Mundo de ficçãoIniciar sessãoO silêncio aqui dentro tem peso. É uma coisa grossa, pesada, que enche o ar e faz a respiração ficar curta, difícil. Meus olhos não param. Eles correm, desesperados, pela linha onde a parede bege encontra o chão cinza. É uma linha perfeita. Reta, limpa, inquestionável. Prefiro mil vezes focar nela do que olhar para os rostos ao meu redor – a mulher com os olhos inchados e vermelhos, o homem balançando o joelho num ritmo louco, a garota jovem mordendo as unhas até sangrar, sem nem perceber. A linha não sofre. A linha não sente dor. Ela simplesmente está ali, firme, enquanto tudo desmorona.
Minha irmã Lara está atrás da porta dupla, com aquele símbolo de raio azul estilizado. “Eletroencefalograma de Longa Duração”, diz a placa. Um nome bonito, técnico, para um procedimento que vai mapear as tempestades elétricas que acontecem dentro do seu cérebro. “Crises de ausência”, é o que o médico diz. Momentos em que ela simplesmente… apaga. Some. E volta alguns segundos depois, confusa, perdida, como se tivesse caído em um buraco escuro no meio do tempo.
O Dr. Elias sai há quinze minutos. Dá um aperto de ombro que deveria ser reconfortante, mas que só me faz sentir o peso dos ossos dele sob o jaleco branco, a fragilidade de tudo. — Vamos ter um panorama melhor, Clara — ele diz, com uma voz suave demais. — E então podemos sentar e discutir as opções.
Opções. A palavra fica ecoando na minha cabeça, batendo como um sino de bronze, pesado. As opções, no fundo, se resumem a uma só, só uma: o tratamento com o Neurovax, da Cortex Farmacêutica. Experimental. A eficácia ainda não é certa. E o custo… o custo mensal é o mesmo que o aluguel, a comida e todas as contas de uma família inteira. Por doze meses. No mínimo.
Meu telefone vibra no bolso do casaco. Um tremor sujo, familiar. É mais uma notificação do aplicativo do banco. Um lembrete educado, silencioso, de que o limite do meu empréstimo consignado — aquele que eu consigo quando ainda era assistente jurídica, quando ainda tinha um salário digno — está se esgotando. Está acabando. E com ele, se vão todas as minhas… opções.
Levanto-me. Minhas pernas estão um pouco trêmulas, bambas. A linha perfeita da parede me guia, é meu fio condutor até o corredor. Preciso de ar. Mesmo que seja só o ar condicionado, estéril, reciclado e frio deste hospital. Caminho sem rumo, passando por quartos com portas entreabertas — de onde saem gemidos baixos, suspiros —, desviando de carrinhos de medicamentos que tilintam, ouvindo o zumbido baixo e constante dos intercomunicadores. É um som de desespero disfarçado de rotina.
Minha mão, lá no fundo do bolso, esfrega a borda lisa de um cartão de visita. Dante Lobo. Lobo Holding Farmacêutica. O nome surge numa conversa de corredor, ouvida por acaso, quando eu ainda estou no escritório de advocacia. Um colega, falando baixinho, comenta sobre a “caça” por uma nova secretária executiva. — O cara é um ermitão, viúvo, tem uma filha muda… mas paga em ouro, Lucas. Em ouro puro. E exige confidencialidade de agência de espionagem. É um cara fechado.
Na época, ouço e ignoro. É só mais uma fofoca de escritório. Agora, o cartão é um ímã no meu bolso. Queima. Paga em ouro. As quatro palavras brilham na minha mente ofuscada, são a única luz fraca e distante no fim de um túnel que está desmoronando, pedra por pedra, atrás de mim.
Encontro uma pequena área de convívio, vazia, com algumas poltronas de tecido azul, gastas. Sento-me. Meu corpo afunda. Tiro o cartão. O papel é espesso, pesado, de alta gramatura. A fonte do nome é sóbria, imponente, sem firulas, sem adornos. Como deve ser o homem. Como imagino que ele seja.
Antes que eu possa pensar melhor, antes que o medo racional tome conta, minhas mãos, movidas por um impulso que nasce das minhas vísceras, do meu instinto de sobrevivência, e não do meu cérebro, já estão digitando um e-mail no meu celular. O rascunho do meu currículo, atualizado às pressas, está anexado. A carta de apresentação é curta, direta, seca. Não falo das minhas habilidades organizacionais, do meu conhecimento jurídico. Falo de discrição. De lealdade inabalável. De eficiência sob pressão extrema. E, no final, deixo escapar a verdade nua, crua, como uma isca que espero que ele morda: — Estou disponível para comprometer-me integralmente com as necessidades da sua empresa e da sua esfera pessoal. Flexibilidade total de horários. Dedicação exclusiva.
Comprometer-me integralmente. A frase soa no meu peito. Soa como uma venda da minha alma, do meu tempo, do que resta de mim. Talvez seja exatamente isso. Talvez não haja outra saída.
