Início / Romance / SILÊNCIO COMPRADO / CAPÍTULO 7: ARQUIVO CONFIDENCIAL
CAPÍTULO 7: ARQUIVO CONFIDENCIAL

O desenho de Melissa é uma brasa no bolso do meu blazer. Durante todo o caminho de volta ao apartamento, no banco de trás do carro de Marcos, sinto seu peso, sua mensagem silenciosa queimando contra meu corpo. Ela sabe. Sabe sobre Viktor. Sabe sobre a tensão no andar executivo. E, de alguma forma, liga isso à tristeza da mãe no jardim.

Chego em casa exausta, mas agitada. Lara já dorme, o frasco do novo analgésico – um genérico da Lobo Farmacêutica, noto com um calafrio – na mesa de cabeceira. Sento-me à mesa da cozinha e espalho os dois desenhos: o da escola (uma cópia que fiz escondida no scanner do escritório) e o novo. Coloco-os lado a lado.

A senhora triste. O homem escondido. O elevador. Viktor e eu. Os raios de conflito. O coração vermelho. A mancha vermelha.

Não são apenas rabiscos de criança. É uma narrativa. Uma criança tentando contar uma história que não tem palavras para narrar. E eu sou parte dela agora. A mulher com o coração, parada entre o elevador e o perigo.

Meu telefone corporativo vibra. É um e-mail de Dante, enviado há cinco minutos.

Senhorita Silva,

“Preciso que você acesse o arquivo digital do projeto "Lumina" (código LY-779) no servidor seguro. Extraia todos os relatórios de auditoria interna dos últimos 18 meses. Criptografe em um arquivo ZIP com a senha padrão corporativa e envie para meu endereço pessoal, não o corporativo. Isso é prioritário sobre qualquer outra tarefa. Discretamente.”

D.L.

Lumina. Não é Lúmen. Um nome diferente. Um código. Prioritário. Discretamente. E a instrução mais reveladora: meu endereço pessoal, não o corporativo.

Ele não confia no sistema da própria empresa.

O coração acelera. Esta é a primeira brecha, a primeira admissão tácita de que há algo podre. E ele está me puxando para dentro.

Abro meu laptop, conecto a VPN corporativa. O servidor seguro é um sistema à parte, com uma autenticação de dois fatores. Minhas mãos estão suando enquanto digito as credenciais. Acesso é concedido.

A árvore de diretórios é vasta. Encontro a pasta LY-779 - Lumina. Dentro, subpastas: Ensaios Clínicos, Dados Brutos, Auditoria, Comercial.

Clico em Auditoria. Há dezenas de arquivos P*F, datados. Abro o mais recente, de três meses atrás. É um relatório de auditoria de processo de fabricação. Linguagem técnica densa. Tudo parece em ordem, assinado pelo auditor-chefe, um tal de Gustavo Moraes. Mas no final, nas observações, uma linha chama minha atenção: "Reitera-se a recomendação de revisão independente dos procedimentos de controle de qualidade do princípio ativo L-779, devido à inconsistência nos logs de temperatura dos reatores 3 e 7 no período notado."

Inconsistência. Revisão independente. Abro o relatório anterior. Outra observação: "Divergência menor entre lotes liberados e volumes de princípio ativo consumido. Justificativa fornecida pela Produção (V.S.) considerada satisfatória para este ciclo."

V.S. Viktor Salles. Justificativa satisfatória. Mas uma divergência é uma divergência.

Meus olhos ardem de focar na tela. Reúno todos os PDFs de auditoria, de dezoito meses  atrás. Padrões começam a surgir. Pequenas irregularidades sempre justificadas pela Produção (V.S.). Recomendações de revisão independente que parecem nunca ter sido implementadas. O auditor, Gustavo Moraes, parece um homem tentando tapar o sol com a peneira.

Lumina. Pesquiso no sistema. É o nome de código do projeto que deu origem ao Lúmen. O princípio ativo L-779.

