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CAPÍTULO 6: O PRIMEIRO DESENHO

O apartamento cheira a lasanha congelada e desinfetante. Um cheio familiar, de rotina empobrecida. Lara está no sofá, envolta em um cobertor, assistindo a um reality show na TV com o volume baixo. Seu rosto está pálido, os olhos um pouco sem foco. A medicação paliativa a deixa sonolenta.

— Cheguei, — digo, pendurando meu casaco.

Ela vira a cabeça, um sorriso cansado iluminando brevemente seus traços. — Tudo bem? Comeu?

— No trabalho. E você?

— A fisioterapeuta veio. Dói menos hoje. — É uma mentira piedosa. Vejo a tensão nos cantos de sua boca.

Sento-me ao lado dela, pegando seus pés gelados e esfregando-os sobre o cobertor. O silêncio entre nós é confortável, mas sempre há a corrente subterrânea do medo. O relógio na parede faz um tique-taque, marcando as horas até a consulta com o Dr. Elias amanhã, onde o nome Neurovax será dito em voz alta, junto com um número que meu novo salário pode, finalmente, cobrir.

— Consegui o emprego, — digo, tentando entusiasmo. — É numa grande empresa farmacêutica. O salário é muito bom. Vai cobrir o tratamento novo.

Lara me olha, seus olhos escuros, tão parecidos com os meus, examinando meu rosto. — Farmacêutica? Qual?

— Lobo Holding. É grande.

Ela franze a testa, pensativa. — Acho que já vi esse nome… no frasco de um dos meus remédios para dor. Lobo. Tem um logo com um lobo.

Um frio percorre minha espinha. É possível. A holding tem subsidiárias, fábricas de genéricos. Mas a coincidência é perturbadora.

— Provavelmente, — digo, rapidamente. — Mas meu trabalho é no escritório central. Com o CEO. É mais… administrativo.

— CEO. Soa importante. — Ela pausa. — Ele é legal?

A imagem de Dante na reunião da escola, pálido, segurando o desenho da filha, surge na minha mente. Legal não é a palavra.

— É exigente. Mas justo. — Outra mentira. Não sei se ele é justo. Sei que ele está desesperado. Como eu.

Lara acena, satisfeita com a resposta. Sua energia está se esgotando. — Estou feliz por você, Clara. Você merece. Trabalha tanto.

O amor nela, a gratidão, é uma faca torcida no meu peito. Se ela soubesse o pacto que fiz, o silêncio que vendi… Se visse o desenho da menina sem rosto…

— Vou te levar ao Dr. Elias amanhã, — digo, mudando de assunto. — Vamos conversar sobre o Neurovax. Tudo vai dar certo.

Ela sorri, um sorriso verdadeiro desta vez, cheio de uma esperança que me parte o coração. — Acredito.

Mais tarde, quando ela já dorme, sento-me à pequena mesa da cozinha com uma xícara de chá frio. A bolsa está ao meu lado. Tiro a folha de papel dobrada, o print do fórum. Tiro também o meu caderno de anotações corporativas. Na última página, em letras pequenas e discretas, começo a escrever o que não posso digitar em lugar nenhum.

Dia 1: Reunião escolar. Desenho de Melissa. Mulher (Beatriz?) sentada, triste. Homem ao fundo (vigia?). Dante reconhece, fica assustado. Pergunta o que eu vejo.

Dia 2: Pesquisa Lúmen. Dados oficiais ok. Fórum de paciente: efeitos adversos graves não reportados? Usuário AnonBio: “dados não são o que parecem”.

Dia 2 (noite): Visita de V.S. ao meu escritório. Discurso sobre “quebrar ovos”. Aviso? Teste? Checa o que eu faço. Sabe da pesquisa.

Perguntas: Ligação entre Lúmen e morte de Beatriz? O que Melissa vê/sabe? Por que Dante tem medo do próprio sócio?

Fecho o caderno. São apenas anotações. Impressões. Nada concreto. Mas são as únicas coisas que me pertencem neste jogo. O resto – meu tempo, minha discrição, meu silêncio – pertence a Dante Lobo.

No dia seguinte, a rotina começa cedo. Levo Lara ao Dr. Elias. A consulta é tensa. Ele fala sobre o Neurovax com cautela, mencionando que é “inovador mas com um perfil de efeitos colaterais ainda em monitoramento”. Mostra os estudos. A eficácia é de 40% na estabilização da doença. Não é a cura. É uma chance. O preço é, de fato, astronômico. Mas agora, com o salário de Dante, é uma chance que posso comprar.

Assino uma pilha de formulários de consentimento. Minha mão treme apenas uma vez. Lara segura a minha outra mão, seus olhos cheios de uma luz que não via há meses. Vale qualquer preço, penso. Qualquer.

