A festa começava a esvaziar.
Convidados se despediam com sorrisos satisfeitos, brindes encerravam acordos silenciosos, e o salão, pouco a pouco, perdia seu brilho dourado para dar lugar a uma penumbra carregada de exaustão e intenções ocultas.
Eu me mantive perto de Paolo o máximo possível. Fingimos sorrisos, trocamos cumprimentos, agradecemos por presenças hipócritas — o ritual de sempre. que Paolo já estava acostumado mais eu não e minha energia foi sugada.
Foi quando uma das criadas se aproximou, discreta, e me entregou um pequeno envelope preto.
— Para a senhorita. Disseram que era particular.
Meus dedos hesitaram. O papel tinha cheiro de perfume masculino barato misturado com algo mais... azedo. A caligrafia era firme, elegante, mas havia uma violência contida em cada curva da letra.
Abri com cuidado.
Uma única frase.
Escrita com tinta preta, como se fosse um sussurro envenenado.— Terei você.
Senti o chão se mover sob meus pés. Meu coração disparou como um alarme mudo.
Levantei os olhos, instintivamente. E ele estava lá.Arturo.
De longe. Parado próximo à escadaria do salão, meio envolto pela sombra de uma cortina. Os olhos fixos em mim. Sem pressa, sem disfarce. Um sorriso torto no canto da boca.
Segurava um copo de uísque com uma mão. Com a outra, mexia no anel da família, girando-o no dedo como quem afia uma faca.
Respirei fundo, tentando manter a compostura. Escondi o bilhete em minha luva, como se nada tivesse acontecido.
— Isa, está tudo bem? — Paolo perguntou, notando a tensão em meu corpo.
Olhei para ele. E, pela primeira vez naquela noite, menti.
— Sim. Só estou cansada.
Seus olhos buscaram os meus, desconfiados, mas ele assentiu.
E naquele momento, eu soube: não podia mostrar fraqueza. Não ainda , Não pra ele.Arturo desapareceu da escadaria como uma sombra que se recolhe. E mesmo com todo o brilho da festa, com todas as promessas de proteção ao meu redor, um arrepio percorreu minha espinha como um aviso.
A caçada havia começado.
E eu era a presa.
O silêncio da manhã seguinte tinha um gosto estranho.
Como se algo estivesse fora do lugar... escondido, prestes a explodir.Paolo já estava em seu escritório particular, revendo relatórios de aliados e movimentações suspeitas da noite anterior. O rosto sério, as mangas da camisa arregaçadas, e o olhar de quem já pressentia o mal. Sempre pressentia. Ele não se tornara Dom por acaso.
Foi quando Maria — uma de suas criadas mais antigas, de confiança — bateu à porta e entrou, hesitante.
— Diga — murmurou Paolo, sem desviar o olhar dos papéis.
— Achei isso na lixeira do quarto da senhorita Isadora, senhor...
Ela estendeu o envelope preto pequeno . Ainda cheirava a perfume barato e ameaça.
Paolo ergueu os olhos. Pegou o bilhete com calma cirúrgica. Leu.
Não uma, mas três vezes.— Terei você.
Silêncio.
Um silêncio tão denso que Maria recuou dois passos, sem saber se tinha feito certo ao entregar aquilo.
Ele se levantou devagar, como um vulcão antes da erupção.
— Quem entrou no quarto dela? Quem mais sabia disso?
— Ninguém, senhor. Ela mesma deve ter jogado fora. Mas o envelope estava escondido entre os papéis. Só vi porque fui esvaziar o cesto.
Paolo fechou os olhos por um segundo. Respirou fundo. O som do papel sendo amassado em seu punho pareceu mais alto que qualquer explosão.
— Onde ele está? — sussurrou. — Arturo.
— Ele voltou pra casa esta manhã. Teve a audácia de deixar um presente na portaria. Um colar... com uma rosa negra pendurada.