Estou no limiar. Posso juntar os arquivos, criptografar, enviar e cumprir minha ordem. Lavar as mãos. Ou…

Hesito por apenas um segundo. Depois, clico na pasta Dados Brutos. Dentro, pastas com nomes de códigos de pacientes. LY-779-01, LY-779-02… Abro uma aleatória. São exames de sangue, ressonâncias, relatórios de progresso. Tudo anônimo.

Volto à raiz. Há um arquivo chamado Master_Subject_Log.xlsx. Abro. É uma lista de todos os pacientes do ensaio clínico original. Código, data de ingresso, idade, diagnóstico, desfecho.

Minha vista corre pela coluna dos desfechos. Melhorou, Estável, Abandono, Óbito.

Óbito. Há três marcados. Códigos 12, 19 e 33. A data do óbito do paciente 33 chama minha atenção. É de seis meses atrás. Um mês após a aprovação final do Lúmen.

Claro. Ensaios clínicos têm mortes. São pacientes graves. Mas uma morte pós-aprovação, ainda dentro do período de estudo…

Procuro pelo código 33 nos dados brutos. Encontro a pasta. O último relatório do médico é lacônico. "Paciente 33 apresenta deterioração neurológica abrupta seguida de falência múltipla de órgãos. Causa atribuída à progressão da doença de base. Não relacionado ao investigacional."

Não relacionado ao investigacional. A frase padrão.

Mas então, no fundo da pasta, há um arquivo de imagem. Um scan de um formulário preenchido à mão. É um Relatório de Evento Adverso Grave. O formulário está preenchido de forma diferente. Na linha "Descrição do Evento", uma letra apertada, não a do médico principal, escreve: "Crise convulsiva intratável seguida de parada cardiorrespiratória. Paciente em dose máxima de L-779. Suspeita de reação idiossincrática." A assinatura é ilegível. Mas a data é a mesma do óbito.

Há uma nota de rodapé, carimbada: "Versão não oficial. Não integrar ao arquivo principal. - V.S."

O sangue parece parar nas minhas veias. Versão não oficial. Não integrar ao arquivo principal. Assinado por Viktor Salles.

Eles escondem um relatório. Um relatório que liga a morte do paciente 33 ao princípio ativo.

Fecho os olhos, enjoada. Não é só corrupção corporativa. É sangue. É uma vida apagada com um carimbo.

E Beatriz sabia. Ela encontrou as  correspondências. Encontrou isso. E por isso morreu.

De repente, as peças se encaixam com um clique sombrio e horrível. O Lúmen não é apenas fraudulento; é perigoso. Viktor está escondendo mortes. Dante suspeita, ou sabe de parte, e está tentando obter provas. Beatriz foi silenciada. E Melissa… Melissa viu algo. Ouviu algo. Sabe que a mãe está triste por causa de um homem. O homem que agora faz uma mancha vermelha nos desenhos dela.

Minhas mãos tremem violentamente. Tenho que juntar tudo. Enviar para Dante. Esta é a prova que ele precisa.

Começo a agregar os arquivos. Incluo o relatório de auditoria mais recente, os antigos com as inconsistências, e, depois de uma hesitação fatal, copio a pasta do Paciente 33 e o arquivo Master Log. É uma violação massiva do protocolo. É a minha cabeça na guilhotina se algo der errado.

Crio o arquivo .ZIP, criptografo com a senha corporativa e vou enviá-lo para o e-mail pessoal de Dante.

Na hora de anexar, paro. Viktor monitora o tráfego do servidor? Ele tem algum alerta para o projeto Lumina? Se eu enviar agora, da minha conexão, ele saberá.

Preciso de um lugar público. Neutro.

Olho para o relógio. 22h17. Fecho o laptop, desconecto a VPN. Pego minha bolsa, o laptop, um pen drive. Visto um casaco.

— Para onde vai? — A voz de Lara, fraca, vem do quarto.

