Senhor Ramires
Senhor Ramires
Por: Lilith Deveraux
1.0 - Recomeço

Marina

Tem gente que começa uma nova vida com um recomeço bonito. Eu comecei com cinco caixas de papelão amassadas e duas malas quase explodindo.

— Essa aqui fecha se eu sentar em cima, né? — resmunguei, empurrando com o joelho a tampa da caixa onde enfiei metade da minha vida. A outra metade tava espalhada entre roupas que não me serviam mais, livros que eu jurava reler um dia e um monte de cacareco sentimental que eu não tive coragem de jogar fora.

Meu apartamento cheirava a café velho e desespero. A luz da manhã entrava pela persiana torta e iluminava o caos que era minha sala-cozinha-quarto — tudo junto, tudo apertadinho. E mesmo assim, era difícil dizer adeus.

A campainha tocou. Claro que era ela. Só podia ser.

— Já vai! — gritei, amarrando o cabelo num coque frouxo.

Gabriela entrou antes mesmo que eu abrisse tudo. Irmã mais nova, cara de certinha, mas com aquele olhar que me julgava até quando eu respirava.

— Você tem certeza disso, Marina? Sair assim... largar tudo pra trabalhar num asilo no meio do mato? — Ela cruzou os braços, encostando na porta. — Mesmo sendo de luxo, ainda é um asilo. Com velhinhos. E regras. E cheiro de remédio.

Revirei os olhos e puxei uma das malas, com esforço.

— Tenho. É isso ou continuar aqui sendo “aquela que foi deixada no altar” toda vez que entro numa padaria. Já chega. Não sou obrigada a aguentar sorrisinho falso e comentário sussurrado.

Ela suspirou, mas ficou em silêncio. Sabia que cutucar o assunto era como brincar com fósforo perto de álcool. Falar de Eduardo ainda me deixava com o estômago revirado. Não porque eu amava ele. Deus me livre. Mas porque ele me expôs, me humilhou, me fez sentir... pequena.

— E se for cilada? — ela insistiu, baixando um pouco a voz. — Ninguém sabe quase nada sobre esse lugar. 

— Ótimo — rebati. — Talvez eu vire a mocinha que dá a volta por cima. Ou a cuidadora que mata o patrão, ou algum velho e foge com o dinheiro. Vai saber.

Gabriela não riu. Só ficou me olhando com aquela cara de quem quer dizer mais, mas tem medo de como vou reagir. Ela sempre teve esse jeito contido. E eu... nunca fui boa em esconder quando algo me machucava.

— Mãe vai surtar quando souber — ela murmurou, como se isso fosse me fazer desistir.

— Mãe surta até se eu comprar pão diferente — dei de ombros. — E pai finge que não é com ele. Como sempre.

Me abaixei pra fechar a última caixa. Meus joelhos estalaram e eu soltei um "ai" baixinho. Tô velha, mas com charme, eu diria.

Quando terminei, olhei em volta. Aquele cubículo foi meu abrigo e minha prisão nos últimos meses. Foi onde chorei em silêncio, onde gritei de raiva, onde me olhei no espelho e jurei que nunca mais ia deixar um homem me fazer sentir lixo.

— O asilo paga bem. E é longe o bastante — falei, quase pra mim mesma. — É tudo o que eu preciso agora.

Gabriela suspirou de novo. Ela faz muito isso. Mas no fundo, acho que entendeu. Ou pelo menos parou de tentar me convencer do contrário.

Ajudei a empilhar as caixas perto da porta. 

— Vai lá comprar sorvete, vai — falei, tentando parecer casual, mesmo com a garganta meio fechada. — Aquele de coco com pedaços, que a gente gosta. Mas traz o pequeno... dieta, né?

Gabriela me olhou com aquele sorrisinho torto, como se dissesse “sei que você quer ficar sozinha”, mas foi. Pegou a chave, jogou a bolsa no ombro e saiu sem dizer nada. A gente sempre teve essa conexão silenciosa, mesmo nos dias em que nos odiamos um pouquinho.

Quando a porta bateu, o silêncio se espalhou pelo apartamento. Me sentei no chão, encostada na parede, com as pernas cruzadas e as mãos no colo. O chão gelado grudava nas minhas coxas, e o vazio da sala parecia maior sem a voz da minha irmã enchendo o espaço.

Não era só o apê que tava vazio. Eu também tava. E, pela primeira vez em meses, deixei cair.

As lágrimas vieram quentinhas, sem alarde, escorrendo devagar pelo rosto. Não era choro bonito de filme. Era soluço preso na garganta, era dor embolada no peito, era vergonha grudada na pele.

Fui deixada no altar.

Na frente de duzentas pessoas. E não foi um sumiço romântico, nem uma fuga dramática. Foi um discurso. Eduardo — aquele idiota bem vestido — pegou o microfone e falou, com todas as letras, que não podia se casar com uma mulher do meu tamanho. Que merecia alguém que se cuidasse. Que não fosse uma “baleia inchada num vestido branco”.

As palavras dele ainda ecoavam, às vezes, no silêncio da noite. Ainda me queimavam.

Eu ri. Não porque era engraçado, mas porque era inacreditável.

Me levantei do chão e fui até o espelho da entrada, aquele com moldura torta que eu nunca consertei. Olhei meu reflexo.

Trinta e seis anos. Pele dourada, marcada por algumas sardas no ombro e um brilho cansado no olhar. Cabelo castanho-claro, longo e ondulado, que hoje insistia em armar mais do que eu gostaria. Boca carnuda, bochechas rosadas. Um corpo... cheio. Quadris largos, cintura desenhada, seios fartos que nenhum sutiã sustentava com dignidade. Era o tipo de corpo que chamava atenção, mas também julgamento. Principalmente vindo de homens que nunca mereceram me ver pelada.

Curvilínea. Sensual. E esmagada por uma sociedade que ensina que autoestima é só pra quem veste 38.

Mas agora... agora eu ia mudar isso. Tinha que mudar. Não dava pra viver sendo a mulher rejeitada, a piada da cidade, o nome que as mães usavam como exemplo de "o que não ser".

Suspirei fundo, passando a mão nos olhos, tentando apagar o estrago do choro. Eu não posso mais sofrer, não posso mais cavar e cavar sabendo que isso não tira ninguém do buraco.

O asilo era o fim do mundo. Mas podia ser meu começo.

E mesmo sem saber, lá do outro lado daquela estrada, eu estava pronta.

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