{ LEMBRAÇAS DE iSADORA }
A música ecoava suave pelo salão enquanto meus pés deslizavam no mármore frio. Aquela era a minha fuga — dançar, rodar, fingir que o mundo lá fora não existia. Naquele momento, eu não era a irmã de Paolo Ortega, o Dom da máfia espanhola. Eu era só Isadora. Uma garota de vinte anos com o coração acelerado e os olhos fechados, deixando o corpo seguir o ritmo e esquecendo, por poucos minutos, que eu era prisioneira de um sobrenome perigoso.
— Vai acabar derrubando uma coluna dessas — ouvi a voz grossa, divertida, atrás de mim.
Abri os olhos e sorri. Paolo estava encostado no batente da porta, braços cruzados e um copo de uísque na mão. Seus olhos tinham aquela mistura de dureza e doçura que só ele sabia carregar. Ele era respeitado por todos, temido por muitos. Mas, para mim, ele era só meu irmão. O homem que prometeu ao nosso pai, antes da morte, que cuidaria de mim. E ele estava cumprindo a promessa com uma devoção que eu não sabia se merecia.
— Você que mandou instalar esse salão de espelhos. Agora aguente — retruquei, limpando o suor da testa com o dorso da mão.
Ele riu, e aquele som foi um alívio. Era raro ouvi-lo rir assim. Sempre carregava o peso de decisões que jamais imaginei ter que tomar.
— Isadora... precisamos conversar — disse, por fim, e o tom da sua voz mudou. Meu coração vacilou.
Me aproximei devagar, tentando manter a leveza da dança dentro de mim, mesmo sentindo o ar pesar.
— Arturo o maldito enviou mais uma proposta. Dessa vez, veio com "presentes", promessas de aliança e... um aviso.
Senti meu estômago revirar. Aquele nome sempre me causou um desconforto inexplicável.
— Eu já dei a resposta não se preocupe. A mesma de sempre — disse, firme. — Minha irmã não será moeda de troca. Ela vai se casar quando amar alguém de verdade. Ponto final.
Fiquei em silêncio, observando meu irmão com os olhos marejados. Ele sempre dizia isso. Sempre me defendia. Sempre me protegia.
Mas naquele instante, pela primeira vez, vi algo diferente nele: medo.
Não pelo que Arturo faria com ele. Mas pelo que poderia fazer comigo.
Naquela noite, dancei como se fosse a última vez. E, de certa forma… foi.
As manhãs em casa tinham um ritmo quase sagrado. Eu acordava com o cheiro do café que María preparava desde que me entendo por gente. A luz do sol entrava pelas janelas altas da mansão Ortega e aquecia o chão frio do corredor, onde eu sempre caminhava descalça, ouvindo meus passos ecoarem. Era ali que eu me sentia mais livre. Mesmo vigiada, mesmo protegida demais, eu me sentia viva.
Depois do café, seguia para minhas aulas de balé com Clara — minha professora desde os 14 anos. Às vezes, Paolo assistia escondido atrás da porta, fingindo que não estava ali, mas eu sempre notava seu reflexo no espelho. Ele dizia que me ver dançar era como assistir algo que ele nunca teve direito de viver. “Você me lembra que ainda existe beleza nesse mundo, irmãzinha.”
Nas tardes, eu estudava literatura e história, lia romances hot escondidos e escrevia poesias que jamais mostraria a ninguém. Sonhava com o impossível dentro de uma bolha cuidadosamente construída por Paolo para me proteger do mundo que ele mesmo dominava. Ele não queria que eu soubesse dos detalhes — dos acordos sujos, das guerras silenciosas, dos corpos que às vezes apareciam com bilhetes de aviso. Mas eu sabia. Sempre soube. Só fingia que não.
Em uma noite, jantávamos juntos. Só nós dois. Era nosso momento. Paolo, com seu terno impecável, seus olhos cansados e sua voz tranquila, sempre me perguntava sobre o meu dia, como se ele não estivesse afundado em decisões que podiam custar vidas. Ele era o meu lar. E eu era tudo o que ele ainda tinha de puro.
— Isadora... — ele dizia às vezes, baixando os olhos para o prato — se um dia algo acontecer comigo, prometa que não vai deixar esse mundo te engolir.
Eu sempre prometia. Ria. Dizia que ele estava sendo dramático.
Mas agora, olhando para trás, entendo que Paolo sempre soube.
Ele sentia a tempestade se aproximando.
Ele só não conseguiu impedir.