No caminho de volta para o trabalho, meu celular corporativo toca. É Dante.

— Senhorita Silva. Há uma mudança de planos. Você vai buscar Melissa na escola hoje. Há uma… situação. A orientadora ligou. Ela se recusa a sair da sala de arte. Leve-a diretamente para a minha casa. Marcos te leva. Eu estarei lá mais tarde.

— Entendido. Qual é o endereço?

Ele dá o endereço de um bairro que eu só conheço de revistas de arquitetura. A voz dele está controlada, mas há um fio de exasperação, de preocupação.

— E, Clara… — ele faz uma pausa. — Ela pode estar… difícil. Use paciência.

A casa não é uma casa. É uma fortaleza de vidro e concreto aparente, aninhada no topo de uma colina com vista para a cidade. Linhas limpas, grandes janelas, um jardim minimalista. Parece uma extensão do escritório: belo, caro e vazio.

A governanta, uma senhora de idade com um ar severo, me leva até a sala de arte. — Ela está aí desde que chegou da escola. Não quer sair.

A sala é luminosa, com prateleiras cheias de materiais. Melissa está sentada no chão, de costas para a porta, cercada por uma constelação de folhas de papel. Ela desenha freneticamente, sua mão pequena movendo-se com uma urgência quase violenta.

Aproximo-me devagar. — Melissa? Sou a Clara. Seu pai me mandou buscá-la.

Ela não reage. Continua desenhando. Olho para os papéis espalhados. São todos iguais. O mesmo tema, repetido com pequenas variações. A mulher do jardim. A senhora triste. Em alguns desenhos, ela está sentada. Em outros, de pé. Em um, ela parece estar caindo. E em todos, sempre, a figura ao fundo. O homem. Em um desenho mais recente, ele está mais perto. Melissa usa o lápis preto com tanta força que quase rasga o papel.

Sinto um nó na garganta. Esta não é apenas tristeza. É terror. Capturado em rabiscos de criança.

Me ajoelho no chão, a uma distância segura. — São desenhos muito poderosos, Melissa. — Digo em voz baixa. — A senhora… ela parece assustada.

A mão dela para por uma fração de segundo. Então, ela pega uma folha em branco nova. Não olha para mim. Começa a desenhar de novo, mas desta vez, seus traços são diferentes. Mais controlados. Ela desenha uma forma grande e retangular. Dentro dela, pequenos quadrados com números. Um elevador. Ao lado do elevador, ela desenha uma pessoa. Desta vez, é claramente uma mulher. Cabelo preso, saia. É uma versão tosca de mim.

Ela desenha uma seta saindo da mulher (eu) e apontando para o elevador. Então, no corredor ao lado do elevador, ela desenha outra pessoa. Mais alta, mais larga. Um homem. E entre o homem e a mulher, ela desenha uma série de pequenos raios, como de energia ou de conflito.

Ela para. Olha para o desenho, depois, lentamente, levanta os olhos para mim. Seu olhar é profundo, intenso, implorando para ser entendido.

Estou sem ar. Ela não desenha a cena do jardim. Ela desenha o andar executivo. O elevador privativo. Ela desenha Viktor Salles e eu. E os raios… uma discussão? Uma ameaça?

Como ela pode saber? Ela nunca esteve lá.

A menos que alguém lhe diga. A menos que ela ouça algo.

Ela pega um lápis vermelho. Desenha um pequeno coração no peito da figura que sou eu. Depois, com a mesma cor, desenha uma grande forma irregular sobre o homem, cobrindo-o quase completamente. Como um borrão. Como uma mancha. Como sangue.

Então, ela empurra o desenho na minha direção.

É um aviso. Um pedido de ajuda. Ou uma profecia.

Pego o papel, minhas mãos estão geladas. — Obrigada, Melissa. — Minha voz é um sussurro rouco. — Eu entendo.

Ela apenas me olha, e pela primeira vez, vejo algo além do silêncio em seus olhos. Vejo uma inteligência aguda e aterradora. Vejo uma testemunha.

Dobro o desenho com o mesmo cuidado com que Dante dobra o dela. Guardo-o no bolso do meu blazer, sobre o coração. O papel parece queimar minha pele.

A governanta aparece na porta. — O jantar está pronto, senhorita.

Melissa se levanta, silenciosa como um fantasma, e vai em direção à porta sem olhar para trás. Ela entrega sua mensagem.

Fico sozinha na sala de arte, rodeada pelos fantasmas que ela desenha. A mulher triste no jardim. O homem que observa. E agora, um novo quadro: o lobo no corredor, e eu, no meio, com um coração vermelho desenhado por uma criança que vê o que ninguém mais vê.

O silêncio de Melissa não é vazio. Está cheio de gritos. E dois deles agora estão dobrados dentro do meu bolso.

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