Passado.
Âmbar
O clima era de alvoroço. Em poucos dias, aconteceria o aguardado show de talentos, e todos estavam ansiosos para exibir suas habilidades. Na minha sala, haveria um desfile e uma competição artística. Pensei em criar algumas receitas, mas sabia que isso só serviria de munição para meus algozes.
Uma gorda apresentando comida? Que ideia brilhante. Recriminei-me.
— Aposto que a Fiona vai trazer bolo — provocou minha irmã, e os risos explodiram ao redor.
Kevin, lá do fundo, ouviu e aproveitou a deixa.
— Fogo de Palha, você devia se preocupar mais com a sua aparência do que com a comida! Não viu como está enorme? — Ele gritou, e as gargalhadas foram gerais. Encolhi-me na cadeira, rezando para que a aula terminasse logo. O professor estava na diretoria e, com ele fora da sala, minha irmã e Kevin aproveitaram para me humilhar.
— E o que mais você poderia fazer, não é, Âmbar? — disse Aysha com um sorriso sarcástico. — Porque desfilar está fora de cogitação. Por mais que sonhe com isso, você jamais vai conseguir competir comigo. Quem iria aceitar uma modelo gorda? — Mais gargalhadas.
Senti o rosto arder de vergonha, mas me recusei a deixar transparecer o quanto suas palavras me feriam. Quando o professor voltou, as provocações pararam, e soltei um suspiro de alívio. Durante o intervalo, busquei um lugar isolado, onde pudesse me esconder dos olhares críticos. Mas eles sempre me encontravam. Kevin e Aysha estavam cercados de amigos quando, de repente, apontaram para mim.
— Olha quem está aí! — Kevin disse, apontando em minha direção. — É a nossa Fiona! Olá, rolha de poço? Como conseguiu se sentar aí? Será que teremos que chamar um guindaste para te ajudar a levantar?
Os risos ecoaram. Tentei ignorar, mas as palavras de Kevin cortaram fundo.
— O que está fazendo aí, Âmbarzona? Está tentando se esconder do mundo, é? Com seu tamanho, isso é impossível. — zombou Aysha, com um sorriso venenoso. — Por que não se junta a nós e tenta se divertir um pouco? Precisa deixar de ser estranha, sabia? Se bem que a vida, do jeito que é, é capaz de estragar nosso dia. — Sua risada era alta, ecoando pelos corredores e atraindo olhares curiosos de quem passava.
O som da risada de Aysha era como um golpe, cortando fundo. Ela se divertia tanto ao me humilhar que, às vezes, eu me perguntava se ela seria mais feliz se eu não tivesse nascido. Talvez, para Aysha, eu fosse apenas uma piada ambulante, alguém cuja existência só servia para confirmar sua perfeição. Pensar assim me machucava, mas era difícil ignorar essa ideia.
Por um momento, pensei em responder, em tentar dizer algo que a fizesse parar. Mas o peso da insegurança sempre me silenciava. Qualquer palavra que eu dissesse provavelmente só serviria de munição para mais risadas e comentários cruéis.
Respirei fundo, tentando conter a raiva e a tristeza que ameaçavam transbordar. Olhei para o chão e apertei os punhos, dizendo a mim mesma que isso não me definiria, que eu era mais do que as palavras dela. Mas, mesmo com toda essa determinação, a humilhação ainda queimava.
— Não estou interessada — respondi, tentando soar mais confiante do que realmente me sentia.
— Claro que não — Kevin retrucou com um sorriso sarcástico. — A Fogo de Palha aqui só sabe ficar sozinha. Ela se sente mais confortável assim, não é, pequena Âmbar?
— Mas de pequena ela só tem os olhos, Kevin. — Respondeu Estevan, fazendo as gargalhadas ecoarem. Elas ficariam em minha mente e me assombrariam por longos dias.
Desviei o olhar e me afastei, apertando os dentes para conter as lágrimas. Só queria um lugar onde pudesse ser eu mesma, longe das humilhações e comparações. Sentia como se minha presença fosse um incômodo, como se o simples fato de eu existir incomodasse a tudo e todos.