Depois do jantar, seguimos para a sala de TV como fazíamos todas as noites de sexta. Paolo tirou a gravata no caminho, como se aquilo fosse um ritual sagrado de deixar o “Dom” para trás e ser só... meu irmão. Era nesses momentos que eu via o homem por trás da lenda. Um cara que adorava filmes antigos, detestava finais tristes e comia pipoca como se fosse a coisa mais preciosa do mundo.
Me joguei no sofá com uma almofada no colo, e ele se acomodou ao meu lado com aquele ar cansado de quem vive em guerra, mas ainda guarda espaço para a paz.
— Comédia romântica, hoje? — perguntei com um sorriso malicioso.
Ele revirou os olhos.
— Você quer me matar, é isso? Não pode escolher um filme onde pelo menos um carro explode?
— Não. Você vai amar esse — respondi, já dando o play antes que ele protestasse de novo.
A pipoca estalava na tigela entre nós. A luz da televisão dançava sobre o rosto de Paolo, e por alguns segundos, ele parecia um homem comum. Não o chefe da máfia. Não o lobo de paletó que todo mundo temia. Só o meu irmão mais velho, me fazendo companhia num sofá grande demais para duas pessoas que só tinham um ao outro.
No final do filme — com uma dose considerável de drama, beijos na chuva e um cachorro fofo — ele suspirou alto, vencido.
— Tá... admito. Foi bom.
Sorri vitoriosa e me estiquei para pegar os últimos grãos da tigela.
Ele me observou em silêncio por um tempo. O sorriso sumiu devagar, como se algo mais sério estivesse prestes a acontecer.
— Amanhã à noite teremos um evento... uma festa da máfia. Seremos os anfitriões. Todos os grandes estarão lá — ele disse, em um tom calmo, mas firme. — Você vai precisar estar... deslumbrante, maninha ta certo.
Meu coração deu um leve salto. Eu já havia participado de alguns desses eventos, mas nunca como algo tão “oficial”. Nunca com essa palavra: anfitriã. Era como se, de repente, eu estivesse sendo puxada para mais perto do núcleo do mundo que sempre me mantiveram distante.
— Preciso mesmo ir? — perguntei num fio de voz.
— Sim. Vai ser seguro. E importante. Quero que vejam que você é minha prioridade... e que não existe nada que se aproxime de você sem a minha permissão.
Ele se aproximou, ajeitou uma mecha do meu cabelo atrás da orelha com todo o cuidado do mundo, como se eu fosse feita de vidro. Depois, beijou minha testa com carinho.
— Você é a única coisa nesse mundo que ainda me mantém inteiro.
Com isso, se levantou e foi em direção às escadas. Parou no topo, lançou um último olhar por cima do ombro e completou:
— Escolha um vestido que faça o salão inteiro perder o fôlego. Boa noite, Isadora.
E desapareceu no corredor.
Fiquei ali, sozinha com a tigela vazia no colo e o coração apertado. Uma parte de mim queria congelar aquele momento. A outra... já sentia o vento gelado da mudança soprando pela casa.
Subi devagar, como se meus pés pesassem mais que o corpo. O corredor estava silencioso, exceto pelo som suave do vento do lado de fora, sussurrando contra as janelas altas da mansão Ortega. A luz amarelada dos abajures fazia dançar sombras nas paredes, e por um instante, tudo pareceu... estranho demais. Quase irreal.
Abri a porta do meu quarto e fui recebida pelo cheiro do jasmim que vinha da varanda. As cortinas de linho branco se moviam suavemente, agitadas por uma brisa que carregava o cheiro da noite. Caminhei até ali e empurrei as vidraças com os dedos. Lá fora, o mundo dormia sob um véu de prata.
O luar caía sobre os jardins como um véu delicado, iluminando as flores e os caminhos com uma beleza fantasmagórica. Respirei fundo, tentando encontrar paz naquele cenário, mas algo dentro de mim... vibrava.
Um arrepio subiu por minha nuca.
Não era o vento.
Não era o frio.
Era um pressentimento. Um sussurro abafado, uma mão invisível apertando meu estômago.
Segurei os braços, me abraçando. Fechei os olhos. Por quê? Por que justo hoje, depois de um dia tão normal, algo dentro de mim queria gritar?
“Vai ser seguro”, Paolo disse.
E eu acreditava nele. Sempre acreditei. Mas não era sobre a segurança dos outros.
Era algo mais profundo. Um medo que não vinha do mundo, mas da alma.
Talvez fosse só insegurança. Só o peso de me apresentar diante de homens que vi desde pequena. Um salão cheio de olhares julgando cada passo meu, cada sorriso treinado, cada centímetro do meu vestido. Talvez fosse isso.
