Mundo de ficçãoIniciar sessãoA sala não é nada do que eu espero. Nada daquele cubículo de vidro cheio de arrogância e vista panorâmica que eu imagino para um CEO. É uma sala de reuniões grande, sim, mas vazia. Austera. As paredes são de um cinza claro, frio, quase prateado. A mobília é toda em linhas retas, dura, madeira escura e fria. Não há um único objeto pessoal. Nenhuma foto, nenhum troféu, nenhum vaso de planta tentando trazer vida. Só uma mesa retangular enorme, um aparador com garrafas de água e copos de cristal, e uma tela preta e muda na parede.
Parece uma cela. A antessala de um julgamento. O lugar perfeito para se assinar a própria sentença.
Estou sentada numa das cadeiras de couro preto, a minha pasta — com aquele currículo mentiroso por omissão, escondendo todo o desespero que me traz até aqui — bem firme no meu colo. Minhas mãos estão geladas, os dedos dormentes. Respiro fundo lá fora, tento puxar do fundo a Clara que eu costumo ser: a assistente jurídica precisa, metódica, que não se intimida com advogado velho e gritão. Mas aqui, dentro desta sala fria, ela parece uma memória distante.
A porta se abre sem fazer um som.
Dante Lobo entra. Ele é maior pessoalmente. A altura, a largura dos ombros sob o terno azul-marinho impecável. Mas não é o tamanho. É a presença. Ele ocupa o espaço com uma quietude absoluta, um vazio que suga todo o barulho, toda a energia da sala. Os olhos dele, da cor de um carvão molhado, passam por mim num relance rápido, seco. Sem interesse. Sem calor. Ele não estende a mão. Nem sequer inclina a cabeça. Apenas caminha até a cabeceira da mesa e se senta, como um rei num trono vazio.
— Clara Silva. — A voz dele é grave, limpa, sem nenhuma emoção. Soa como um veredito, não um cumprimento.
— Senhor Lobo. Agradeço pela oportunidade. — Minha própria voz sai, estranhamente estável, do meu corpo. Soa como se fosse de outra pessoa.
Ele ignora a formalidade. Abre uma pasta fina de couro que traz consigo. — Seu currículo é adequado. Experiência em ambiente jurídico é útil. Discrição é obrigatória. — Ele levanta os olhos. Olhos que parecem furar o meu crânio e ler os pensamentos por dentro. — O que o escritório Tavares não me diz é o motivo da sua saída. E o que te traz para esta cadeira.
A pergunta é uma facada. Direta, sem aviso, sem rodeios. A verdade — que eu sou dispensada, cortada nos custos depois de pegar empréstimos e faltar trabalho para levar a Lara aos médicos — é um risco enorme. Mas uma mentira bem-feita é um risco maior ainda. Esse homem parece o tipo que cheira mentira no ar, como um predador fareja o medo.
— O escritório passa por uma reestruturação, — começo, escolhendo cada palavra como se estivesse pisando em cacos de vidro. — Minha posição é considerada… redundante. — É uma verdade pela metade, uma verdade covarde. — Busco esse posto porque entendo que ser secretária executiva na Lobo Holding é mais que organizar agenda. Exige um nível de compromisso e sigilo que… que combina com a minha ética de trabalho. — A frase soa oca na minha própria boca. Falsa. Ensaiada.
Ele nem pestaneja. — Compromisso. — Ele repete a palavra, deixando-a rolar na língua, examinando-a. — E o que te move, Clara? Ambição? Ou… necessidade?
Meu coração dá um salto violento contra as minhas costelas. Necessidade. A palavra certa. A palavra perigosíssima.
— A ambição de fazer um trabalho excepcional num ambiente desafiador, — digo, sentindo a mentira queimar como ácido na minha língua.
Ele emite um som baixo, quase um bufado de desdém. — Pouquíssima gente é motivada só pela tal da excelência. A maioria é movida por recompensas. Ou pelo medo. — Ele fecha a pasta com um clique seco. — Você não parece do tipo que se assusta. E seu último salário não condiz com alguém movido só por ganância. Tem uma coisa fora do lugar aqui. E eu detesto coisas fora do lugar.
Ele se levanta, vai até o aparador. Pega uma garrafa de água, enche um copo de cristal. Não me oferece nada. O gesto é pequeno, calculado, um teste de poder sutil. Uma demonstração clara de quem está no controle.