Por que eles não me deixavam em paz? Por que se importavam tanto comigo? Por que me humilhavam tanto, meu Deus?
Atravessei o refeitório, querendo apenas desaparecer, mas no meio do caminho, Harriet, a cozinheira, me avistou. Com sua expressão gentil, ela percebeu meu desânimo e me interceptou antes que eu conseguisse sair.
— Âmbar, tudo bem? — perguntou, com uma voz suave e preocupada.
Tentei disfarçar, forçando um sorriso, mas ela sabia ver além das aparências.
— Vem aqui comigo, querida. Vou te fazer companhia — disse, me guiando até a pequena cozinha do refeitório. Lá, longe dos olhares curiosos dos outros alunos, ela me ofereceu uma xícara de chá e começou a preparar uma fatia de bolo caseiro. Harriet sempre dizia que chá e bolo eram remédios para o coração.
Sentei-me em um dos bancos enquanto ela cortava o bolo com delicadeza, colocando-o diante de mim.
— Sabe, Âmbar, eu vejo o quanto você se esforça todos os dias — Harriet comentou, sem tirar os olhos da xícara de chá que preparava. — E posso te dizer uma coisa? Não deixe que as palavras deles definam quem você é. Você é muito mais do que isso, minha querida. Muito mais.
Suas palavras eram suaves, mas penetraram fundo, trazendo um conforto inesperado. Era raro alguém me enxergar de verdade, olhar além do que os outros insistiam em ver.
— Às vezes, eu me pergunto se realmente existe algo de bom em mim... — confessei, minha voz baixa.
Harriet se aproximou, segurando minhas mãos com carinho.
— Não duvide disso, querida. Cada pessoa carrega um brilho próprio. Às vezes, demora um pouco para que o mundo enxergue isso, mas acredite: seu brilho está aí, esperando o momento certo para aparecer.
Aquelas palavras acenderam uma faísca dentro de mim. Por um instante, quis acreditar nela, pensar que talvez houvesse algo em mim que ninguém ainda tinha visto.
Harriet sorriu, percebendo a mudança em minha expressão.
— Prometa que não vai deixar essas pessoas apagarem quem você realmente é — disse, sua voz cheia de ternura. — Um dia, eles vão perceber o quanto estavam errados sobre você. Até lá, mantenha essa força.
Eu a abracei, sentindo uma paz que há muito não experimentava. Harriet era uma das poucas pessoas que enxergavam algo de bom em mim, que acreditavam que eu poderia ser mais do que as humilhações diárias me faziam sentir.
Ao voltar para casa naquela tarde, ainda sentia o calor das palavras de Harriet. Porém, assim que entrei, minha mãe estava esperando na porta.
— O que aconteceu na escola hoje? — Ela perguntou, com uma expressão que não prometia nada de bom.
— Nada, mãe. Só um dia normal — respondi, tentando evitar mais uma discussão.
Ela ergueu as sobrancelhas e balançou a cabeça com desaprovação, como se minha resposta confirmasse todas as suas suspeitas sobre a minha "falta de dedicação".
— Se continuar preguiçosa desse jeito, não vai conseguir nada na vida. Você devia se inspirar na sua irmã.
Eu sabia que não tinha saída. Cada palavra dela me fazia sentir menor e mais sufocada. Era como se toda a minha existência estivesse errada aos olhos dela, como se eu fosse uma versão fracassada de alguém que nunca poderia ser.
— Eu estou tentando! — protestei, mas minha voz tremeu, traindo a força que eu queria demonstrar.
— Tentar não é suficiente. Você precisa ser melhor. Não nasci para ter um filho fracassado. — Ela disse, implacável, e tudo o que pude fazer foi balançar a cabeça, sentindo que estava presa em um ciclo de desamor e desvalorização.
Naquele momento, desejei mais do que tudo que as coisas fossem diferentes. Sonhava com um lugar onde pudesse ser apenas Âmbar, sem apelidos cruéis nem comparações constantes. Prometi a mim mesma que, um dia, minha chance de brilhar chegaria. Um dia, tudo mudaria. Mas, até lá, tudo o que eu queria era fugir, nem que fosse por breves instantes, da dor esmagadora que me envolvia.