Talvez.
Mas o luar parecia me observar em silêncio. E pela primeira vez em muito tempo, senti vontade de fechar as janelas, me esconder sob os lençóis e esquecer do mundo lá fora.
Naquela noite, eu demorei a dormir.
Porque alguma parte de mim já sabia.
Que nada jamais voltaria a ser como antes.
O salão estava deslumbrante. Lustres de cristal reluziam como estrelas presas ao teto, lançando fragmentos de luz sobre vestidos caros e sorrisos cuidadosamente falsos. As taças tilintavam, os acordes suaves do quarteto de cordas preenchiam o ar, e os sussurros corriam como serpentes entre os convidados.E eu... estava linda.O vestido dourado abraçava meu corpo como uma segunda pele, reluzindo sob as luzes como se eu tivesse sido moldada pela própria noite. Cabelos presos num coque elegante, maquiagem sutil, mas marcante. A mulher no espelho não parecia comigo — ela era a versão que o mundo esperava ver. A irmã do Dom. A anfitriã. Um troféu silencioso.Mas por dentro... eu estava gelada.— Pronta, maninha ? — perguntou Paolo ao me ver descer as escadas.Seus olhos se suavizaram ao me ver. Sorriu com orgulho, mas também com um brilho melancólico que só eu conseguia notar. Ajeitou a lapela do terno, ofereceu-me o braço, e juntos caminhamos para o salão.Recebemos os convidados com a co
A festa começava a esvaziar.Convidados se despediam com sorrisos satisfeitos, brindes encerravam acordos silenciosos, e o salão, pouco a pouco, perdia seu brilho dourado para dar lugar a uma penumbra carregada de exaustão e intenções ocultas.Eu me mantive perto de Paolo o máximo possível. Fingimos sorrisos, trocamos cumprimentos, agradecemos por presenças hipócritas — o ritual de sempre. que Paolo já estava acostumado mais eu não e minha energia foi sugada.Foi quando uma das criadas se aproximou, discreta, e me entregou um pequeno envelope preto.— Para a senhorita. Disseram que era particular.Meus dedos hesitaram. O papel tinha cheiro de perfume masculino barato misturado com algo mais... azedo. A caligrafia era firme, elegante, mas havia uma violência contida em cada curva da letra.Abri com cuidado.Uma única frase. Escrita com tinta preta, como se fosse um sussurro envenenado.— Terei você.Senti o chão se mover sob meus pés. Meu coração disparou como um alarme mudo. Levante
Os dias seguintes à festa foram... estranhos.Paolo estava diferente. Mais quieto, mais sombrio. Ele passava longos períodos trancado no escritório, e quando me olhava, seus olhos carregavam algo que eu não conseguia decifrar. Uma mistura de medo e fúria.A segurança aumentou, e eu percebi.Homens que antes ficavam discretos, agora me seguiam por todos os lados. Cecilia dizia que era apenas "prevenção". Paolo dizia que era "protocolo". Mas eu sentia. Algo tinha mudado.À noite, o luar parecia mais frio. O vento mais denso. Como se até a casa soubesse que algo se aproximava.Eu estava no jardim dos fundos, lendo um livro sob a luz quente do pôr do sol. Duas seguranças femininas estavam próximas, conversando em voz baixa, como sempre. Tudo parecia normal. Tranquilo demais.Foi então que ouvi o farfalhar seco entre os arbustos.Rápido. Preciso. Calculado.Antes que eu pudesse me levantar, um vulto negro saltou da escuridão — mas os seguranças reagiram na mesma hora. Um deles pulou s
A sala estava lotada. O ar carregado. Três líderes das máfias aliadas da Espanha estavam reunidos com Paolo para selar um acordo que levaria meses de articulação — e representava um avanço no cerco contra Arturo.— Estamos com você, Paolo. Mas não haverá volta. — Eu nunca quis volta. Só justiça. — respondeu ele, firme, a mandíbula tensa.Mateus se manteve calado, observando, como sempre fazia — olhos atentos a cada respiração, a cada hesitação nos rostos ali presentes.Paolo ergueu a taça de vinho. — Que esse pacto leve o nome de Arturo para o chão.E então… o telefone tocou.O som cortou o ar como uma lâmina.Ele olhou o visor. Número desconhecido.Atendeu. — Ortega.O silêncio do outro lado era como um vácuo.Até que a voz surgiu. Baixa. Arrastada. Cruel.— O tesouro da sua vida... agora é meu.Arturo.Paolo congelou. O sangue gelou por um segundo — e então ferveu. — Filho da puta. O que você fez?Uma risada. — Ela está comigo. E tão bonita quanto na festa. Uma pena que voc
O casebre era úmido. Fedia a mofo e ferrugem. Mas nada… nada se comparava ao que ela viveu ali dentro.Arturo chegou transtornado. O olhar perdido, os lábios trêmulos, rindo como um louco.— La Trinità… — ele cuspia o nome com ódio. — Eles estão vindo… A porra da Trindade! A elite italiana!Ela já ouvira esse nome nos sussurros da máfia. Sabia o que representava. Leonardo. Fellipo. E… Paolo.Sua respiração quase falhou. Eles estavam perto. Muito perto.Mas Arturo também sabia.E, como um cão encurralado, ele resolveu ser cruel.— Se não posso ter você, vou deixar sua lembrança gravada no sangue de todos eles. — Vamos ver o quanto seu irmão te ama, depois de ver o que sobrou de você.Os capangas cavaram com pás velhas no corredor. Ela ouviu tudo.— Aqui mesmo. Um túmulo. Uma lenda enterrada viva. — Nua. Fraca. Sem nome. Sem identidade.Isadora estava caída no chão de madeira, o corpo coberto de hematomas. Os joelhos ralados. O sangue escorrendo entre as pernas. Mas não gritou.
