O salão estava deslumbrante. Lustres de cristal reluziam como estrelas presas ao teto, lançando fragmentos de luz sobre vestidos caros e sorrisos cuidadosamente falsos. As taças tilintavam, os acordes suaves do quarteto de cordas preenchiam o ar, e os sussurros corriam como serpentes entre os convidados.
E eu... estava linda.
O vestido dourado abraçava meu corpo como uma segunda pele, reluzindo sob as luzes como se eu tivesse sido moldada pela própria noite. Cabelos presos num coque elegante, maquiagem sutil, mas marcante. A mulher no espelho não parecia comigo — ela era a versão que o mundo esperava ver. A irmã do Dom. A anfitriã. Um troféu silencioso.
Mas por dentro... eu estava gelada.
— Pronta, maninha ? — perguntou Paolo ao me ver descer as escadas.
Seus olhos se suavizaram ao me ver. Sorriu com orgulho, mas também com um brilho melancólico que só eu conseguia notar. Ajeitou a lapela do terno, ofereceu-me o braço, e juntos caminhamos para o salão.
Recebemos os convidados com a cortesia impecável de quem sabe jogar o jogo. Ele sorria, apertava mãos, trocava palavras em códigos. E eu sorria também — o sorriso que aprendi a usar quando não queria mostrar o que sentia. Em nenhum momento Paolo me deixou só. Seu braço sempre ali, sua presença firme como um escudo.
Quando os cumprimentos terminaram, ele me puxou para um canto mais tranquilo do salão, onde podíamos ver tudo sem sermos vistos de perto. A música ainda tocava, agora um bolero discreto. Ele me ofereceu uma taça, mas eu neguei com um gesto. Meu estômago estava fechado.
— Você está maravilhosa, Isa. Estão todos encantados — disse ele, com um sorriso sincero.
— E você, está satisfeito com os olhares famintos? — perguntei, meio brincando, meio ferida.
Ele riu, balançando a cabeça.
— Estou satisfeito que todos saibam que você é o meu maior tesouro. E que ninguém jamais se atreverá a tocar no que é precioso para mim.
Suas palavras não soaram como uma ameaça. Soaram como uma promessa. Como uma oração.
Caminhamos juntos pelo salão, lentamente. Ele me contava histórias engraçadas de aliados antigos, me fazendo rir sem esforço. A tensão em meus ombros começava a se dissolver pouco a pouco. Com Paolo ao meu lado, tudo parecia suportável.
Mas mesmo rindo, mesmo me sentindo segura, o medo não foi embora.
Estava ali, escondido nas sombras entre as colunas, atrás de um olhar que durou um segundo a mais do que deveria, ou no silêncio repentino entre as músicas.
Algo estava para acontecer.
E mesmo protegida, mesmo ao lado do homem mais poderoso da máfia espanhola, meu coração continuava a gritar.
A música mudou para um compasso suave e envolvente, e antes que eu pudesse recusar, Paolo já me puxava para o centro do salão.
— Dança comigo, principessa — disse, com aquele brilho travesso nos olhos.
— Você quer mesmo ser o centro das atenções, não é?
— Eu sou o Dom. O centro é inevitável.
Sorri. Era impossível não sorrir com ele.
Coloquei uma mão em seu ombro, a outra foi guiada pela dele, e começamos a dançar como se o mundo não estivesse cheio de espinhos. A música envolvia nossos passos com delicadeza, e por um instante, tudo pareceu simples. Era apenas eu e meu irmão, girando devagar sob a luz dourada, cercados por sombras que não ousavam se aproximar.
— Você está bem? — ele perguntou baixinho, enquanto rodávamos em silêncio.
— Estou tentando estar — respondi, sincera. — Mas parece que estou vivendo um papel... e não sei se fui feita pra isso.
Ele apertou minha mão com mais firmeza.
— Você não foi feita pra ser moldada, Isa. Foi feita pra ser admirada, respeitada... e amada. E quem não entender isso, não vive muito tempo.
Eu conhecia aquele tom. Era doce... e letal.
Foi então que ele surgiu.