O copo de uísque na mesa foi parar na parede com um estilhaço seco.
Paolo virou-se para a janela, os punhos cerrados.
— Chega.
Sua voz agora era puro aço.
— Mande mateus investigar todos os passos de Arturo nas últimas semanas. Quero saber onde anda, com quem dorme, o que come, o que pensa. Se ele espirrar... eu quero saber antes do lenço chegar ao nariz.
Virou-se de volta, os olhos ardendo.
— E duplique a segurança da minha irmã. Sem que ela perceba.
Maria assentiu e saiu apressada.
Paolo ficou ali. Parado.
O bilhete ainda pulsando em sua mão fechada. Não era apenas raiva. Era fúria ancestral. Era o irmão, o protetor, o Dom... despertando.Arturo havia cruzado a linha.
E agora... seria caçado.Ele foi sozinho.
Sem seguranças. Sem anúncio. O carro preto deslizou até a mansão dos Salvatore como um presságio de tempestade.Os capangas à porta sequer ousaram barrá-lo. Bastou um olhar e o único que tentou levou um tiro na cabeça .
Um Dom não pede passagem — ele toma.Arturo estava na sala de estar, degustando seu uísque com aquele eterno ar de superioridade asquerosa. Um leve sorriso nasceu em seu rosto quando viu Paolo entrar, como se já soubesse o motivo da visita... e ainda assim achasse graça.
— Que honra, Dom Ortega... — começou ele, com falsa cortesia.
Os socos vinheram antes das palavras.
Seco. Rápido. Cirúrgico.
O som do osso quebrando se misturou ao do copo de cristal estilhaçado no chão.Arturo caiu sobre a mesa de centro, gemendo, tentando se levantar. Mas Paolo o puxou pela gola do terno e o jogou contra a parede. O impacto fez um quadro cair.
Outro soco. Outro. Mais um.
O sangue já escorria da boca de Arturo, e mesmo assim ele ria.
Uma risada rouca, debochada, entrecortada por cusparadas vermelhas.— Então é isso? — ele sussurrou, cuspindo no chão. — O Dom perfeito perdeu a compostura... por uma mulher? Pela sua irmãzinha?
Paolo o segurou pelo colarinho, aproximando o rosto do dele.
— Ela é minha alma. Meu sangue. E você, verme... ousou tocá-la com palavras.
Soltou-o, deixando Arturo cair de joelhos, tossindo sangue e orgulho ferido.
Paolo se afastou lentamente. Ajustou a manga da camisa. Pegou um lenço do próprio bolso e limpou o sangue da mão com a calma de quem acaba de tomar um café.
Na porta, parou.
Se virou só por um instante.
— Fique longe dela ou eu apago sua existência da terra .
Sua voz foi baixa. Mortal.
E então foi embora. Sem pressa.
Sem olhar para trás.Arturo ainda ria. Uma risada que escondia ódio. Orgulho ferido. E uma promessa silenciosa de vingança.
Mas Paolo já sabia.
Esse jogo não terminaria ali.