— Preciso resolver algo urgente do trabalho, — digo, tentando soar normal. — Volto logo. Toma seus remédios.

Ela murmura algo e vira-se.

Saio. O ar noturno é frio. Caminho rápido até uma lanchonete 24 horas a três quarteirões de distância. O lugar está quase vazio, um casal conversando baixo, um motoboy comendo um sanduíche.

Peço um café que não vou beber e sento em um banco no canto, de costas para a parede. Conecto ao Wi-Fi público, inseguro. Abro o laptop, ativo uma conexão VPN pessoal paga (um resquício de paranoia da minha época jurídica). Acesso uma conta de e-mail descartável que criei anos atrás.

Só então, com camadas de anonimato frágeis, anexo o arquivo .ZIP e envio para o e-mail pessoal de Dante. No assunto, escrevo apenas: “De: CS. Assunto: LY-779”.

Clico em enviar. O ícone de progresso roda interminavelmente. Finalmente, a mensagem some.

Desligo o laptop. Meu corpo inteiro está tremendo, de adrenalina, de medo, de nojo. Acabo de cruzar uma linha da qual não há retorno. Não sou mais apenas uma secretária desesperada. Sou uma conspiradora. Uma delatora em potencial.

Enquanto caminho de volta para casa, olho para as janelas iluminadas dos prédios. Em algum lugar, Dante Lobo está abrindo aquele e-mail. Em algum lugar, Viktor Salles talvez já esteja sendo alertado por algum sistema silencioso. E em algum lugar, uma criança de sete anos dorme, seus pesadelos transbordando para o papel na forma de uma senhora triste e uma mancha vermelha.

Chego em casa e vejo a luz do quarto de Lara acesa. Ela está sentada na cama, segurando seu tablet.

— Clara? — Sua voz está estranha. — Você trabalha mesmo na Lobo Holding?

O coração para. — Sim. Por quê?

Ela vira o tablet para mim. Está na página de notícias de um portal de economia. A manchete principal: "Lobo Holding anuncia parceria bilionária para distribuição do Lúmen na América Latina. Diretor Viktor Salles celebra 'o futuro da neurologia'."

Abaixo da manchete, uma foto grande. Viktor Salles, com seu sorriso amplo e confiante, apertando a mão do presidente de uma gigante estrangeira. Ao fundo, ligeiramente desfocado, mas inconfundível, está Dante Lobo. Ele não está sorrindo. Está olhando para a mão de Viktor, e sua expressão, capturada pelo fotógrafo no instante errado (ou certo), não é de celebração. É de pura, profunda e silenciosa suspeita.

Lara me olha, seus olhos cheios de uma confusão inocente. — É esse seu chefe? O homem atrás? Ele parece… bravo.

Pego o tablet, minhas mãos estão frias. Estudo a foto. A tensão é palpável. Pública. Dante não está escondendo suas desconfianças de Viktor. E Viktor, ao centro, sorri como se tivesse acabado de ganhar o jogo.

— Sim, — digo, minha voz rouca. — Esse é o homem do sorriso. E o outro… o outro é o homem que paga pelo seu tratamento, Lara.

E, pela primeira vez, percebo a horrível ironia. O dinheiro que vai salvar minha irmã vem do mesmo veneno que pode ter matado outras pessoas. Do mesmo poço que envenenou a vida de Melissa e silenciou Beatriz.

Estou presa no meio. Com um coração vermelho desenhado no peito e os arquivos de um crime nas mãos.

O café frio da lanchonete sobe amargo na minha garganta. O jogo começou de verdade. E as únicas peças que tenho são os gritos silenciosos de uma criança e a sombra de uma mulher morta

Continue lendo este livro gratuitamente
Digitalize o código para baixar o App
Explore e leia boas novelas gratuitamente
Acesso gratuito a um vasto número de boas novelas no aplicativo BueNovela. Baixe os livros que você gosta e leia em qualquer lugar e a qualquer hora.
Leia livros gratuitamente no aplicativo
Digitalize o código para ler no App