Arturo. Seu terno impecável contrastava com a podridão que exalava em cada passo. Um sorriso educado moldava os lábios, mas seus olhos... seus olhos me despiram sem permissão.— Dom Ortega — ele saudou, curvando a cabeça ligeiramente. — Permite-me a honra da próxima dança com sua encantadora irmã?
O salão silenciou por um segundo que durou uma eternidade.
Senti o corpo de Paolo endurecer ao meu lado. Seus dedos não soltaram os meus. Nem por um milímetro.
— Agradeço a cortesia, senhor Arturo — disse Paolo, com uma calma ensaiada. — Mas minha irmã está comprometida comigo por esta noite.
Foi como se tivesse lançado um punhal com um buquê de rosas.
Arturo sustentou o sorriso... mas seus olhos dispararam um veneno silencioso. Um olhar que prometia retaliação.Ele inclinou levemente a cabeça e se afastou sem outra palavra.
Mas todos viram. E ninguém ousou comentar.— Continue sorrindo — murmurou Paolo. — Estamos sendo observados.
Então eu sorri.
E ele também.
E dançamos como se nada tivesse acontecido.
Mas dentro de mim, uma porta havia se aberto — e atrás dela, o pressentimento voltou a gritar.
Após a dança, voltamos para uma área reservada da mansão. Era um pequeno jardim interno, cercado por colunas e flores noturnas, longe dos olhares curiosos e da música que continuava ecoando no salão.
Paolo soltou a gravata e passou as mãos pelos cabelos com o mesmo gesto cansado que sempre fazia quando o fardo do mundo pesava demais.
— Acha que ele vai tentar de novo? — perguntei, tentando parecer casual, mas minha voz tremeu no final.
Ele não respondeu de imediato. Caminhou até uma das colunas e apoiou-se ali, olhando para mim com os olhos sérios, densos.
— Arturo é um lixo. Um mal disfarçado de nobreza. — Sua voz era baixa, mas carregada de fúria contida. — Há anos, circulam rumores. Espancamentos. Humilhações. Mulheres sumidas. Mas nada... nada sólido o suficiente pra cortar os laços sem causar guerra entre famílias.
Senti o estômago afundar.
— E ninguém faz nada?— Ninguém quer pagar o preço. Ele é da linhagem central dos Salvatore. Família tradicional. Rica. Velha. Orgulhosa. O pai dele fazia o mesmo com a mãe. E o avô antes dele. Uma dinastia de monstros, todos bem vestidos.
Paolo se aproximou e segurou meu rosto entre as mãos.
— Mas eu não sou como eles, Isa. Eu não finjo que não vejo. Eu não negocio com a dor de uma mulher. E jamais deixaria você cair nas mãos de alguém como Arturo.
— Então por que ele ainda está aqui?
Os olhos dele escureceram ainda mais.
— Porque pra cortar uma cabeça como a dele, Isa... eu preciso da lâmina certa. E a hora certa. Se eu agir sem provas, serei eu o monstro. E a guerra que viria depois te colocaria ainda mais em risco.
Acariciou meu rosto com os polegares e suspirou.
— Você não vai dançar com ele. Não vai sorrir pra ele. Não vai sequer olhar nos olhos dele. Se ele se aproximar, eu mesmo o afasto. Se ele ousar tocar em você... ele morre. E ponto.
Senti meus olhos marejarem. E não era só medo. Era gratidão. Amor. Raiva de um mundo que ainda permitia esse tipo de tradição miserável.
— Você sempre me protegeu, Paolo...
— E vou continuar protegendo. Até o meu último suspiro.
Me puxou para um abraço apertado, com a força de quem queria me guardar dentro do peito.
E ali, no silêncio do jardim, escondidos da festa e das promessas podres da máfia, eu me senti segura. Mas também, pela primeira vez, percebi o quão frágil era essa segurança.Porque mesmo uma fortaleza como Paolo...