A guerra silenciosa havia começado.Os dias seguintes à festa foram... estranhos.Paolo estava diferente. Mais quieto, mais sombrio. Ele passava longos períodos trancado no escritório, e quando me olhava, seus olhos carregavam algo que eu não conseguia decifrar. Uma mistura de medo e fúria.A segurança aumentou, e eu percebi.Homens que antes ficavam discretos, agora me seguiam por todos os lados. Cecilia dizia que era apenas "prevenção". Paolo dizia que era "protocolo". Mas eu sentia. Algo tinha mudado.À noite, o luar parecia mais frio. O vento mais denso. Como se até a casa soubesse que algo se aproximava.Eu estava no jardim dos fundos, lendo um livro sob a luz quente do pôr do sol. Duas seguranças femininas estavam próximas, conversando em voz baixa, como sempre. Tudo parecia normal. Tranquilo demais.Foi então que ouvi o farfalhar seco entre os arbustos.Rápido. Preciso. Calculado.Antes que eu pudesse me levantar, um vulto negro saltou da escuridão — mas os seguranças reagiram na mesma hora. Um deles pulou s
A sala estava lotada. O ar carregado. Três líderes das máfias aliadas da Espanha estavam reunidos com Paolo para selar um acordo que levaria meses de articulação — e representava um avanço no cerco contra Arturo.— Estamos com você, Paolo. Mas não haverá volta. — Eu nunca quis volta. Só justiça. — respondeu ele, firme, a mandíbula tensa.Mateus se manteve calado, observando, como sempre fazia — olhos atentos a cada respiração, a cada hesitação nos rostos ali presentes.Paolo ergueu a taça de vinho. — Que esse pacto leve o nome de Arturo para o chão.E então… o telefone tocou.O som cortou o ar como uma lâmina.Ele olhou o visor. Número desconhecido.Atendeu. — Ortega.O silêncio do outro lado era como um vácuo.Até que a voz surgiu. Baixa. Arrastada. Cruel.— O tesouro da sua vida... agora é meu.Arturo.Paolo congelou. O sangue gelou por um segundo — e então ferveu. — Filho da puta. O que você fez?Uma risada. — Ela está comigo. E tão bonita quanto na festa. Uma pena que voc
O casebre era úmido. Fedia a mofo e ferrugem. Mas nada… nada se comparava ao que ela viveu ali dentro.Arturo chegou transtornado. O olhar perdido, os lábios trêmulos, rindo como um louco.— La Trinità… — ele cuspia o nome com ódio. — Eles estão vindo… A porra da Trindade! A elite italiana!Ela já ouvira esse nome nos sussurros da máfia. Sabia o que representava. Leonardo. Fellipo. E… Paolo.Sua respiração quase falhou. Eles estavam perto. Muito perto.Mas Arturo também sabia.E, como um cão encurralado, ele resolveu ser cruel.— Se não posso ter você, vou deixar sua lembrança gravada no sangue de todos eles. — Vamos ver o quanto seu irmão te ama, depois de ver o que sobrou de você.Os capangas cavaram com pás velhas no corredor. Ela ouviu tudo.— Aqui mesmo. Um túmulo. Uma lenda enterrada viva. — Nua. Fraca. Sem nome. Sem identidade.Isadora estava caída no chão de madeira, o corpo coberto de hematomas. Os joelhos ralados. O sangue escorrendo entre as pernas. Mas não gritou.
O quarto do hospital estava silencioso, exceto pelos bips do monitor cardíaco e o som baixo da televisão que ninguém realmente assistia. Isadora estava acordada, sentada na cama, envolta por um cobertor branco e macio. A noite lá fora pintava as janelas de sombras azuladas, e o cheiro de lavanda do difusor tornava o ar um pouco mais suportável.Fernando tinha saído por alguns minutos para resolver uma questão com os médicos, e ela se viu sozinha pela primeira vez em dias. E foi nesse silêncio que o celular vibrando ao lado da cama quebrou o momento de paz.“Número restrito.”Seu coração disparou. Atendeu com mãos trêmulas.— Alô...?A resposta não veio de imediato. O som abafado de uma respiração pesada preencheu a linha. Então...— Mi niña... — a voz de Paolo Ortega soou trêmula, como se cada sílaba lhe machucasse a garganta. — Mi vida...Isadora sentiu as lágrimas virem sem controle.— Paolo...? — sua voz quebrou como vidro. — É você?Do outro lado, ele chorava. — Me perdoa... Me
