— Estou lhe dizendo, sra. Gilles, — Dizia Bellamina com uma frustração dominante em sua voz cansada. —, tenho quase certeza que isso não foi apenas um sonho. Era vivido de mais. — A jovem olhava para o reflexo da mulher mais velha no espelho, usando um vestido preto com avental branco, e seu cabelo grisalho e já ralo pela idade, em um coque apertado, enquanto penteava suavemente os cabelos ondulados escuros de Bellamina. — Tanto aqui no quarto quanto na floresta densa eu sentia perfeitamente a mulher… — Bellamina arrebitou seu nariz, como se ainda sentisse o aroma das velas queimando no ar.
— Minha querida, existem sonhos que são mais vividos que outros. Acredito que não exists motivo para preocupação. — A senhora com uma voz doce sorria para Bellamina, com suas marcas de expressão ficando em um pouco mais de evidência, seus olhos pretos ainda brilhavam com ar de juventude, como se não reconhecessem a idade avançada da mulher. — Sabe, isso será um segredo entre nós duas. — Disse ela piscando brevemente. — Mas sei pai quando estava na sua idade também teve sonhos semelhantes, mas era um homem misterioso que o assombrava. Ele tinha os mesmos olhos vibrantes e vermelhos que a mulher do seu sonho possui. Bellamina ficou com o olhar fixo na mulher. Sua mente vagava tentando imaginar seu pai, com sua presença sempre abrupta e imponente sendo colocado em uma posição de fragilidade como a mulher a colocou. — Por quanto tempo ele teve esses sonhos? Será que sua mãe sabia desses sonhos? Será que ela teria mais sonhos com a mulher misteriosa? — Eram as dúvidas que pairavam sobre a mente da jovem. — Ele contou a senhora o que acontecia nesses sonhos, sra. Gilles? — Perguntou com sua voz tomada pela curiosidade. — Ele nunca me disse os detalhes do que acontecia, apenas comentava que sonhou com “aquele homem” de novo. — A senhora terminou de arrumar o cabelo ondulado de Bellamina em um belo penteado, deixando seus cabelos pretos levemente soltos. — E eu nunca insisti para que ele falasse mais do que estava disposto a revelar. E você também não o fará! — Ela deu um leve tapa indolor no ombro esquerdo de Bellamina para a menina entender. — De qualquer forma ele nunca mais comentou sobre desde que casou com sua mãe, então suponho que os sonhos devam ter parado. — Ela sorriu brevemente. — Da mesma forma que os seus sonhos também irão parar, então não precisa se preocupar. A menina então se levantou, usava um belo vestido vitoriano, porém mais leve que o de sua mãe, rosa claro, com algumas flores bordadas em renda de tonalidade um pouco mais escuras que a cor do vestido. Os pensamentos de Bellamina deixavam de vir incessantemente. — Por quantos anos meu pai teve esses sonhos? Por quantos anos eu seria atormentada por essa mulher misteriosa? Além do mais, apenas porque meu pai deixou de comentar não queria dizer necessariamente que os sonhos haviam acabado de vez… — Os olhos cinza-azulados de Bellamina transbordavam essas dúvidas, e a sra. Gilles notou, e acariciou seu rosto. — Não se preocupe, menina. — Ela então pegou o braço de Bellamina e a guiou até a porta do quarto e abriu. — Você precisa se alimentar, assim irá se distrair desses pensamentos. — A senhora falava enquanto as duas deixavam o quarto e caminhavam pelos corredores alongados, como se fossem as veias da mansão, que em breves intervalos abriam espaço para portas de ébano fechadas, com as paredes emolduradas com boiseries delicadamente esculpidos, que emanavam uma frieza gótica, complementadas pelos lustres de cristal que pingavam do teto como lágrimas congeladas. Ao virarem a última curva, Bellamina e sra. Gilles desceram a escadaria de madeira escura, finamente entalhada com detalhes de flores e folhagens, que se desdobravam em em duas direções opostas no topo. Bellamina passava sua mão direta pelos corrimões lisos ao toque, mas que carregavam o peso de incontáveis mãos que por ali passaram ao longo dos séculos. O som suave dos passos sobre os degraus era abafado pelos pesados carpetes carmesim que corriam ao longo da escadaria, tão antigos quanto a própria mansão, mas ainda assim impecavelmente preservados, como se estivessem protegidos de qualquer efeito do tempo. Quando chegaram ao final da escadaria, as duas passaram por um arco do lado esquerdo do hall de entrada, levando por um corredor igualmente detalhado que os do andar superior, mas este além de suas portas de ébano em pequenos intervalos, também era adornado com retratos à mão de alguns membros da rica e antiga linhagem da família Montenegro, até que por fim chegaram à mais um arco, com uma porta de vidro aberta, que conduzia a varanda, onde os pais de Bellamina estavam sentados à mesa tomando café. A Sra. Gilles soltou suavemente o braço direito de Bellamina, se curvou brevemente e saiu do recinto enquanto a jovem se sentava a