Tinha inimigos que andavam de terno e falavam sorrindo.A festa começava a esvaziar.Convidados se despediam com sorrisos satisfeitos, brindes encerravam acordos silenciosos, e o salão, pouco a pouco, perdia seu brilho dourado para dar lugar a uma penumbra carregada de exaustão e intenções ocultas.Eu me mantive perto de Paolo o máximo possível. Fingimos sorrisos, trocamos cumprimentos, agradecemos por presenças hipócritas — o ritual de sempre. que Paolo já estava acostumado mais eu não e minha energia foi sugada.Foi quando uma das criadas se aproximou, discreta, e me entregou um pequeno envelope preto.— Para a senhorita. Disseram que era particular.Meus dedos hesitaram. O papel tinha cheiro de perfume masculino barato misturado com algo mais... azedo. A caligrafia era firme, elegante, mas havia uma violência contida em cada curva da letra.Abri com cuidado.Uma única frase. Escrita com tinta preta, como se fosse um sussurro envenenado.— Terei você.Senti o chão se mover sob meus pés. Meu coração disparou como um alarme mudo. Levante
Os dias seguintes à festa foram... estranhos.Paolo estava diferente. Mais quieto, mais sombrio. Ele passava longos períodos trancado no escritório, e quando me olhava, seus olhos carregavam algo que eu não conseguia decifrar. Uma mistura de medo e fúria.A segurança aumentou, e eu percebi.Homens que antes ficavam discretos, agora me seguiam por todos os lados. Cecilia dizia que era apenas "prevenção". Paolo dizia que era "protocolo". Mas eu sentia. Algo tinha mudado.À noite, o luar parecia mais frio. O vento mais denso. Como se até a casa soubesse que algo se aproximava.Eu estava no jardim dos fundos, lendo um livro sob a luz quente do pôr do sol. Duas seguranças femininas estavam próximas, conversando em voz baixa, como sempre. Tudo parecia normal. Tranquilo demais.Foi então que ouvi o farfalhar seco entre os arbustos.Rápido. Preciso. Calculado.Antes que eu pudesse me levantar, um vulto negro saltou da escuridão — mas os seguranças reagiram na mesma hora. Um deles pulou s
A sala estava lotada. O ar carregado. Três líderes das máfias aliadas da Espanha estavam reunidos com Paolo para selar um acordo que levaria meses de articulação — e representava um avanço no cerco contra Arturo.— Estamos com você, Paolo. Mas não haverá volta. — Eu nunca quis volta. Só justiça. — respondeu ele, firme, a mandíbula tensa.Mateus se manteve calado, observando, como sempre fazia — olhos atentos a cada respiração, a cada hesitação nos rostos ali presentes.Paolo ergueu a taça de vinho. — Que esse pacto leve o nome de Arturo para o chão.E então… o telefone tocou.O som cortou o ar como uma lâmina.Ele olhou o visor. Número desconhecido.Atendeu. — Ortega.O silêncio do outro lado era como um vácuo.Até que a voz surgiu. Baixa. Arrastada. Cruel.— O tesouro da sua vida... agora é meu.Arturo.Paolo congelou. O sangue gelou por um segundo — e então ferveu. — Filho da puta. O que você fez?Uma risada. — Ela está comigo. E tão bonita quanto na festa. Uma pena que voc
O casebre era úmido. Fedia a mofo e ferrugem. Mas nada… nada se comparava ao que ela viveu ali dentro.Arturo chegou transtornado. O olhar perdido, os lábios trêmulos, rindo como um louco.— La Trinità… — ele cuspia o nome com ódio. — Eles estão vindo… A porra da Trindade! A elite italiana!Ela já ouvira esse nome nos sussurros da máfia. Sabia o que representava. Leonardo. Fellipo. E… Paolo.Sua respiração quase falhou. Eles estavam perto. Muito perto.Mas Arturo também sabia.E, como um cão encurralado, ele resolveu ser cruel.— Se não posso ter você, vou deixar sua lembrança gravada no sangue de todos eles. — Vamos ver o quanto seu irmão te ama, depois de ver o que sobrou de você.Os capangas cavaram com pás velhas no corredor. Ela ouviu tudo.— Aqui mesmo. Um túmulo. Uma lenda enterrada viva. — Nua. Fraca. Sem nome. Sem identidade.Isadora estava caída no chão de madeira, o corpo coberto de hematomas. Os joelhos ralados. O sangue escorrendo entre as pernas. Mas não gritou.