A casa era linda. A reforma havia transformado o lugar num lar acolhedor, com tons suaves, almofadas macias, cheiros que não assustavam. Cecília e Samara tinham criado uma varanda com vista para o jardim e um ateliê pequeno com espaço para dança ou qualquer arte que ela quisesse retomar um dia.Mas a primeira noite foi dura.Ela não dormiu. Sentou-se no sofá e ficou olhando o vazio. As mãos sobre o colo, frias. O som do relógio marcando os segundos, o silêncio pesando nos ombros. Não conseguia falar. Não conseguia comer.Cecília, sensível, pediu ajuda.Na manhã seguinte, uma mulher elegante e serena chegou. Roupas simples, olhar gentil e uma pasta discreta nas mãos.— Sou Antonella. Psicóloga da Trindade. Não vim pra te forçar a nada. Só queria que você soubesse que... quando quiser falar, ou só estar em silêncio com alguém, eu estarei por perto.Isadora não respondeu. Mas olhou para ela com olhos marejados. Naquele dia, ficaram as duas sentadas no chão do ateliê. Antonella lendo
O tempo, aquele velho e silencioso aliado dos corações feridos, começava a trabalhar com delicadeza na alma de Isadora. Já não era mais a sombra apagada que chegou à casa de Cecília. A dor ainda estava ali, aninhada nas memórias, mas já não a sufocava como antes. Agora, havia frestas de luz.As ligações de Paolo tornaram-se parte do seu novo cotidiano. Irmão e irmã falavam todos os dias — e em cada chamada, a cumplicidade deles se reafirmava. Ele, do outro lado do mundo, continuava sendo o porto seguro que ela conhecia. E ela, mesmo ainda insegura, passava a ser a esperança viva que ele precisava manter.— Hoje almocei com a Cecília e a Samara... disse ela certa tarde, ao telefone. Do outro lado da linha, Paolo a ouvia com atenção. — A Samara se atrapalhou toda com a colher de Lorenzo, e o purê foi parar no vestido da Cecília. Você precisava ver a cara dela!Ela riu. Foi um riso pequeno, mas genuíno. E naquele momento, Paolo soube que algo precioso estava retornando à sua irmã: a leve
O estúdio era silencioso, limpo, com as paredes espelhadas e o chão de madeira clara que refletia a luz suave do final da tarde. Era o mesmo local onde Antonella marcara aulas individuais para Isadora, com uma professora de sua confiança, mas hoje a professora não viria. Hoje era só dela.Isadora entrou devagar, quase pisando em memórias. Vestia um collant preto simples, uma saia fluida de tule e a velha sapatilha rosa que Antonella resgatara do armário com ela. O cabelo preso num coque improvisado. O coração disparado como se fosse uma estreia.Ela caminhou até o centro da sala e olhou seu reflexo no espelho. Por um instante, sentiu a antiga Isadora surgir — a que dançava sem medo por amor . Mas logo a lembrança da dor atravessou como uma sombra. Ela fechou os olhos e respirou fundo, tentando reencontrar seu eixo.Levantou os braços, como quem ensaia o primeiro movimento. A música suave ecoava das caixas de som. Um piano delicado, quase sussurrado. Ela deslizou o pé pelo chão, girand
Os dias seguintes à conversa com Antonella foram silenciosos demais. Isadora evitava os encontros, mesmo com Samara e Cecília. Não estava pronta para dizer que estava se escondendo dentro de si mesma — de novo. Dormia demais, ou quase nada. Começou a recusar as refeições que antes lhe traziam conforto. Andava de um lado para o outro pela casa anexa, olhando pela janela como se esperasse algo que nunca chegava.Estava afundando, e não dizia uma só palavra sobre isso.Até que numa noite, após mais um banho longo demais, Isadora se deitou no sofá da pequena sala com uma manta fina sobre os ombros, o cabelo molhado colando no rosto. A TV estava ligada em algo aleatório. Seus olhos estavam fixos, mas sem ver.A lembrança veio como uma onda violenta.As risadas de Arturo ecoando no corredor escuro. A dor. O sangue. A vergonha.Ela se encolheu, levou as mãos ao peito tentando respirar, mas o ar não vinha. Tentou se levantar, mas as pernas falharam. Desabou no chão do pequeno tapete. E ali, s