Envio o e-mail. Aperto o botão antes que o medo me paralise, antes que eu apague tudo. A mensagem some da tela com um whoosh silencioso, um suspiro digital. Sinto um vazio imediato no estômago, seguido por uma pontada aguda, afiada, de ansiedade pura. Meu Deus. O que foi que eu fiz?
Minha atenção é atraída, arrancada do meu caos interno, por um movimento do outro lado do corredor de vidro. Um homem alto, de terno cinza-escuro impecável, entra na ala pediátrica. Ele carrega uma aura de severidade, de fronte fechada para o mundo, mas… seus movimentos são cuidadosos. Delicados, até. Não é um médico. A postura é de poder, de comando, não de ciência. Ele segura a mão de uma menina pequena, de cabelos escuros como a noite e olhos enormes, profundos. A menina não olha para os lados. Ela olha fixamente para o chão, seus passos pequenos e arrastados tentando, em vão, acompanhar a passada larga e determinada do homem.
É ele. Dante Lobo. Tenho uma certeza absoluta, visceral. A coincidência é grande demais, pesada demais, para não ser um sinal. Um sinal perverso do universo, me mostrando justo agora a quem eu acabo de me vender.
Eles param diante da sala de fisioterapia. O homem, Dante, se abaixa. Seus ombros, largos e fortes sob o tecido caro do terno, ficam tensos, rígidos. Ele fala algo para a menina, baixinho. Ela não responde. Não olha para ele. Apenas balança a cabeça, negando, negando, negando. Ele insiste. Não consigo ouvir a voz dele através do vidro, mas a postura dele grita: é uma frustração contida, amarga, quase dolorosa de se ver. Ele coloca uma mão grande no ombro minúsculo dela, e a menina se encolhe, um movimento quase imperceptível, mas de uma rejeição tão clara, tão profunda, que dói só de observar.
Algo dentro de mim se contrai, se aperta. Não é pena. É reconhecimento. Um espelho. Aquele homem, dentro daquela armadura reluzente de poder e dinheiro infinito, está tão desesperado quanto eu. Tão perdido. Só que o desespero dele tem um rosto: o rosto daquela criança silenciosa, daquela menina que vive num mundo só dela.
Ele se levanta, passando a mão pelo rosto, num gesto de cansaço infinito. Por um segundo, apenas um segundo, a máscara fria do executivo cai, se despedaça, e eu vejo apenas o cansaço. A impotência. A mesma impotência que me corrói por dentro todas as noites, diante das pilhas de contas e do prognóstico silencioso do Dr. Elias.
Foi nesse segundo que ele vira o rosto. E os olhos dele, escuros como poços e afiados como lâminas, encontram os meus através do vidro. Não há surpresa neles. Nenhuma. Há uma avaliação gelada, instantânea, total. Ele não desvia o olhar. É como ser escaneada por uma máquina, um dispositivo que não mede suas qualificações ou seu currículo, mas sua capacidade de suportar peso. Quanto fardo você aguenta carregar sem quebrar.
A menina Melissa — segundo lembro vagamente daquela conversa de corredor —, levanta a cabeça pela primeira vez. Ela não olha para o pai. Olha para mim. Direto para mim. Seus olhos são poços profundos, de uma lucidez perturbadora, assustadora para uma criança. Ela me observa. Por um, dois, três segundos intermináveis. Então, lentamente, com uma calma sobrenatural, ela solta a mão do pai, pega uma caneta e um bloco de anotações que uma enfermeira deixa em uma mesa próxima, e começa a desenhar. Com uma concentração feroz.
Dante segue o olhar dela, e depois volta os olhos para mim. A expressão dele agora é impenetrável de novo, uma fortaleza. Mas naquele breve instante de conexão — com a menina, com o desespero mudo dele —, eu entendo. Compreendo tudo.
Esta não será uma entrevista de emprego comum. Será um teste. Um teste para ver até onde eu estou disposta a ir. Que linhas eu estou disposta a cruzar. E aquele olhar, aquele silêncio pesado e compartilhado através do vidro frio, é a primeira pergunta. A única que importa.
A porta da sala de exames se abre com um clique seco. — Clara Silva? — A enfermeira me chama, com uma voz rouca de quem repete nomes o dia todo.
Dou um último olhar para o corredor. Dante já está se virando, voltando toda a sua atenção para a filha. Melissa entrega-lhe o desenho. De onde estou, só consigo ver um borrão de linhas verdes, um rabisco sem sentido.
Viro as costas. Caminho de volta em direção à minha irmã, ao meu próprio desespero que cheira a antisséptico e medo, com a sensação nítida, certeira, de que acabo de cruzar uma linha. A linha perfeita, reta e segura da parede fica para trás, no passado. Agora, estou pisando em um território sem mapa, sem geometria, onde as únicas linhas que existem são as tênues, as invisíveis, as que separam o que ainda é aceitável do que se torna simplesmente necessário.
E eu… eu já não sei mais onde traço a minha. Já não sei mais se consigo vê-la.







