas que recebia daquele homem. — Então já começou com ela… — O pensamento ecoava tão alto em sua cabeça que mal ouvia as palavras de Isadora, como se fossem ecos distantes e incompreensíveis. — É claro que eu disse à ela que não havia nada de mais, era apenas um sonho, certo? — Isadora perguntou com seus olhos curiosos e melancólicos fitando Alaric se perder em seus muitos e cansativos devaneios. Seu rosto ficou levemente rígido e ela frangiu o cenho. — Alaric! — Ela falou com firmeza na voz, que guardava apenas para estes momentos em especial. Alaric voltou a sua postura e observou Isadora, se lembrando do que ela havia dito. — Claro, querida. — Ele respondeu e tomou mais um gole do café. — Foi apenas um sonho e nada além disso. — Ele respondeu de forma confiante e abafada, mas nem ao menos acreditava em suas palavras. Alaric sabia que tinha algo a mais na visita que sua filha recebeu na noite passada. Mas se encontrava totalmente inernete diante da situação, afinal ele próprio desconhecia a natureza dessas estranhas e misteriosas aparições nortunas.