— Vou ser direto, Clara. A vaga não é por incompetência. É por uma necessidade específica. Minha filha, a Melissa, tem… dificuldades. Precisa de terapeutas, médicos, a escola tem que ser adaptada. Minha vida profissional é imprevisível. Pesada. Eu preciso de alguém que possa ser um ponto fixo. Que possa, em certos momentos, agir como se fosse uma extensão de mim na vida dela. Alguém em quem ela possa confiar, mesmo quando eu não puder estar lá.
Ele se vira, me encarando de frente. — Isso vai muito além de marcar consulta no calendário. Pode envolver buscá-la na escola, levá-la a sessões, ver se ela está bem. Exige paciência. Discrição. E uma… empatia resistente. É uma função híbrida. Metade secretária executiva, metade… suporte pessoal. É algo com o que você se compromete?
A pergunta vem carregada, pesada. Ele não está perguntando se eu consigo. Ele pergunta se eu topo. É um pacto. Um acordo de sangue que ele me propõe.
É a deixa. A abertura que o meu e-mail, desesperado, cria.
— Senhor Lobo, — falo, engolindo o último pedaço de orgulho que me resta. É um gosto amargo. — Meu compromisso é total. Entendo que uma função assim exige uma dedicação que não tem horário de entrada e saída. Estou disposta a dar essa dedicação. A minha vida pessoal é… simples. Consigo priorizar as necessidades da empresa e da sua família.
Ele me observa. Os olhos dele escaneando cada micro unidade do meu rosto, cada pequeno tremor. Ele procura o desespero. E ele está lá, eu sei. Eu só espero que ele leia aquilo não como fraqueza, mas como combustível. Como algo que me fará ser confiável, porque eu não terei para onde correr.
— Simples, — ele repete, com um tom que deixa claro que ele não acredita. — E o que você espera em troca por essa… dedicação total?
Aqui está. O momento da verdade. As minhas mãos suam frio dentro do meu colo. — Um salário compatível com a responsabilidade. E… estabilidade. A garantia de que isso é um compromisso de longo prazo.
— Estabilidade, — ele ecoa. E pela primeira vez, vejo um brilho de algo nos olhos dele. Não é simpatia. É reconhecimento. Ele viu a necessidade. Identificou a fome. — O salário será o dobro do que você recebia no Tavares. Bônus por desempenho. Plano de saúde premium. E um contrato de confidencialidade, que você vai assinar sem hesitar, cobrindo tudo dos negócios da Lobo Holding e da minha vida privada. Qualquer vazamento, por mínimo que seja, resulta em demissão imediata e processo judicial. Está claro?
O valor é um soco no meu estômago. Um alívio e um terror ao mesmo tempo. É mais do que eu ouso sonhar. É a porta do tratamento da Lara se abrindo de uma vez. O preço? A minha assinatura num papel que provavelmente me dá zero direitos e todas as obrigações do mundo.
— Perfeitamente claro, — ouço a minha voz dizer, como se fosse de longe.
— Tem mais uma coisa. — Ele vai de volta para a mesa. Pega um tablet, toca na tela e o desliza na minha direção, sobre a madeira lisa. — Isto é um teste de perfil. Avalia tomada de decisão sob pressão, ética… e lealdade. Você faz agora, aqui. Tem trinta minutos.
Olho para a tela. A primeira pergunta brilha, inocente e traiçoeira: "Você presencia um colega desviando pequenos valores para cobrir uma dívida médica da família. Você: a) Reporta imediatamente; b) Confronta o colega em particular; c) Ignora, pois não afeta a empresa; d) Oferece ajuda financeira para resolver o problema."
Um teste. Não de habilidade. De caráter. Ou melhor, de que pedaço do meu caráter eu estou disposta a vender agora.
Pego o tablet. Minhas mãos, agora, não tremem mais. Estão frias. Determinadas.
Se ele quer alguém que coloque a lealdade à empresa acima de tudo, acima até da própria compaixão, é isso que ele vai ter. Se ele quer alguém que veja tons de cinza onde os outros só veem preto e branco, é isso que ele vai ter.
Pela Lara, eu passo em qualquer teste. Pela Lara, eu me torno qualquer pessoa que ele precisar que eu seja.
Olho para Dante Lobo. Ele está de costas para mim, olhando para a parede vazia e cinza, como se esperasse que a resposta dele estivesse escrita ali.
Eu baixo os olhos. E começo a responder.