presença dos dois. — Bom dia, pai. — disse Bellamina de forma ríspida, permitindo que seu olhar tentasse capturar qualquer deslize que indicasse a presença dos sonhos ainda recorrentes do homem. — Bom dia, Bellamina. — Ele respondeu com a voz firme, como de costume, então Sra. Gilles voltou e lhe entregou o jornal e saiu novamente do recinto. O pai lia distraidamente o jornal, Bellamina enquanto o observava o pai olhou por um breve momento a primeira manchete que dizia “Antiga Mansão Crane, em Odessa, é herdada por parentes distantes após o misterioso desaparecimento de Louise e Helen Crane.”, Bellamina ao perceber que o pai não havia nada a revelar, logo desviou sua atenção para colocar um pouco de café em sua xícara e passar geleia e manteiga na torrada. Alaric sentia o olhar penetrante de sua filha o fitando, como se conhecesse seus segredos e desejos mais obscuros. Ele tentava ocultar o batimento frenético de seu coração segurando o jornal na sua frente, e as mãos trêmulas com uma rigidez intensa sobre sua postura, como se seu corpo todo estivesse bem amarrado com cordas firmes. Mas seus pensamentos vagavam tanto para as lembranças vividas durante as noites de sua juventude, que ele nem ao menos conseguia se concentrar nas manchetes do jornal. Ele se lembrava da silhueta forte do homem, seus cabelos negros longos caídos sobre os ombros, suas mãos gélidas e firmes percorrendo seu corpo. Então Alaric respirou fundo e forçou aqueles pensamentos indo embora, então percebeu que Isadora falava com ele, ele fechou o jornal e repousou o jornal sobre a mesa. — Me desculpe querida, não ouvi o que disse. Isadora respirou fundo e então repetiu. — Louise e Helen Crane desapareceram… — Ela apontou para a primeira folha do jornal sobre a mesa. Alaric leu a manchete. — Me desculpe querida, Louise era sua prima, certo? — Sim, ela também era minha melhor amiga…— A mulher respondeu de forma melancólica. — Passei tantos verões naquela casa… — Eu sinto muito. — Alaric colocou sua mão direta sobre a da mulher, dando um leve aperto. — Poderemos ir à mansão mais tarde, está bem? Isadora concordou com um aceno com a cabeça, respirou fundo e bebeu um longo gole de café. Bellamina fitava a conversa dos pais, e esse breve momento de afeto e não conseguiu evitar de pensar. — Quanto dessa relação é real? — A jovem bebeu um gole de café e comeu um pedaço da torrada. — O que o homem misterioso que aparecia para seu pai representava para ele? — Seus pensamentos continuavam. — A mulher misteriosa dissera que era “A sua libertação moral, e o anseio desesperado de fugir dessa realidade.” de forma bem explícita. — Bellamina não poderia mentir para si mesma enquanto esses pensamentos a atormentavam, ela estava tão absorta dentro de sua cabeça que nem percebia seus pais tendo conversas triviais. A jovem sempre se sentiu deslocado e fora de seu tempo, como se não pertencesse a esse local que vivia, muito menos à Família Montenegro, como se sua alma fosse mais antiga que essa linhagem longa e rica. Bellamina fitou as flores de cores vibrantes do jardim, e se lembrou que quando era criança sempre teve a sensação de que seu nascimento foi um ato brutal de prender contra a força sua alma e um receptáculo mortal. Como se sua verdadeira essência e próposito tivessem sido arrancados de si sem que pudesse fazer nada para evitar. No começo compartilhava com sua mãe esses pensamentos, mas ela sempre foi uma mulher prática e disse para não falar mais sobre isso e assim Bellamina fez, nem ao menos com a Sra. Gilles ela comentava essas coisas. Aquele diálogo com a mulher misteriosa a faziam refletir cada vez, e se lembrar de que não foi a primeira vez que sonhou com aquela floresta e círculo de pedras negras, Bellamina tinha esses sonhos desde criança, e sempre teve o sono conturbado por conta disso, mas acordava de forma tão abrupta que não se lembrava do que havia acontecido nos sonhos. E isso fez com que seu pensamento voltasse para a figura central da mulher. — Será que o sonho sempre terminava da mesma forma? Com as marcas em meu corpo e a mulher aparecendo? Bellamina então despertou de seu profundo devaneio quando seus pais se levantaram da mesa, e ela os olhou curiosa. — Filha, iremos à mansão Crane para sua mãe ver o lugar pela última vez, gostaria de ir conosco? — Perguntou o pai, com sua mãe direta sobre o ombro esquerdo da mãe, que fitava o chão com um olhar profundo e melancólico. — Não acredito que seria bom. — Bellamina encarava a mãe. — Eu nem ao menos conhecia esse ramo da família. — Está bem filha. — Respondeu o pai. — Acredito que iremos retornar até o pôr-do-sol. — Alaric completou deixando a varanda com Isadora. — Chame a sra. Gilles se precisar de algo. — E assim os dois partiram, deixando Bellamina novamente absorta nos mesmos pensamentos de antes de ser interrompida.