O quarto do hospital estava silencioso, exceto pelos bips do monitor cardíaco e o som baixo da televisão que ninguém realmente assistia. Isadora estava acordada, sentada na cama, envolta por um cobertor branco e macio. A noite lá fora pintava as janelas de sombras azuladas, e o cheiro de lavanda do difusor tornava o ar um pouco mais suportável.Fernando tinha saído por alguns minutos para resolver uma questão com os médicos, e ela se viu sozinha pela primeira vez em dias. E foi nesse silêncio que o celular vibrando ao lado da cama quebrou o momento de paz.“Número restrito.”Seu coração disparou. Atendeu com mãos trêmulas.— Alô...?A resposta não veio de imediato. O som abafado de uma respiração pesada preencheu a linha. Então...— Mi niña... — a voz de Paolo Ortega soou trêmula, como se cada sílaba lhe machucasse a garganta. — Mi vida...Isadora sentiu as lágrimas virem sem controle.— Paolo...? — sua voz quebrou como vidro. — É você?Do outro lado, ele chorava. — Me perdoa... Me
A casa era linda. A reforma havia transformado o lugar num lar acolhedor, com tons suaves, almofadas macias, cheiros que não assustavam. Cecília e Samara tinham criado uma varanda com vista para o jardim e um ateliê pequeno com espaço para dança ou qualquer arte que ela quisesse retomar um dia.Mas a primeira noite foi dura.Ela não dormiu. Sentou-se no sofá e ficou olhando o vazio. As mãos sobre o colo, frias. O som do relógio marcando os segundos, o silêncio pesando nos ombros. Não conseguia falar. Não conseguia comer.Cecília, sensível, pediu ajuda.Na manhã seguinte, uma mulher elegante e serena chegou. Roupas simples, olhar gentil e uma pasta discreta nas mãos.— Sou Antonella. Psicóloga da Trindade. Não vim pra te forçar a nada. Só queria que você soubesse que... quando quiser falar, ou só estar em silêncio com alguém, eu estarei por perto.Isadora não respondeu. Mas olhou para ela com olhos marejados. Naquele dia, ficaram as duas sentadas no chão do ateliê. Antonella lendo
O tempo, aquele velho e silencioso aliado dos corações feridos, começava a trabalhar com delicadeza na alma de Isadora. Já não era mais a sombra apagada que chegou à casa de Cecília. A dor ainda estava ali, aninhada nas memórias, mas já não a sufocava como antes. Agora, havia frestas de luz.As ligações de Paolo tornaram-se parte do seu novo cotidiano. Irmão e irmã falavam todos os dias — e em cada chamada, a cumplicidade deles se reafirmava. Ele, do outro lado do mundo, continuava sendo o porto seguro que ela conhecia. E ela, mesmo ainda insegura, passava a ser a esperança viva que ele precisava manter.— Hoje almocei com a Cecília e a Samara... disse ela certa tarde, ao telefone. Do outro lado da linha, Paolo a ouvia com atenção. — A Samara se atrapalhou toda com a colher de Lorenzo, e o purê foi parar no vestido da Cecília. Você precisava ver a cara dela!Ela riu. Foi um riso pequeno, mas genuíno. E naquele momento, Paolo soube que algo precioso estava retornando à sua irmã: a leve
O estúdio era silencioso, limpo, com as paredes espelhadas e o chão de madeira clara que refletia a luz suave do final da tarde. Era o mesmo local onde Antonella marcara aulas individuais para Isadora, com uma professora de sua confiança, mas hoje a professora não viria. Hoje era só dela.Isadora entrou devagar, quase pisando em memórias. Vestia um collant preto simples, uma saia fluida de tule e a velha sapatilha rosa que Antonella resgatara do armário com ela. O cabelo preso num coque improvisado. O coração disparado como se fosse uma estreia.Ela caminhou até o centro da sala e olhou seu reflexo no espelho. Por um instante, sentiu a antiga Isadora surgir — a que dançava sem medo por amor . Mas logo a lembrança da dor atravessou como uma sombra. Ela fechou os olhos e respirou fundo, tentando reencontrar seu eixo.Levantou os braços, como quem ensaia o primeiro movimento. A música suave ecoava das caixas de som. Um piano delicado, quase sussurrado. Ela deslizou o pé pelo chão, girand