O quarto do hospital estava silencioso, exceto pelos bips do monitor cardíaco e o som baixo da televisão que ninguém realmente assistia. Isadora estava acordada, sentada na cama, envolta por um cobertor branco e macio. A noite lá fora pintava as janelas de sombras azuladas, e o cheiro de lavanda do difusor tornava o ar um pouco mais suportável.Fernando tinha saído por alguns minutos para resolver uma questão com os médicos, e ela se viu sozinha pela primeira vez em dias. E foi nesse silêncio que o celular vibrando ao lado da cama quebrou o momento de paz.“Número restrito.”Seu coração disparou. Atendeu com mãos trêmulas.— Alô...?A resposta não veio de imediato. O som abafado de uma respiração pesada preencheu a linha. Então...— Mi niña... — a voz de Paolo Ortega soou trêmula, como se cada sílaba lhe machucasse a garganta. — Mi vida...Isadora sentiu as lágrimas virem sem controle.— Paolo...? — sua voz quebrou como vidro. — É você?Do outro lado, ele chorava. — Me perdoa... Me
A casa era linda. A reforma havia transformado o lugar num lar acolhedor, com tons suaves, almofadas macias, cheiros que não assustavam. Cecília e Samara tinham criado uma varanda com vista para o jardim e um ateliê pequeno com espaço para dança ou qualquer arte que ela quisesse retomar um dia.Mas a primeira noite foi dura.Ela não dormiu. Sentou-se no sofá e ficou olhando o vazio. As mãos sobre o colo, frias. O som do relógio marcando os segundos, o silêncio pesando nos ombros. Não conseguia falar. Não conseguia comer.Cecília, sensível, pediu ajuda.Na manhã seguinte, uma mulher elegante e serena chegou. Roupas simples, olhar gentil e uma pasta discreta nas mãos.— Sou Antonella. Psicóloga da Trindade. Não vim pra te forçar a nada. Só queria que você soubesse que... quando quiser falar, ou só estar em silêncio com alguém, eu estarei por perto.Isadora não respondeu. Mas olhou para ela com olhos marejados. Naquele dia, ficaram as duas sentadas no chão do ateliê. Antonella lendo
O tempo, aquele velho e silencioso aliado dos corações feridos, começava a trabalhar com delicadeza na alma de Isadora. Já não era mais a sombra apagada que chegou à casa de Cecília. A dor ainda estava ali, aninhada nas memórias, mas já não a sufocava como antes. Agora, havia frestas de luz.As ligações de Paolo tornaram-se parte do seu novo cotidiano. Irmão e irmã falavam todos os dias — e em cada chamada, a cumplicidade deles se reafirmava. Ele, do outro lado do mundo, continuava sendo o porto seguro que ela conhecia. E ela, mesmo ainda insegura, passava a ser a esperança viva que ele precisava manter.— Hoje almocei com a Cecília e a Samara... disse ela certa tarde, ao telefone. Do outro lado da linha, Paolo a ouvia com atenção. — A Samara se atrapalhou toda com a colher de Lorenzo, e o purê foi parar no vestido da Cecília. Você precisava ver a cara dela!Ela riu. Foi um riso pequeno, mas genuíno. E naquele momento, Paolo soube que algo precioso estava retornando à sua irmã: a leve